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A representação negra em Tomates Verdes Fritos


O livro Tomates Verdes Fritos no Café da Parada do Apito foi lançado no Brasil no ano de 1987. Escrito por Fannie Flagg, que também era atriz e comediante, o livro se passa em uma cidade no interior do Estado do Alabama, sul dos Estados Unidos. Um ambiente pacato, pequeno e dentro de um contexto de depressão econômica e segregação racial. É nesse lugar onde, em paralelo com a história principal de amor entre Idgie e Ruth, histórias expandem o universo contando sobre família Peavey: Sipsey, George, Onzell, os gêmeos, Artis e Jasper, e seus dois filhos mais novos.

A questão racial nos Estados Unidos tem diversos contextos que precisam ser salientados. A segregação racial funcionou no âmbito das leis, sendo um termo que denomina a separação baseada em critérios étnicos (principalmente contra afro-americanos). A Ku Klux Klan surge, fundada por um sulista descontente em um período de pós-Guerra Civil, onde as colônias do sul e norte entraram em conflito, com a vitória do norte em 1865. Com algumas diferenças em termos de abordagem como sociedade e trabalho, enquanto o sul (Estados Confederados do Sul, como se denominavam) era considerado escravocrata e adepto de grandes propriedades de terras e monocultura (conhecido como plantations), o norte (conhecido como União) adotou uma política de pequenas propriedades, trabalho livre assalariado e indústria. Desse conflito, o norte saiu vencedor e houve um período de reconstrução, que abrange do final da Guerra Civil até 1877.

Nesse momento conturbado da história do país, as forças da União ocuparam a região sul e o governo federal empreendeu medidas para que a nova situação dos negros, agora libertos, fosse reconhecida pelos antigos rebeldes. Durante aqueles anos, três emendas constitucionais foram acrescentadas. A décima terceira emenda, de 1865, dizia respeito à efetiva abolição da escravidão promulgada em janeiro de 1863 com a Declaração de Emancipação. A décima quarta, de 1868, trata da garantia de direito à cidadania de todas as pessoas nascidas ou naturalizadas no país e a legítima proteção destas de acordo com a lei. A décima quinta, de 1870, garantia o direito ao sufrágio de todos os cidadãos estadunidenses sendo proibido ao governo federal e aos estados negar-lhes em razão de raça, cor ou situação anterior à servidão. 

Durante a Reconstrução, houve um período de mudanças e insatisfações por parte de um antigo sul escravocrata. Por um curto período de tempo, entre 1870-1871, onze estados do sul, dentre eles Texas, Alabama e Tennessee, se uniram politicamente e se separaram dos Estados Unidos por serem contra a “atitude hostil ao escravismo”. Além disso, havia uma extrema resistência, motivada pelo racismo desses donos de terras, cidadãos sulistas e políticos conservadores, com a ideia de que pessoas negras poderiam viver em sociedade. E, dessa resistência e poder político, as Leis Jim Crow aparecem por todos os Estados Unidos, com alguma incidência maior no sul.

“Leis de segregação racial haviam feito breve aparição durante a reconstrução, mas desapareceram até 1868. Ressurgiram no governo de Grant, a começar pelo Tennesse, em 1870: lá, os sulistas brancos promulgaram leis contra o casamento interracial. Cinco anos mais tarde, o Tennessee adotou a primeira Lei Jim Crow e o resto do sul o seguiu rapidamente. O termo 'Jim Crow', nascido de uma música popular, referia-se a toda lei (foram dezenas) que seguisse o princípio 'separados, mas iguais', estabelecendo afastamento entre negros e brancos nos trens, estações ferroviárias, cais, hotéis, barbearias, restaurantes, teatros, entre outros. Em 1885, a maior parte das escolas sulistas também foram divididas em instituições para brancos e outras para negros. Houve 'leis Jim Crow' por todo o sul. Apenas nas décadas de 1950 e 1960, a suprema Corte derrubaria a ideia de 'separados, mas iguais'.”

Até hoje, o movimento negro (não só) nos Estados Unidos luta pela justiça racial, reparação de todos os danos causados ao longo dos séculos pela branquitude e busca condições mínimas para viver. No Alabama, segundo o Alabama Apleesed - Center for Law and Justice, em 2017: 

"O Alabama é um dos estados mais pobres dessa nação. Nós temos um dos maiores índices de Afro-americanos per capita. Nós também temos um dos maiores índices de encarceramento na América.

Esses fatos não são aleatórios. Por todos os 201 anos de história, o Alabama priorizou a manutenção da supremacia branca sobre o bem-estar como Estado. Prosperidade significa deixar que todos sejam prósperos, mas ao invés disso, nós estamos sendo governados por uma série de esquemas legais que privilegiam o bem-estar e a saúde dos proprietários de terras brancos sobre todo mundo."

