últimos artigos

O Jogador: disputa de perspectivas, gênero e poder na obra de Iain M. Banks


A aclamada série de ficção científica A Cultura ganhou sua reedição pela editora Morro Branco em 2021. Escrita por Iain M. Banks, A Cultura faz parte de uma série de dez livros, que foram lançados entre 1987 e 2012. O Jogador, lançamento recente, é o segundo deles. 

O livro faz parte da série e se enquadra em um subgênero da ficção científica, a space opera. O termo nasceu em 1941 com o escritor Wilson "Bob" Tucker e vem da junção do conceito de espaço sideral (space, em inglês) e opera, não necessariamente no seu sentido musical e encenado em palco, mas como uma forma de trazer dois termos bastante comuns na década de 1930: a "soap opera", que seria uma série de televisão melodramática, e a "horse opera", filmes dentro da categoria western que são considerados clichês e também melodramáticos. Em termos gerais, a space opera nasce, na verdade, de uma forma de zombaria e diminuição de Bob Tucker às aventuras que têm como foco o relacionamento entre personagens com pano de fundo do espaço, outros planetas e tecnologia. Ao longo do tempo, como podemos perceber hoje em dia, a space opera foi perdendo sua fama negativa e ganhou o mundo com clássicos da ficção literária como Fundação, de Isaac Asimov, Ender’s Game, de Orson Scott, a própria série A Cultura, entre outros. No mundo do audiovisual, seria impossível não mencionar Star Wars (que catapultou a space opera para as estrelas e além), Star Trek, Battlestar Galactica ("Bears, beets, Battlestar Galactica") e O Mochileiro das Galáxias.

"Esta é a história de um homem que viajou para muito longe e por muito tempo só para jogar um jogo. Este jogador se chama 'Gurgeh' A história começa com uma batalha que não é uma batalha e termina com um jogo que não é um jogo.

Eu? Vou falar sobre mim depois

A história começa assim."

O Jogador conta a história de Jernau Gurgeh, um famoso jogador da Cultura, conhecido por sua carreira brilhante nos jogos promovidos por aquela sociedade, que os compreende como um momento de socialização e, em certos círculos, competição e estudo. Apesar de ter uma vida aparentemente bem-sucedida, Gurgeh dá sinais durante a primeira parte do livro de estar apático sobre seu entorno.

A Cultura é considerada um paraíso quando se trata de liberdades individuais (as pessoas podem trocar de genitália, seja para fins reprodutivos ou de autoidentificação, quando querem. A poligamia, orientações sexuais e afetivas não-hétero não são tabu.), o poder econômico é igual para todos, sendo um lugar onde você pode ter o que quiser e quando quiser. E por que alguém se sentiria apático com tudo isso? É um questionamento de Gurgeh, que é rapidamente respondido. Ele não tem desafios e muito menos coisas novas acontecendo.

Em uma entrevista com o autor, ele fala sobre a Cultura:

"A Cultura não é capitalista, então ninguém precisa trabalhar. As pessoas fazem as coisas por diversão, por desafio, por hobby, não pela razão de que, caso elas não façam,  podem passar fome. [...] Além disso, não é uma coincidência que a apresentação da relativauUtopia da Cultura - a forma como as pessoas vivem no dia a dia - seja geralmente rural, com muitos espaços verdes agradáveis ao redor, mas com ligações rápidas de transporte para espaços urbanos concentrados, onde as pessoas vão para se misturar e se divertir."

Tudo isso muda quando, em uma partida de Fulminado (um jogo) contra uma menina prodígio da Cultura, Gurgeh se vale da ajuda um tanto quanto imoral do drone Mawhrin-Skel, que faz uma gravação disso e o chantageia. Mawhrin-Skel é um ex-drone das Circuntâncias Especiais para a sessão do Contato, que foi expulso por seu comportamento rebelde.

As Circustâncias Especiais dentro da Cultura poderiam ser consideradas como uma Inteligência comandada por robôs sencientes, isto é, com consciência e personalidades próprias. Dentro delas, há o Contato, uma sessão mais militarizada, especializada no trato com outras sociedades e intervenções necessárias. Mas ninguém sabe muito desses detalhes, que também não são compartilhados com o leitor.

Por conta dessa chantagem de Mawhrin-Skel, Gurgeh conecta-se com o Contato e é “recrutado” para uma missão de cinco anos para jogar um jogo cheio de complexidades em uma sociedade exterior e não seguidora da Cultura. Esse jogo se chama Azad e, na verdade, não é apenas um jogo, mas a forma com a qual a política do Império é decidida (até onde sabemos).

O Império, em contraposição à Cultura, é descrito como um local onde não há mudança de genitálias durante a vida ( há “machos” com testículos e pênis, ápices com vagina reversível e ovários e um terceiro sexo de pessoas com útero). Nessa organização, os ápices são o sexo dominante, com acesso à educação e melhores condições de vida. Sua economia é baseada na exploração do trabalho desses “sexos menores”. E os Azadianos, apesar de terem o reconhecimento da Cultura por seu jogo cheio de complexidades e nuances, são descritos como socialmente bárbaros e, em sua maioria, pouco inteligentes.

Dessa descrição em termos de base social que chegamos a Groasnachek, capital do Império de Azad e local dos primeiros jogos. Depois de quatro anos de treinamento e estudo com o drone-biblioteca do Contato Flere Imsaho e o sistema da nave que o leva até lá, Gurgeh se sente preparado para entender o jogo. Ele é dividido em quatro etapas e, conforme o jogador se vê avançando, mais as questões políticas da cidade emergem. Para além disso, Gurgeh sofre vários ataques de azadianos que tentam lhe tirar a vida.


