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Nas areias de Duna: a masculinidade nos Atreides


Duna é um clássico da ficção científica. Publicado em 1965, o livro foi rejeitado por cerca de vinte editoras até chegar às mãos do público. O livro que inaugura a série conta com duas famosas adaptações cinematográficas, uma de David Lynch (1984) e outra de Denis Villeneuve (2021). Além disso, o romance inicia uma série de 21 livros - seis deles escritos originalmente por Frank Herbert, e os outros divididos entre seu filho, Brian Herbert, e o autor Kevin J. Anderson.

A escrita de Frank Herbert em nada deve aos cânones da literatura clássica, tampouco o cenário construído deve a qualquer livro de fantasia. Os personagens são complexos e a troca de ponto de vista entre eles é fluída. Duna é clássico porque sua prosa conversa com o nosso presente. Somos as pessoas do futuro de Herbert, um autor que escreveu um romance pensando no futuro, enquando vivia em um mundo pós-Segunda Guerra, no momento de tomada do pensamento neoliberal, em que surgem os primeiros grandes confrontos ambientalistas e quando o uso de alucinógenos inspirava grande parte dos movimentos artísticos.

Existe uma longa lista de temas que podem ser analisados apenas no primeiro livro; Duna parece uma carta de profecias para século XXI. Neste texto, um aspecto sutil presente em um grupo específico de personagens do livro é analisado: a performance da masculinidade dos homens da casa Atreides e seu papel fundamental para o desenrolar da saga de Duna.

“Não há escapatória: pagamos pela violência de nossos ancestrais.”

Duque Leto e Paul Atreides, pai e filho


“Ele não é muito pequeno para sua idade?” pergunta a Reverenda Madre. O protagonista da história, Paul Atreides, é um garoto de quinze anos, franzino, sensível e atormentado por sonhos febris que, mais tarde, sempre se tornam realidade. Ele é o herdeiro do planeta Caladan, casa da família Atreides. Nesse futuro distante, o espaço foi colonizado e organizado em feudos, controlados por famílias em uma estrutura monárquica, onde um imperador soberano tenta controlar as complexidades políticas que se estendem aos planetas afora.

Paul é filho de Duque Leto, um homem leal e honesto, a figura simbólica do pai de família. Leto parece ser um “paizão” até mesmo do planeta onde governa; sua figura é considerada um forte símbolo para a casa Atreides. Apesar de Paul desejar um dia ser como o pai, sua educação diversa, focada em inúmeras disciplinas, lhe apresenta uma gama maior de possibilidades para o futuro. Paul se resigna sobre seu destino como líder da casa Atreides, mas lhe falta a fibra — talvez o senso de proteger os seus — que Leto tem. Os dois parecem homens frágeis, mas por razões distintas. Paul porque sente e pensa demais; Leto porque faz apenas o que lhe é ordenado, pois isso representa manter a paz e segurança daqueles que dependem dele. Essa é talvez sua única preocupação no mundo.


Como referência, podemos traçar um paralelo entre Leto e outra figura paterna presente na cultura pop de hoje: Ned Stark, de Guerra dos Tronos. Não é à toa que ambos são sacrificados ao fim do primeiro ato em ambas as sagas. São líderes que morrem em decorrência de traição, nas mãos da casa inimiga. A própria casa Atreides remonta ao nome grego Atreu, descrito nas aventuras gregas antigas como o pai de Agamenon e Menelau (de acordo com as versões de Ésquilo e Hesíodo), os irmãos que venceram a guerra Tróia ao lado de Odisseu e Aquiles. A história clássica da família de Atreu é permeada por corrupção, traições e incestos, clássica tragédia grega. Atreu morreu muito antes da saga de Tróia acontecer, vítima de um complô de traição, em um sacrifício previsto em um oráculo.

O sacrifício também pode ser uma manifestação de masculinidade. Na cultura ocidental, a figura do homem mártir remonta contos clássicos da tradição judaico-cristã, passando por Jesus Cristo até os primeiros processos de beatificação dos santos. O martírio representa uma prova de superioridade frente ao executor, o inimigo, que posteriormente acaba figurando como um símbolo de fraqueza e desonestidade (observe a própria retratação física do Barão Vladimir Harkonnen nas duas grandes adaptações cinematográficas de Duna).