Mas é dentro desse contexto de 1930-1970 que a história de Tomates se desenvolve e somos apresentados ao Semanário Weems, Boletim Semanal do Alabama, no qual Dot Weems, a famosa maria-fifi, mantém uma coluna semanal com todas as novidades da cidade. Nas primeiras páginas do livro, Dot conta sobre a inauguração do Café de Idgie e Ruth, onde Onzell, Sipsey e Big George estão preparando as refeições.


Tanto Onzell, quanto Sipsey e Big George trabalham para a família Theadgoode, e mesmo que o livro faça questão de apresentá-los a partir de uma ótica de afetividade, há uma posição de diferença. Um ponto onde, no começo já gera incômodo é quando, no meio de um dos causos de Ninny, ela se refere à personagem como “Sipsey, a negra” (pág. 19). Na versão original, em inglês, ainda cabe a ressalva que a autora usa a n word, um insulto racial usado por pessoas brancas em referência a pessoas negras.

E ainda é bastante incômodo o modo como Sipsey é descrita apenas por sua etnia, enquanto Idgie é descrita pelas suas roupas “masculinas” e por ser “uma bela moça loira de cabelo cacheado” na ocasião em que Smokey encontra ambas.

Dessas ressalvas iniciais, a história avança e um plot que tem alguma visibilidade no livro, mas no filme não chega a aparecer com muito detalhe, foi a ideia de como a Parada do Apito parece ser um vilarejo fictício afastado, com pessoas importantes do lugar envolvidas com a Klan, enquanto o bairro vizinho Troutville é formado majoritariamente pela população negra, como é apontado.

"Quando Ninny conta a história de Sipsey, ela conta que Sipsey tinha vindo de Troutville com 10 ou 11 anos se oferecendo para trabalhar com Momma. Sua mãe tinha sido escrava e, como o ano do acontecido não é citado, não fica muito nítido a vida de Sipsey antes disso. Ela era supersticiosa, uma grande cozinheira e adorava bebês. Sipsey nunca gestou uma criança, mas, quando soube da notícia que uma moça estavam dando seu bebê na estação de trem, ela parte em busca dele e chega na casa do Threadgoode com George Peavey, seu filho, que ficou conhecido por todos como Big George, por conta de seu porte físico e estatura elevada mesmo quando bebê. George é ensinado ao ofício de açougueiro desde criança e aos 11 anos já trabalhava no comércio da família Threadgoode." 
(Tomates Verdes Fritos no Café da Parada do Apito, pág. 54)

Outra cidade presente na narrativa é Birminghan, tida como "a cidade que mais cresce no Sul”, cenário de vidas distintas entre os gêmeos Jasper e Artis O. Peavey, frutos da união entre Onzell e Big George. Os irmãos decidem se mudar para a cidade grande em busca de maiores oportunidades e, chegando lá, cada um segue seu caminho. Enquanto Artis conhece a vida boêmia na Cidade da Escória, conhecida também como Harlem do Sul, e se torna famoso, Jasper se torna cabineiro do vagão pullman, pastor, e começa a participar da classe média ascendente negra, tornando-se vice-grão-chanceler dos Cavaleiros das Pítias, se casando com a Sra. Blanche Peavey, presidenta da famosa Sociedade Real Saxônica do Clube da Salvação e da Beneficiência Social e tendo uma vida boa com sua filha Clarissa. A vida de Jasper, apesar de estável, é mostrada no livro como bastante dura, psicológica e fisicamente cansativa.

Mas é sobre história de Artis que temos mais detalhes. Ele é descrito como uma pessoa gosta muito de honrar compromissos, não tem residência fixa e que “causava muitos problemas para o sexo oposto” (pág. 242). Ao fugir de uma mulher, de Birminghan para Ilinois, Artis entra em ainda mais confusões, que rendem a ele diversas cicatrizes físicas. É ele também que, após engatar o relacionamento com a sra. Madeline Poole e começar a dividir a casa com ela, é preso em um episódio de racismo perpetrado por servidores públicos, responsáveis pela carrocinha. Ele passa seis meses na cadeia. Sua sentença é

"Dez anos pela tentativa de assassinato de um servidor público com uma arma mortal. Teriam sido trinta, se os homens fossem brancos."
(pág. 88)

"Idgie e Big George vão buscá-lo em sua soltura, ele volta para Birmingham onde volta a se relacionar com Madeline. Porém, pouco tempo se passa e ela o deixa em Birmimgham. Traumatizado pelo tempo passado na prisão, torna-se alcolista e morre jogado em um sofá de um hotel velho, relegado ao ostracismo e lembranças da infância."
(pág. 396)

No livro, em algumas ocasiões, a questão do colorismo, que pode ou não ter sido um assunto ao qual Fannie conhecia como estudo, fica bastante evidente. Colorismo é, no conceito apresentado pela autora Alice Walker, a diferenciação da negritude baseada em suas diversas tonalidades de pele. Diferenciação que pode causar, em um macrouniverso, a dificuldade para que pessoas de tez mais escura arrumem trabalho, por exemplo, até no microuniverso de pertencer a locais e perceber a própria identidade perante o mundo.

