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Plus…Tubular bells: uma obra-prima do rock progressivo eternizada em O Exorcista

Acho incrível quem se lembra da primeira vez que ouviu um disco importante em sua jornada. David Gilmour mesmo gostaria de ter tido o gostinho de ouvir The Dark Side of the Moon pela primeira vez. Ele nunca teve esse espanto, não sabe que sabor tem.

Não me lembro da primeira vez em que ouvi esse disco, mas me lembro da primeira vez que ouvi uma música de rock progressivo com características tais. Uma das coisas que pensamos primeiro quando falamos sobre esse gênero musical é o tempo de cada canção. São - nem sempre! - músicas longas, bastante elaboradas, cheias de camadas e conceitos. Há álbuns conceituais, há suítes que preenchem todo o lado de um vinil, há releituras de clássicos da literatura, há trilhas sonoras.

O que me fez me apaixonar pelo rock progressivo foi tudo isso, mas principalmente o tempo. Tenho um romance com o tempo, coisa que não sei bem explicar. Mas desde o começo da adolescência, adoro descobrir músicas longas, porque dentro delas tenho tempo para meditar e me desligar da vida material.

Como já relatei em outro texto, muita coisa conheci a partir das indicações do radialista Rodrigo Branco, da Rádio KissFM. Uma das mais importantes foi num programa chamado Madrugada Classic Rock - obviamente meu favorito, porque tocava um mundo de coisas fora do comum e eu achava o máximo essas descobertas, que eram como segredos revelados.

Numa madrugada, Rodrigo prometeu tocar uma música bastante famosa, mas só ia tocar metade, pois tinha apenas mais meia hora de programa. Isso mesmo, metade da música preenchia esse tempo restante. A música famosa era a famigerada “musiquinha d’O Exorcista”: Tubular Bells. Virou paixão pra vida toda.

Com 48 minutos de duração, Tubular Bells entrou no filme por acaso, e apenas pequenos trechos aparecem em duas cenas e depois nos créditos. Para encurtar a história: o diretor William Friedkin, em busca de uma música para compor a trilha sonora, deu de cara com o vinil que tinha acabado de ser lançado nos Estados Unidos em 1973, mal tocou e disse “é essa”.

O Exorcista, 1973

Bem perto da estreia, descartaram a trilha sonora original e estavam em busca de músicas para preencher a lacuna. O diretor, William Friedkin, estava no escritório de Ahmet Ertegun, o cabeça da Atlantic Records na América. Ele deparou com um disco anônimo com etiqueta branca. Tirou então da capa, pôs na vitrola do escritório de Ertegun, pousou a agulha no disco e começou “Da, dum, dum, dum…” e ele disse “é isso!”. Primeiro, ele ouviu essa coisa meio infantil, porque, obviamente, o centro de O Exorcista é a história de uma menina que foi possuída por um demônio. A segunda coisa que ouviu foram as notas, que eram bastante simples, mas havia algo na estrutura do tempo da música que era… estranho.

— Mark Kermode

Mas a música é muito mais complexa do que isso. Não só possui longa duração, ocupando lados A e B inteiros de um vinil, como também é composta por um número grande de instrumentos, tocados quase que em sua totalidade por um só homem: Mike Oldfield.

Mike Oldfield é filho caçula de uma família de Reading - Berkshire, no sudeste da Inglaterra. Nasceu em 1953 e começou a tocar violão ainda criança, por intermédio da irmã, Sally, e se aprofundou mais nos estudos musicais após episódios relacionados à saúde mental de sua mãe, Maureen. Após perder o filho mais novo, David, acabou viciada em medicamentos e vivendo boa parte da vida em instituições psiquiátricas até 1975, quando faleceu. Ter perdido a presença da mãe no cotidiano contribuiu para que Mike tivesse uma adolescência introspectiva.

A partir de um violão dado pelo pai, estudou técnicas baseando-se nas obras dos artistas folk Bert Jansch e John Renbourn, e aos doze anos já ganhava 4 libras por concerto em pubs. Aos quinze, saiu da escola por insubordinação - queriam que cortasse os longos cabelos -, e logo formou uma dupla musical com a irmã, projeto chamado Sallyangie. Gravaram o disco Children of the sun em 1969, e a dupla se separou pouco tempo depois. Oldfield foi baixista da banda Family e tocou com o irmão Terry na Barefoot, depois com a banda The Whole World, e participou de alguns dos discos de Kevin Ayers. Também tocou bandolim em Edgar Broughton Band, disco de banda de mesmo nome. Foram três discos gravados na Abbey Road Studios, ambiente que lhe deu a oportunidade de “brincar” com os instrumentos da gravadora, como percussão de orquestra, piano, mellotron e cravo. Inspirado por essa variedade de instrumentos, compôs uma peça intitulada Opus one, que gravou em fita.