As mortes de Duque Leto e Ned Stark, como paralelos, são parte de uma mesma mecânica narrativa, algo que abre espaço para a história de seus filhos acontecer. Para ambos personagens, esse martírio é a prova final de uma honra ancestral. Uma honra pela qual seus filhos vão viver para alcançar, cada um à sua maneira, frequentemente superando o destino dos pais.

No mundo de Duna, onde o neoliberalismo espacial se mescla com essa nova monarquia, a produção de bens segue alimentando o capital — que continua nas mãos de poucos. A história dos personagens, e da humanidade, se move conforme as decisões desses poucos que detêm o poder e o dinheiro. A ruína de Leto começa quando o imperador Padishah Shaddam IV ordena que a família Atreides parta para Arrakis, o planeta Duna, para gerenciar a única fonte de melange, a commodity mais valiosa do universo. Esse é o ponto de partida que tensiona as vidas de todos os personagens que o livro apresenta até o final.

Enquanto Duque Leto opera em uma lógica simples, que poderia ser descrita como uma obediência cautelosa, onde ele acata as ordens do imperador mesmo percebendo que pode estar se colocando em risco, ele desempenha o papel de pai de família honesto e leal ao status quo. Leto é um duque, sua missão principal na vida é manter o status de nobreza de sua família e garantir a segurança de seu título e linhagem, como seus ancestrais antes dele. A manutenção dessa monarquia espacial é elemento crucial para todas as decisões de Leto, ainda que isso não seja explicitamente descrito na narração. Não é à toa que a principal diferença entre ele e o filho seja exatamente o papel de Lady Jessica, a mãe de Paul. Lady Jessica não faz parte dessa nobreza diretamente; sua posição social se baseia no seu ofício de Bene Gesserit.


Além das casas de poder monárquico, Duna conta com algumas guildas de conhecimento ou habilidades específicas, que têm um poder de agência levemente independente, mas que ainda dependem economicamente do apoio do imperador. Uma delas é a das Bene Gesserit, uma irmandade feminina poderosa que transita entre as casas da nobreza como concubinas e conselheiras, fazendo uso estratégico de seus poderes em benefício próprio. Jessica ensina algumas dessas habilidades a Paul. Assim ela acaba dando uma chance ao filho de ter mais subjetividades como ser humano do que o pai.

“– Quer me dizer qual é o problema, Paul?
– Você sabia o que estava fazendo quando me treinou? – ele perguntou.
Não há mais sinal da infância em sua voz, ela pensou. E disse:
– Esperava aquilo que qualquer mãe ou pai esperaria: que você fosse... superior, diferente.”

Paul é treinado em múltiplas modalidades de conhecimento e desenvolvimento físico. Essa educação peculiar prova ser uma parte pequena, mas crucial, na composição do grande líder político e religioso que ele se tornará mais tarde. Uma das modalidades de conhecimento a que ele também é exposto é a dos Mentats. Em um passado longínquo, a humanidade foi subjugada pelas máquinas, o que fez com que os humanos rompessem com o uso de inteligências artificiais em seus dispositivos tecnológicos. Em seu lugar, criaram uma guilda de homens que são treinados para pensar como um computador. Esses são os Mentats — observe a justaposição entre eles e as Bene Gesserit e prova de que a binariedade dos gêneros e seus papéis sociais nunca é superada totalmente na saga.

Nas primeiras cenas da narrativa, acontece o famoso e emblemático encontro entre Paul e a Reverenda Madre, autoridade máxima entre a irmandade de mulheres. Quando conversa com Thufir Hawat, o Mentat residente da casa Atreides, Paul faz graça sobre seu encontro com a Bene Gesserit e diz que mencionou para ela a primeira lei dos Mentats. 