Um dos pontos que mais atrai a atenção é a construção de universo. Iain M. Banks cria muito bem sua narrativa desses mundos em disputa, representado pelo jogo.

"Toda realidade é um jogo. A física mais fundamental, o próprio tecido de que é feito o universo, resulta diretamente da interação entre certas regras bastante simples e o acaso. [....] Assim, o futuro é um jogo; o tempo é uma das regras."

E são esses jogos, que também são sobre poder, que trazem à tona a corrupção e a briga de interesses entre grupos. Em uma das conversas de Gurgeh com uma azadiana, ela expõe como mulheres, além de serem consideradas como propriedades, são desclassificadas nas primeiras etapas do Azad. Ela também comenta que mulheres frequentemente são tiradas como escravas sexuais ao perderem, por meio de apostas que acontecem no jogo.

A participação de mulheres em livros de ficção científica sempre é um ponto de debate e merece um levantamento aqui. Em O Jogador, infelizmente, não há mulheres em uma posição não-secundária na obra. Há mulheres em posição de poder, como uma reitora ou uma grande arquiteta, mas nada que seja de fato aprofundado. Outra série literária aclamada que passa pela mesma questão é Fundação; sua história foi também um marco para a FC, mas não há mulheres em posição de destaque.

A ficção científica ainda é um meio bastante dominado por homens e obras que hipersexualizam mulheres ou não as dão protagonismo, e mesmo que o autor já tenha falado em entrevistas sobre admirar o trabalho de diversas mulheres como Octavia Butler e Ursula K. Le Guin, O Jogador erra nesse quesito.

Como já foi apontado anteriormente, a visão de binaridade entre Cultura e Império de Azad é bastante presente, mostrando essas diferenças basilares e até uma superioridade moral e social de uma para outra. Há, sim, momentos onde Gurgeh coloca em dúvida essa perspectiva dele enquanto pessoa da Cultura olhando para o Império e sabendo as informações, no primeiro momento, apenas de drones e sistemas da mesma.

Essa dúvida é, assim que Gurgeh passa seu tempo em Groasnachek, sanada e aquela sociedade é realmente entendida não mais como apenas “bárbara”, mas de fato opressora, exploratória com pessoas de sexos "inferiores", consequentemente de classes sociais mais baixas, cujos níveis de podridão vão aparecendo. A xenofobia, misoginia e racismo são pontos levantados pelo autor para mostrar ainda mais como Azad é cruel com seus habitantes. Em determinada sequência, o drone Flere Imsaho, percebendo que Gurgeh se encontrava cada vez mais dentro de Azad, o leva para conhecer um bairro onde o Império não chegava, largando a população à sua própria sorte, e é nesse lugar onde o maior choque acontece. Gurgeh vê corpos assassinados jogados no chão, uma cena onde um ápice bate em sua mulher, a venda de ingressos para uma execução ao vivo e, para além do aspecto descritivo das cenas, também descobrimos que na cidade há um Conselho Eugênico que exige a morte de crianças negras por uma recompensa.

É o momento onde não há dúvidas do quanto há camadas e mais camadas de problemas. E o autor, em diversas respostas de suas entrevistas, parece ser realmente muito crítico sobre essas questões, entendendo a Cultura como uma utopia para alcançarmos.

"A Cultura representa o lugar que nós podemos esperar chegar depois que tivermos lidado com toda a nossa estupidez. Talvez. Eu já disse antes e sem dúvida vou falar novamente que nós - isto é, homo sapiens - somos definitivamente estúpidos e agressivos para ter alguma possibilidade de nos tornarmos Cultura."

Iain M. Banks define sua utopia como um tipo de sociedade socialista e comunitária, na qual valores como tolerância, decência, justiça e verdade são bases. E podemos perceber que, nesse sentido, o Império é antagonista. Mas, mesmo assim, e talvez aí que resida o pulo do gato desse livro, ainda há espaço para pensar no quanto houve a manipulação da Cultura na vida de Gurgeh e o que ela esconde, pois pouco sabemos sobre as Circunstâncias Especiais ou o Contato. E o pouco que sabemos está condicionado ao que essas próprias organizações falam.

A Cultura tem problemas? O quanto Gurgeh, e outras pessoas possivelmente, não foram manipuladas pelo Contato? Essas perguntas não são respondidas em O Jogador mas, como existem mais oito sequências da série e uma prequela, feita em 1987, que inclusive conta como a Cultura se estruturou, temos muitos caminhos e trajetos a percorrer.

Faço duas menções honrosas: uma à capa dessa nova edição, que é excelente e captura bem a ideia de espaço sideral e jogos de tabuleiro, e outra à tradução feita por Edmundo Barreiros que, além de manter os nomes engraçados e irônicos das naves de habitação interestelares como Lamentável Conflito de Evidências, Malandrinho e É Claro que Eu Ainda te Amo, ainda vem com pérolas tipicamente brasileiras como uma das músicas mais protocolares dos Azadianos tão polêmica (e ruim) se chamar Me Lambe.

De maneira geral, apesar de possuir ressalvas em termos de (falta de) representação de mulheres, O Jogador é uma leitura bastante envolvente e que te deixa curioso para entender mais daqueles espaços e organizações sociais.

Referências




Se interessou pelo livro? Você pode comprá-lo clicando aqui!

(Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Ao comprar pelo nosso link, você não paga nada a mais por isso, mas nós recebemos uma pequena porcentagem que nos ajuda a manter o site.)


Arte em destaque: Mia Sodré 

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)