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ABBA e a cultura de fãs

Em setembro de 2021, o que parecia impossível aconteceu: o quarteto ABBA anunciou que estava de volta. Não teríamos apenas uma turnê com avatares como também um novo álbum de estúdio, o Voyage, após um hiato de 40 anos. A partir daí, uma série de conteúdos começaram a ser lançados. De repente, o grupo havia criado uma conta no Tik Tok. Tudo isso mantendo a identidade que os tornou famosos na noite em que venceram o Eurovision, em 1974. Mais uma vez, o ABBA estava mostrando ao mundo que, em matéria de marketing, poucas bandas se igualam a eles.

No entanto, esse marketing não seria o mesmo se não houvesse um ingrediente muito importante na fórmula para o sucesso do ABBA: os fãs. Isso fica bastante claro em dois momentos distintos do grupo: primeiro durante uma turnê pela Austrália, transformada em filme, e depois quando a comunidade LGBTQ+ os acolheu e foi responsável pelo ressurgimento do interesse no quarteto no final dos anos 1980 e durante os anos 1990.

Apesar de serem momentos separados por um abismo de tempo, eles mostram como os fãs mantiveram a chama acesa do ABBA quando o mundo havia perdido o interesse neles ou então eram desprezados pela mídia por serem comerciais demais. Olhar para os fãs de ABBA é revisitar, de muitas formas, a cultura LGBTQ+, os símbolos que se tornaram tão emblemáticos e falam por si, como é o caso da canção Dancing Queen. Também é perceber que se hoje o quarteto goza de respeito por parte da imprensa e de músicos de outros gêneros, foi em grande parte pelo trabalho desses fãs, que mostraram que a música do ABBA podia ser divertida e poderosa ao mesmo tempo.

A Austrália abraça o ABBA: a turnê de 1977 que foi transformada em filme

Ao contrário do que se pensa, a vitória do ABBA no Eurovision não significou o sucesso imediato. O ABBA enfrentaria diversas dificuldades para se inserir na música europeia, especialmente em Londres. Inclusive, o fato de a arena criada para a turnê de 2021 ser em Londres não é fruto do acaso. Como tiveram tantas dificuldades nesse mercado, a mensagem que permanece é a de que venceram, pois agora podem escolher onde estarão, e Londres foi um lugar simbólico para eles de diversas formas. Voltando ao assunto, o quarteto ainda não havia encontrado a própria identidade musical, apesar de muitos elementos, como o piano de Benny Andersson, já estarem lá. Eles faziam muito sucesso nos países escandinavos, e lá lotavam arenas. Porém, em outros lugares da Europa, era mais difícil.

O ABBA detestava viajar para fazer turnês, e uma das soluções encontradas para o quarteto promover suas canções e não ter que fazer grandes viagens eram os videoclipes. Talvez eles sejam a única banda do pop a ter todos os seus videoclipes dirigidos pela mesma pessoa, o cineasta Lasse Hallström. Sem querer, ele criou a identidade visual do grupo, com ângulos que focavam a boca de uma das vocalistas enquanto a câmera desfocava a boca da outra. Os videoclipes foram enviados para diversos países do mundo, dentre eles a Austrália. Começava, então, o caso de amor do país com os artistas suecos.

Os australianos se apaixonaram pelo ABBA logo que assistiram aos videoclipes. O mais interessante é que, naquele momento, eles não sabiam absolutamente nada sobre o grupo, o que gerou um mistério que só os ajudou quando Mamma Mia foi lançada como single no país. Um fato curioso era de que a gravadora original do ABBA, a Polar Music, não queria que a RCA, a gravadora do grupo na Austrália, lançasse essa música. Quando ela finalmente foi lançada, subiu para o primeiro lugar e lá ficou durante dez semanas.

Nada mais lógico do que, após o sucesso estrondoso de Mamma Mia, os australianos quererem o grupo mais perto. Foi então que o ABBA fez a sua primeira viagem à Austrália, para um especial ao vivo para a televisão. A televisão a cores havia acabado de chegar ao país, e foi como se o ABBA fosse feito para aparecer nela. Quando os australianos finalmente os viram em ação, a abbamania tomou conta. Dali até a turnê do grupo que sacudiu a Austrália foi um pulo. 

O ABBA saiu em turnê em 1977 pela Europa, mas até chegarem na Austrália não haviam lotado estádios e causado o mesmo estardalhaço que os Beatles nos anos 1960. Tudo isso mudaria quando, em 27 fevereiro de 1977, o grupo colocou os pés em Sidney. Foi como se a beatlemania se transformasse na abbamania. As pessoas se aglomeravam para ver seus ídolos. A recepção calorosa e barulhenta lembrava a primeira viagem ao grupo ao país, que foi repleta de momentos tensos, pois o grupo não estava acostumado com todo aquele assédio.

ABBA The Movie surge a partir da urgência de se registrar aquela turnê histórica. Talvez essa seja a melhor parte do filme: o fato de que ela é um material vivo da influência do ABBA durante os anos 1970. Também dirigida por Lasse Hallström, a ideia era que ela fosse para a televisão. Dada a magnitude daquele empreendimento, decidiram filmar em 35mm e transformar em cinema. A escolha do mesmo diretor dos videoclipes mostra como o ABBA sempre foi muito coeso em sua identidade visual, aliás.