A história dos irmãos perpassa o tema com alguma intensidade, pois enquanto Artis é uma pessoa negra mais escura, seu irmão Jasper tem uma pele mais clara, “cor de espuma de café”. Não parece aleatório o quanto a autora leva um tom, reproduzido até pela própria família Peavey, de “fatalidade” ou "pena" por Artis. Mais estranho ainda é o menino ser descrito desde criança como mais propenso à violência.

Dentro dessas situações, o livro de Flagg se encontra justamente expondo muitas das questões. Parada do Apito é um local onde a Klan estava entre os moradores e a segregação ainda existia como Lei Jim Crow. E em um dos capítulos do livro, a autora conta quando Ocie Smith, um dos amigos de Troutville de Idgie, vai até o Café e pergunta se ela não poderia vender o churrasco para as pessoas que trabalhavam no pátio de manobras da ferrovia L&N, composta por trabalhadores mais pobres e pessoas negras. Idgie aponta para o menino que, se dependesse dela, ela os deixaria entrar pela porta da frente e comeriam lá dentro, mas havia pessoas da cidade que queimariam tudo em um minuto caso isso acontecesse. Sua solução é arrumar um espaço atrás do Café onde eles pudessem comer, almoçar e conversar por preços mais acessíveis. Mesmo assim, muitas pessoas da cidade não veem essa solução com bons olhos, o que leva a um momento de real confrontação entre Idgie e membros da KKK. Vale apontar que, apesar da Jim Crow ter atingido majoritariamente afro-americanos, pessoas nativas e latinas também sofriam com a política e, não parece incorreto supor que, desses trabalhadores da ferrovia, poderiam haver, além de pessoas negras, grupos de latinos e/ou nativos em busca de trabalho.

Uma história que também chama a atenção e perpassa toda a narrativa é quando Bill Estrada-de-Ferro, um bandido famoso na região que entrava escondido nos trens, roubava suprimentos alimentares e carvão e os jogava nas margens da ferrovia, onde, e o livro dá algum destaque a esse ponto, pessoas negras de Troutville pegavam comida e levavam para casa. Esse é também um ponto de incômodo na obra, pois, ao final, descobre-se que Bill era na verdade Idgie, disfarçada com uma touca com abertura para boca e olhos e com blackface (quando brancos se pintavam com o intuito de escurecer a pele para se passarem por pessoas negras).

Um último ponto a ser destacado é após a morte e desaparecimento de Frank Bennett (ex-marido abusivo e criminoso de Ruth), quando a culpa recai para cima de George e Idgie, e ambos sabem que, dentro daquele contexto, as chances de condenação eram altíssimas e recaíam todas sobre George. A situação se agrava porque nenhum dos dois têm um álibi para o dia da morte. Mesmo assim, e graças a um milagre divino (literalmente), eles são inocentados e podem viver suas vidas. E a morte de Frank segue sendo um mistério para a sociedade.

No geral, a escrita de Tomates Verdes Fritos é questionável em termos de representação negra e vale a problematização. Apesar de mostrar uma relação de afetividade entre os Peavey e a família Threadgoode, há fatos inquestionáveis: Sipsey começou a trabalhar na casa deles com 11 anos, Big George trabalhava como açougueiro para Poppa também com essa idade, Onzell trabalhou para a família até o final da vida. As crianças também faziam tarefas, numa forma de ajuda aos pais. Enquanto do outro lado, aos 11 anos, as meninas e meninos da família Threadgoode estavam brincando e vivendo suas vidas como crianças da sua idade.


Há um lado um tanto moralista em relação aos gêmeos, e até uma questão de colorismo meio torta, no sentido de que Artis, o gêmeo com tez mais escura, se envolve na boêmia quando chega em Birmingham e termina sua vida em um ostracismo e trauma derivados do tempo na prisão. Enquanto Jasper, com a pele mais clara, encontra seu lugar em uma sociedade de classe média em ascensão e na religião. E, mesmo com nuances que são superficialmente descritas, ele provê uma vida boa para a família e consegue cumprir com o objetivo que botou pra si. Seu final é solitário, mas, se comparado ao irmão, ainda há um lugar de descanso.

Dentro de representações ruins e extremamente problemáticas acerca da negritude, Tomates pode até não estar dentre as piores e podem ter havido boas intenções ali ao apresentar suas personagens pela ótica do afeto entre famílias, mas a história infelizmente cai em reducionismos, representações negativas e moralismos não aceitáveis. E a simples exposição de situações sem a crítica mais explícita torna determinadas partes do livro muito complicadas para uma leitura feita em 2021.

Referências

  • Racial justice (Alabama Apleesed - Center for Law and Justice)
  • Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e mito da democracia racial (Revista Cult)
  • The Whistle Stop Café as a challenge to the Jim Crow bipartition of society in Fannie Flagg’s Fried Green Tomatoes at the Whistle Stop Café (Urszula Niewiadomska-Flis) 
  • Uma era de contradições: segregação e resistência afro-americana no período progressista, 1890-1920 (Revista Eletrônica da ANPHLAC) 

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