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A humanidade em Decálogo, de Kieślowski


Krzysztof Kieślowski é um dos grandes nomes do cinema. O diretor e roteirista polonês é conhecido principalmente por sua famosa Trilogia das Cores (A liberdade é azul, A igualdade é branca e A fraternidade é vermelha), filmes que exploram o lema da Revolução Francesa, "Liberdade, igualdade e fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité no original), e se relacionam respectivamente às cores da bandeira do país.

No entanto, antes do lançamento da Trilogia Das Cores, a obra O decálogo foi lançada na TV polonesa no final da década de 1980. Kieślowski criou e dirigiu a série cinematográfica de dez episódios, escrita por ele junto de Krzysztof Piesiewicz.

Cada episódio da série apresenta um mandamento da Bíblia envolvendo acontecimentos contemporâneos, todos vividos por personagens diferentes com seus pecados a serem apresentados e questionados.

Os dez mandamentos ou o decálogo são leis que, segundo a Bíblia, teriam sido originalmente criadas por Deus para impor princípios relacionados à ética e à adoração. A humanidade teria que segui-las para conseguir ter uma boa vida espiritual consigo, com o próximo e Deus, longe dos pecados que atormentam o ser humano. Então, com base nisso, Kieślowski criou as dez histórias que são apresentadas na obra Dekalog.

Vale ressaltar que toda a trilha sonora do seriado foi composta por Zbigniew Preisner, que já esteve envolvido em outros trabalhos do diretor, incluindo a obra Sem fim (Bez końca no original), realizada após Decálogo, na já citada Trilogia das Cores, e em A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique). Além disso, Ewa Smal foi a responsável pela montagem de toda a série, assim como dos dois episódios, Decálogo V não matarás (Dekalog, pięć) e Decálogo VI não cometerás adultério (Dekalog, sześć), que futuramente se tornaram longa-metragens para o cinema.

A humanidade pelos olhos de Kieślowski

Os três primeiros episódios apresentam os mandamentos voltados à relação que o ser humano tem com Deus. Porém, nas histórias de Kieślowski, o foco é justamente a relações entre pessoas e como isso mudou ou está mudando a vida delas.

No primeiro episódio, Amarás a Deus sobre todas as coisas, nos é mostrado o conflito de religião versus ciência através dos protagonistas, pai e filho. A história segue mostrando a relação e a rotina dos dois, até que o filho, Pawel, se depara com dúvidas sobre as duas perspectivas colocadas na trama. O pai, um professor, tenta consolar a criança, até é questionado se acredita ou não em Deus. 

No segundo episódio, Não tomarás o santo nome de Deus em vão, um chefe de enfermagem e a esposa de um paciente que moram no mesmo prédio conversam sobre o estado de saúde desse homem enfermo. A mulher acaba pedindo orientação para tomar uma decisão importante em sua vida, algo que será revelado no decorrer da história. Já no terceiro episódio, Guardarás sábados e festas sagradas, somos apresentados a uma mulher que, junto de seu ex-amante, está em busca do marido desaparecido. Na madrugada da procura, os dois conversam e lembram dos momentos que tiveram no passado e o que ocorreu para que eles se separassem.

A partir do quarto episódio, temos os mandamentos voltados ao amor e respeito ao próximo. Honrarás ao pai e à mãe tem uma premissa baseada na ótima convivência entre um pai viúvo e sua filha. No entanto, ao abrir uma carta de sua falecida mãe, a filha descobre que o homem que ela acreditou ser seu pai a vida inteira na verdade não é seu pai biológico, uma revelação que acaba afetando a relação dos dois protagonistas.

No quinto episódio, Não matarás, temos três personagens principais que possuem um elo por conta de um assassinato punido com pena de morte pela justiça. A obra é considerada uma das melhores do diretor pelo público, pois coloca em conflito as punições do Estado e o quinto mandamento de Deus, abrindo reflexões sobre a pena de morte, pauta até hoje debatida na sociedade com pontos de vista distintos.

No sexto episódio, Não cometerás adultério, um jovem de dezenove anos se apaixona pela sua vizinha mais velha, e consequentemente fica obcecado por ela, vigiando-a com frequência pela janela e tentando ter contato com a mesma de diversas formas. O episódio apresenta uma referência à famosa obra Janela indiscreta (Rear window), de Alfred Hitchcock.

No sétimo episódio, Não roubarás, somos apresentados a uma jovem que engravida aos dezesseis anos e acaba colocando sua mãe para cuidar do bebê. Alguns anos depois, a jovem se arrepende e acaba raptando a criança dos pais para ter uma nova vida como mãe. Com uma narração mais focada na maternidade, o conflito apresentado entra em cena não só pelo roubo da criança, mas também pela percepção por parte da jovem de que ela roubou de si mesma o sentimento de se tornar mãe.

No oitavo episódio, Não levantarás falso testemunho, uma professora religiosa é confrontada por uma mulher judia, pois esta lhe negou ajuda durante a Segunda Guerra Mundial. A mulher e seu marido, membro da Resistência, tiveram de entregar o filho às forças nazistas por conta da recusa da ajuda da professora. Muitos consideram este episódio o mais “religioso” de Decálogo por haver muitas discussões com base em uma ética bíblica severa.

No nono episódio, Não desejarás a mulher do próximo, temos um casal que está passando por problemas na relação. Quando o homem passa a ter impotência sexual, ele decide se separar da esposa. Porém, ela insiste para que os dois continuem casados e tentem se adaptar aos problemas sexuais do protagonista. Só que mais tarde o marido descobre que a esposa tem um caso extraconjugal e se torna obcecado por isso. É importante ressaltar que nesse episódio temos novamente a obsessão e a perseguição, temas já trabalhados anteriormente, além de o protagonista ter problemas de impotência sexual, um elemento que mais tarde Kieślowski utilizará também no segundo filme da Trilogia Das Cores, A igualdade é branca.

O décimo e último episódio, Não desejarás os bens do próximo, é a conclusão da série com a história de dois irmãos gananciosos que, após o falecimento do pai, herdam uma coleção valiosa de selos, muito apreciada por colecionadores. O enredo interliga vários episódios da série já apresentados anteriormente, revelando que todas as histórias estão ligadas de alguma forma, mesmo que discretamente.

Assim, Kieślowski demonstra que conseguia construir muito bem suas personagens e a relação entre elas, principalmente quando o objetivo é colocá-las em situações contemporâneas para representar tópicos tão antigos quanto os dez mandamentos. Uma premissa incrível e com uma execução esplêndida que deixou sua marca na história da TV polonesa.

Sharline Freire
Estudante e leitora voraz de fanfics, assiste filmes e séries mais do que deveria e escuta músicas dos anos 40. Parece fria e séria, mas já chorou escrevendo sobre Sherlock Holmes e John Watson na internet.

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