O enredo de ABBA The Movie parte da premissa de mostrar o radialista australiano, Ashley (Robert Hughes), tentando uma entrevista com o quarteto. Acompanhamos suas peripécias durante toda a turnê do grupo pelo país, passando por cidades como Adelaide e Perth. É o enredo perfeito para as belíssimas imagens dos shows e dos bastidores da turnê que perpassam a história. Um detalhe bem interessante é que quando o filme começa, Ashley despreza o grupo por achá-lo muito comercial, com material de baixa qualidade. Ele sofre uma catarse ao longo da trama ao descobrir a qualidade musical dos suecos. De certa maneira, é o que aconteceu com o mundo logo após o lançamento do disco Arrival, um ano antes da ida deles à Austrália. 

Mais que um mero entretenimento, é em ABBA The Movie que podemos perceber tensões sobre a fama, o capitalismo e todas as questões que decorrem desses dois fatores. Logo no começo do filme, temos uma coletiva de imprensa do grupo. Nela, assédio fantasiado de pergunta: "Como é ter o traseiro mais bonito do mundo pop?", perguntam a Agnetha Fältskog. As mulheres só respondem a perguntas fúteis, enquanto os homens falam sobre aspectos das composições. São tensionamentos importantes que, junto da cultura de fãs, nos ajudam a entender a imagem que o ABBA passava naquela época.

Ao longo do filme, percebemos que a maioria dos fãs do grupo são adolescentes e pessoas mais velhas. Isso nos fala muito sobre a imagem limpinha que o quarteto tinha naquela época. Os pais não viam problemas em seus filhos gostarem de ABBA, uma vez que o grupo era formado por casais e cantava sobre temas tidos como genéricos e alienados. A premissa do ABBA era fazer música por diversão, e esse seria um dos motivos pelos quais eles seriam perseguidos pela imprensa durante os anos 1970. 

Ashley realiza entrevistas com os fãs do ABBA para entender o que há por trás desse furor. Um dos elementos que sempre aparece é a questão da imagem. É intrigante pensar que, ao perderem a imagem imaculada, no momento em que os casais se separaram, o grupo foi engolido e esquecido. Mas, em 1977, isso ainda estava bem longe de acontecer, e o ABBA ainda tinha muita energia para queimar.

Os adolescentes são os maiores consumidores de cultura pop, e o capitalismo depende deles de diversas maneiras. ABBA The Movie mostra como o consumo desenfreado fazia parte do cotidiano dos fãs do ABBA: bottons, camisetas, revistas e bonés. Todo o tipo de memorabilia do ABBA já existia naquela época, e essa estratégia continua sendo muito válida nos dias de hoje, basta olhar para o fato de Voyage ter cinco capas de disco diferentes, uma com o rosto de cada membro do grupo. Os fãs adolescentes australianos fizeram com que o mundo olhasse para a banda sueca de forma diferente, como um grupo de qualidade e harmonias ímpares.

É também no ABBA The Movie que vemos o preço pelo qual o ABBA teve que pagar por fãs tão devotos. Uma parte do show, concebida como uma espécie de musical, seria mais tarde transformada nas canções I Wonder e I Am a Marionette, do álbum ABBA The Album. Porém, no filme, elas ganham um contorno assustador. Isso porque ambas as músicas falam sobre se sentir presa e enxergar-se como uma marionete. Agnetha e Frida Lyngstad estão vestidas como marionetes e começam a cantar os versos de I Am a Marionette, que dizem:

"I'm a marionette, just a marionette, pull the string
I'm a marionette, everybody's pet, just as long as I sing
I'm a marionette, see my pirouette, round and round
I'm a marionette, I'm a marionette, just a silly old clown
Like a doll, like a puppet with no will at all
And somebody taught me how to talk, how to walk, how to fall" 

Até que ponto os fãs, o capitalismo e o fato de ter que produzir álbuns cada vez melhores não cansou o grupo? Essa parte do filme é sutil, mas já mostra os primeiros sinais de desgaste. Se por um lado os fãs são o combustível do ABBA, é impossível negar o quanto eles foram parte do problema para o quarteto. Com o passar dos anos, ficaria mais claro para os quatro integrantes de que a brincadeira havia acabado - e não havia mais graça em comentários machistas sobre o bumbum de uma das integrantes. 

Assim, ABBA The Movie é o registro de como fãs devotos elevaram o ABBA a uma das maiores bandas de pop dos anos 1970, mas de como isso vem acompanhado de uma série de questões mais delicadas. Em nenhum outro lugar do qual o ABBA faria turnê eles experimentariam um envolvimento tão intenso da parte dos fãs quanto na Austrália. 

A comunidade LGBTQ+ abraça o ABBA

Em 1981, quando o ABBA lançou seu último álbum de estúdio, The Visitors, já se sabia que o grupo enfrentava dificuldades pessoais. Os dois casais haviam se separado, o que fez com que a imagem de felicidade ruísse. Com letras mais profundas, sobre medos reais e irreais, o último álbum do ABBA não decolou. Além disso, a sensação era a de que o tempo musical do grupo já havia passado.