“Acho que ficou irritada. Disse que o mistério da vida não era um problema a ser resolvido, e sim uma realidade a ser vivida. Daí citei a Primeira Lei dos Mentats: ‘Não se pode entender um processo interrompendo-o. O entendimento precisa acompanhar o fluxo do processo, tem de se juntar a ele e fluir com ele’. Isso parece tê-la deixado satisfeita.”

A lógica estrategista dos Mentat se baseia fortemente em análise de dados, tal qual um computador. Para eles, não há o conceito de estratégia em tempo real, tudo deve ser previamente computado e, então, analisado. A lógica Mentat parece se apoiar em uma base essencialmente colonizadora; quando falam que não se pode interromper o processo, os exemplos de uso desse raciocínio na narrativa vêm de uma imposição da cultura dominante ao povo dominado.


Quando chegam em Arrakis e o caos se instaura em pouco tempo, é Hawat a pessoa mais perdida da corte Atreides. Sendo Arrakis uma terra desconhecida e o povo local, os Fremen, de hábitos mais obscuros do que o previsto, Hawat não tem dados suficientes para basear sua estratégia. Mais para o final do livro, quando Hawat é capturado pelo Barão Vladimir, da casa Harkonnen — casa arqui-inimiga dos Atreides —, ele é mantido como novo Mentat do Barão e alimentado com dados falsos. Dispondo de informações incorretas, ele conclui que Lady Jessica é a traidora na trama que matou Duque Leto. Aqui, Frank Herbert traz um momento de lucidez narrativa impressionante, antecipando uma crise que talvez já seja o grande mal do século XXI: as consequências de ações tomadas com base em fake news.

“O fremen estendeu um dedo e pôs-se a desenhar na areia que separava os dois. Parecia um arco cuspindo uma flecha.
– São muitas as patrulhas dos Harkonnen – ele disse. Ergueu o dedo, apontou para cima, por sobre os penhascos que Hawat e seus homens haviam descido.
Hawat concordou com a cabeça.
Muitas patrulhas. Sim.
Mas ele ainda não sabia o que aquele fremen queria, e isso era exasperante. O treinamento de Mentat deveria dar a um homem o poder de enxergar motivações.”

Todos os Mentat que aparecem no livro são homens. Há uma distinta relação entre essa frustração recorrente de Hawat e a fragilidade típica da masculinidade quando confrontada com o desconhecido. No início do livro, Paul responde a Reverenda Madre com uma lei Mentat exatamente quando ela o confronta sobre o óbvio papel imperialista dos Atreides em Arrakis. Naquela altura do livro, ele ainda não fora exposto às complexidades desse jogo de poder; para ele, isso tudo ainda é uma incógnita, que será explorada mais tarde na narrativa. É como se ele precisasse se apoiar em um modelo conhecido de masculinidade para defender seu próprio pai (o símbolo da casa Atreides).

“[Paul] Imaginou se seria possível que seu espírito-ruh tivesse, de algum modo, fugido para o mundo onde os fremen acreditavam que ele levava sua verdadeira existência: o alam al-mithal, o mundo das similitudes, o reino metafísico onde todas as limitações físicas eram eliminadas. E conheceu o medo ao pensar num lugar como aquele, porque remover todas as limitações era remover todos os pontos de referência.”

É interessante ver Paul Atreides, muitas páginas depois, se distanciando cada vez mais da lógica Mentat e se conectando aos ensinamentos das Bene Gesserit quando confrontado com uma cultura nova, se inserindo na sociedade Fremen, os absorvendo e deixando eles absorverem-no também — e a consequência disso manifestada em sua posterior dominação sobre os Fremen através da religião.

Essas habilidades, no fim, funcionam só como mais um mecanismo de poder para continuar mantendo o status quo. As manobras políticas e militares de Paul culminam em uma ação épica de busca pelo poder: o heroísmo como mais um papel performático da masculinidade. E a defesa da linha hereditária dos Atreides, claro.

Referências

Vanessa Guedes
Escritora de ficção especulativa, editora e tradutora português-inglês na Eita! Magazine, podcaster no Incêndio na Escrivaninha e fluente nas línguas das máquinas. Quando não está de férias no Brasil, toca a vida em Estocolmo, na Suécia.

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