Mike Oldfield, foto por Barry Plummer

Mike já havia tentado a gravação de Opus one na CBS, por exemplo, mas a falta de vocais e bateria causavam estranhamento e talvez eles tivessem pouca fé em produzir um trabalho tão excêntrico e fora dos padrões musicais da época. Continuou trabalhando como instrumentista em outros projetos, até que conheceu Richard Branson, Tom Newman e Simon Heyworth, empresário e produtores musicais da então The Manor Studio, em Oxfordshire. Desse encontro nasceria a gravadora Virgin Records.

Ao se encontrar com Tom e Simon, Mike disse “ouça isso!”, de uma forma meio impositiva, ansiosa e sem jeito, característica de introvertido. Tom colocou para tocar em um gravador e disse que ficou “cativado” pelo que ouviu, assim como Simon - que lembra como se fosse hoje a primeira impressão causada. Copiaram a fita e prometeram mostrar aos responsáveis pela gravadora, para fazer com que Mike tivesse onde gravar. Mostraram a Simon Draper, co-fundador da Virgin Records, e os três se uniram para convencer Richard, o dono, um empresário naquele estilo solteirão, que de todos era o menos entendido de música - estava mais para negócios.

O trato feito foi o seguinte: Mike viveria no estúdio The Manor e, no intervalo de outras gravações, poderia gravar seu próprio álbum. Ele então disse que precisaria de alguns instrumentos, que asseguraram que conseguiriam para ele: era só fazer uma lista. A lista era extensa, e incluía instrumentos específicos como glockenspiel e tímpanos. 

A peça mais importante apareceu por puro acaso: num dia qualquer, enquanto estavam movendo instrumentos de outro artista para o caminhão, Mike viu passarem os tais sinos tubulares, e pediu para que os deixassem com ele. 

Mike Oldfield e os instrumentos utilizados em seu disco posterior, Ommadawn, de 1975

Lista de instrumentos/efeitos tocados por Mike Oldfield:

  • Piano de cauda
  • Glockenspiel
  • Orgão Farfisa
  • Orgão Lowrey
  • Orgão Hammond
  • Taped motor drive amplifier organ chord 
  • Baixo
  • Guitarra elétrica
  • Speed guitar
  • Guitarra distorcida
  • Guitarra emulando gaita de fole
  • Guitarra emulando Bandolim
  • Violão clássico (metal)
  • Violão acústico (nylon)
  • Conjunto de percussão
  • Flajolé
  • Piano honky-tonk
  • Tímpano
  • Carrilhão de orquestra ou sinos tubulares

Fora isso, a peça ainda contou com outros artistas na bateria, contrabaixo clássico, flauta e vozes de coral, incluindo sua irmã, Sally Oldfield.

O título “Tubular Bells” veio a partir da narração do cantor e compositor Vivian Stanshall, que participou como mestre de cerimônias do disco, anunciando de forma deliciosa os principais instrumentos tocados no lado A do vinil. Os sinos tinham que ser tocados num volume mais alto que todos os outros instrumentos - e para isso foi usado um martelo de verdade para tocá-los. Por ter posto os sinos em evidência e por ter adorado a narrativa do excêntrico Vivian, Mike achou que esse seria um título perfeito.

A capa foi feita pelo fotógrafo Trevor Key, e mostra um sino dispenso no ar, deformado pelo uso. Mike gostou tanto que pediu que nada atrapalhasse a cena, nem mesmo título e nome, solicitando que estes fossem escritos discretamente no topo, em laranja. 


Richard queria que houvesse letra na música, numa passagem que fosse - ao contrário de todos os envolvidos, que não concordavam com a ideia -; então Mike, a contragosto, o fez. Mas fez de pirraça: extremamente bêbado, gravou vozes guturais que aparecem no lado B, e sofreu as consequências, ficando rouco nos quinze dias seguintes.

Ao final, a clássica Sailor’s Hornpipe (quem nunca assistiu a Popeye?), composta por membros da Marinha Real Britânica aparece, seguida por um solo de violão, fechando o disco de forma divertida e tocante.

Todo esse preparo e técnica, por sua vez, não vieram sem angústia. Mike trabalhava constantemente, seja tocando os vários instrumentos, aproveitando o que aparecia em sua frente - como o piano honky-tonk, que era de uso da equipe da cozinha do estúdio -, seja compondo, a ponto de desenhar miúdas pautas e preencher com notas em carteiras de cigarro que viviam em seu bolso.