A separação do ABBA selou o fim de dez anos intensos de atividades. Ninguém viveu os alto e baixos da fama como eles. The Visitors é o álbum de quatro pessoas cansadas, calejadas pelos percalços de ser mundialmente famosas e ter que corresponder a determinadas expectativas. Quando decidiram encerrar a parceria musical, o ABBA fechou uma fase e jogou a chave fora. Eles queriam descobrir quem eram fora do quarteto.

De acordo com Björn Ulvaeus, membro do ABBA, o grupo achava que seria esquecido. Durante parte dos anos 1980, foi exatamente o que aconteceu. Com as mulheres do grupo seguindo carreira solo, tentando repaginar a imagem, temos a impressão de que eles mesmos queriam contribuir para o esquecimento. Logo em seguida, Agnetha se isolaria - um isolamento que gerou muita controvérsia na mídia -, cansada da fama e do assédio constante que sofria da parte de homens. 

Mas, no fim dos anos 1980 e começo dos 1990, a situação mudou graças à comunidade LGBTQ+. Quando Dancing Queen foi lançada, em 1976, o ABBA atingiu outro status e passou a tocar em discotecas. Foi ali, provavelmente, que a comunidade LGBTQ+ teve seu primeiro contato com eles e passou a abraçá-los. Ao olharmos o ABBA, percebemos o quanto eles bebem de uma estética camp, considerada exagerada, brega e diferente, o que ressoava diretamente na comunidade LGBQ+.

O ABBA traz homens com sapatos altos e roupas apertadas, mulheres dançando e divertindo, uma alegria da qual muitas pessoas da comunidade só podiam desfrutar em determinados espaços, já que fora deles tinham que enfrentar a LGBTFobia. O ABBA também ressoava na comunidade porque essas pessoas se sentiam diferentes e deslocadas, e a banda mostrava que não havia problema em querer diversão, principalmente em um mundo que oferece a nós, LGBTQ+, o silenciamento ou a morte. O ABBA era vida.

O lançamento do ABBA Gold, em 1992, de certa forma, selou o ressurgimento do ABBA nos anos 1990. Cresci ouvindo a banda, e foi por meio dessa coletânea que minha mãe me apresentou a eles. Hoje, 30 anos depois, consigo sentir o impacto que o ABBA teve em minha infância queer. Como muitas pessoas da comunidade, eu me sentia abraçada e entendida por eles. 

Nesse contexto, também conheci dois filmes que moldaram meu gosto pelo quarteto e também pela cultura queer: Priscilla, A Rainha do Deserto e O Casamento de Muriel. Ambos foram feitos nos anos 1990, e é a eles que devemos parte do ressurgimento do ABBA na cultura pop. Os dois têm um elo em comum: contam a história de pessoas à margem da sociedade que, de alguma forma, encontram no ABBA uma forma de sobrevivência. 

Em Priscilla, A Rainha do Deserto, de 1994, isso é simbolizado pela mulher trans Bernadette (Terence Stamp), uma grande fã de ABBA, que guarda o cocô de Agnetha em um pote de conserva. A personagem Anthony/Mitzi (Hugo Weaving) também é, de muitas formas, um guerreiro em um mundo heteronormativo. É na dublagem de músicas famosas, de grande divas do público LGBTQ+, que ele encontra conforto. A mensagem desse filme é tão poderosa, e o ABBA estar ali não é um fruto do acaso, apenas reflete o quanto a comunidade admirava e conectava-se com o quarteto sueco.

O Casamento de Muriel, de 1995, apesar de não ter uma temática LGBTQ+, também fala de uma mulher à margem da sociedade. Junto com a melhor amiga, a protagonista dubla músicas do ABBA. Um dado bastante interessante é que o filme é australiano, ou seja, ele revive também parte daquele furor causado pela turnê de 1977. A partir dessas duas obras é que a influência da comunidade LGBTQ+ na fanbase do ABBA pode ser mapeada, mas também pelas inúmeras regravações que começaram a aparecer. Da banda jovem A-Teens ao Erasure, todos queriam o ABBA.

Tal influência ressoa em 2021, quando o ABBA homenageou os fãs LGBTQ+ durante a live de lançamento de Voyage e da turnê em hologramas. Uma bandeira da comunidade podia ser vista tremulando em Estocolmo, local de apresentação da nova fase que o grupo está vivendo. É muito bacana perceber que a própria banda tem conhecimento de que deve muito a uma comunidade que sabe ser muito fiel aos signos que a representam. 

Com o lançamento do novo álbum, em plena pandemia, não parece exagero dizer que o ABBA voltou para salvar 2021. Para os fãs, será um novo capítulo da cultura de fãs, que é ressignificada por meio das redes sociais e do fato de ter os ídolos do ABBA, ainda que tão longe, mais perto. Um capítulo que, oficialmente, inicia no dia 5 de novembro de 2021.

Referências


Arte em destaque: Mia Sodré 

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