A questão, que suponho que as pessoas possam não compreender, é que quando gravamos o álbum, Michael estava um desastre mental. Andava por aí com os olhos úmidos de lágrimas quase o tempo todo, estava num estado terrível. Ele estava numa inquietação terrível pela ideia de ser mortal. E no entanto, o que se passava em sua cabeça era eterno, lindo, perpétuo, sabe.

—Tom Newman

Foi muito angustiante para Mike toda a ideia de apresentar e divulgar o trabalho, não era nada disso que queria. Desconfortável até com entrevistas, morreu de medo quando pediram para que se apresentasse ao vivo. Mas aconteceu, em junho daquele ano, no Queen Elizabeth Hall. Richard o levava para o evento num carro que ganhou de presente de casamento. Mike, apavorado, queria desistir, estava disposto a largar tudo e ir embora e, por desespero, Richard ofereceu o carro para que se apresentasse. Trato feito: ele se apresentaria.

Inseguro e perfeccionista que era, Mike Oldfield ficou totalmente insatisfeito com o resultado da apresentação - que contou com diversos outros músicos, como seus irmãos Terry e Sally, e Mick Taylor dos Stones -  e esperava por vaias, mas o que aconteceu foi um ruidoso aplauso que fez com que se perguntasse “como assim? Não mereço isso!”. Em dezembro, voltou a se apresentar, dessa vez na BBC.

Tubular bells e O Exorcista 

Historicamente, não há um elo muito profundo entre a música e o filme, mas é possível perceber essa conexão em imagem e som, como um costurar retalhos que transforma fragmentos em uma peça completa. 

A mudança de personalidade de Regan foi acontecendo aos poucos, com sintomas aqui e ali. Há essa aura juvenil por todo o filme, por se tratar de uma menina que, de gentil e inocente (veja ela falando ao telefone com o pai, tímida, sem saber o que dizer; ou os animaizinhos de argila que criava, ou ela sempre obediente à mãe, numa relação perfeita, boa demais para ser verdade), vai ao extremo, proferindo impropérios, se automutilando com um crucifixo, depois retornando ao estado obediente, educado, doce, quando se muda de cidade com a mãe-amiga. Isso são as passagens de Tubular bells, um piano aqui, um violão acústico acolá, um mellotron, um bandolim, um gutural de Mike Oldfield vociferando possuído por litros de whiskey, uma guitarra violenta, um solo de baixo (e que baixo!), e depois uma canção naval clássica onde é impossível não se lembrar do marinheiro Popeye. 

Fora isso, há o próprio processo de adolescência e juventude de Mike, marcados pelo histórico da mãe e essa quebra de configuração familiar, que também aconteceu com Regan e Karras. Esse terrível despertar para uma realidade que ignora, se impõe sobre e muitas vezes se opõe à sensibilidade e necessidades artísticas, emocionais e psicológicas do sujeito.

Os resquícios da inocência e o peso da realidade em O Exorcista

São duas obras repletas de camadas, nas quais você não consegue prestar atenção em tudo de uma vez, então vai saboreando aos poucos, montando peças, investigando cenas, refletindo sons, como num quebra-cabeças. Você pode assistir hoje e temer Pazuzu, amanhã sentirá raiva de Chris, depois sentirá o peso da culpa de Karras, ou a miséria imigrante que assombra toda a história. Pode concordar com cientistas e achar que aquilo não passa de um fenômeno passível de medicamentos; pode acreditar na possessão de fato. É uma história complexa que não pode ser meramente explicada como “a peleja do diabo com o dono do céu”. E assim também é Tubular bells

Sinos? Sim, eles são tocados o mais alto possível no final da primeira parte. A famosa introdução no piano, órgão farfisa e glockenspiel não revela o que está por vir. Mas há tanta melodia para se explorar! São meses de sentimentos angustiantes e conflituosos de um adolescente com suas próprias questões familiares, que se aproveitou dos lugares em que trabalhou para poder criar sua obra-prima. Mike e Regan conviveram com esse estouro que é o adolescer. Mike e Regan afrontaram a ordem instituída. Mike, Regan e Karras enfrentaram seus demônios, cada um à sua maneira. E assim fazemos todos nós, diariamente, descortinando cenários, removendo - ou vestindo - máscaras sociais, ignorando ou apontando dilemas e contradições no complicado ato que é conviver em uma sociedade cada vez mais globalizada, complexa, monstruosa.

Referências





Arte em destaque: Mia Sodré 

Helen Araújo
Filha de paraibanos nascida en São Paulo em 1992. Historiadora e artesã com espírito setentista, escreve sobre tudo, especialmente música, símbolos, mitos e migrações. Quando não escreve no Querido Clássico e Um Velho Mundo, fabrica onde escrever: cadernos no Estúdio São Jerônimo.

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