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A monstruosidade das górgonas na arte


As górgonas são criaturas monstruosas da mitologia grega cujo olhar é capaz de transformar aqueles que as olham diretamente em pedra. Seus cabelos são substituídos por um emaranhado de serpentes. Diferentemente do que se comenta sobre, elas não são naturalmente monstruosas, mas assumem essa condição após a terrível injustiça cometida contra Medusa, considerada, é preciso lembrar, aceitável para o período. 

Medusa e suas irmãs, Euríale e Esteno, eram belíssimas mulheres que atraíam muitas atenções, Medusa especialmente. Poseidon, o deus dos mares, interessou-se pela jovem e decidiu que a teria para si, a violentando no templo da deusa Atena, a deusa da sabedoria e das estratégias. A deusa, cuja virgindade era uma das características de seus princípios, sentiu-se profundamente ofendida e decidiu punir a Medusa, que a seu ver era a responsável pelo ocorrido, e a suas irmãs com os horrendos cabelos de cobra.

Na lenda grega, Perseu, o herói, é enviado para matar a górgona por Polidectes, rei da ilha de Sérifo. Ele recebe ajuda de alguns deuses, Atena e Hermes, que lhe presentearam com equipamentos que seriam úteis em sua jornada, como uma foice de adamante (um material de alta dureza relativo ao diamante), sandálias aladas, a capa da invisibilidade de Hades e um saco de pano para colocar a cabeça decapitada de Medusa. O jovem aproxima-se durante o sono da criatura, observando-a através do reflexo de seu escudo para não encará-la e ceifa sua cabeça que reage numa agonia sincrôna ao ato. Do corpo inerte da criatura surgem dois outros seres: Pégaso, o cavalo alado, e Crisaor, o gigante dourado, sendo o ato associado ao do nascimento e eles à prole de Medusa. Sua cabeça, no entanto, foi ensacada e levada à deusa Atena, que passou a usá-la junto ao próprio escudo para provocar temor em seus inimigos. Da mesma forma, Medusa passou a ser representada em artes mortuárias, como ícones apotropaicos (de proteção) e em escudos nas guerras, na mesma intenção da deusa Atena, na crença de que o temor e defesa da criatura levaria à vitória gloriosa.

Durante o período arcaico na arte, uma górgona era representada de forma bastante ambígua e animalesca, diferentemente de como são caracterizadas desde o período clássico. Na descrição referente, o rosto de uma górgona era semelhante ao de um porco, com olhos esbugalhados e ferozes; a boca expansiva e sorridente portava enormes presas, de onde saía sua língua protuberante. Os cabelos eram estilizados em mechas, não cobras, suas orelhas eram furadas e em seu rosto de nariz símio se observava uma ostensiva barba.

Antefixo com górgona pintada em terracota, 540 a.C.

Segundo a Teogonia, de Hesíodo, as górgonas apresentavam em suas grandes cabeças escamas de dragão, presas de um porco, mãos protuberantes e asas douradas. Em contrapartida, a bela Medusa que conhecemos hoje tem suas primeiras alusões datadas do início do século XV a.C. São desconhecidos os motivos que teriam levado a essa transformação, mas deduz-se que a intenção artística era ou de provocar a piedade do espectador por meio da humanização e feminilidade da criatura ou provocar riso perante a posição do herói, de amedrontamento perante uma bela e frágil mulher.

As górgonas ficaram extremamente conhecidas após o interesse de artistas do império romano em retratar a bela Medusa, especificamente após a composição da escultura “Medusa Rondanini” (assim denominada pelo nome do autor), um marco na representação desses seres mitológicos que padronizou Medusa em sua figura bela com harmoniosos cachos pendendo de sua cabeça alada, com duas cobras entrelaçadas abaixo de seu pescoço, numa alusão às serpentes de seu cabelo e, possivelmente, à barba anterior, de forma bastante sutil. É essa a Medusa que podemos aludir ao observar a famosa grife de roupas Versace. Ela traz a delicadeza e a potência de femme fatale com um mistério sedutor capaz de atrair o interesse dos compradores da marca.

Medusa Rondanini, século 5 a.C.

Durante o período barroco, a Medusa de Caravaggio emergiu no cenário das artes, representada pelo pintor italiano barroco através da pintura a óleo sob uma “rotella”, um comprido escudo que alude ao armamento utilizado na Grécia clássica. Ele trouxe à tona o horror da górgona, esse que ele gostava de representar em suas obras, no olhar clemente das figuras retratadas. A obra tornou-se um ícone muito conhecido do pintor por sua execução técnica e a magnífica caracterização de sua dor agoniante, trazendo um certo tom de realismo quando observada por sua dramaticidade teatral.

A Medusa da pintura, assombrosa já ao primeiro relance, representa a figura da mulher-híbrida mais famosa da mitologia grega. Seus olhos, estrategicamente localizados no centro do escudo, nos fisgam com facilidade. É possível perceber o horror e perplexidade em seu olhar saltado, de volume pitoresco tão expressivo que remete ao tridimensional. Após uma observação impressionante de seu rosto, é mais perceptível a visão das serpentes obscuras e quase realistas que adornam a cabeça, num movimento que nos direciona ao sangue exageradamente derramado, convidando o olhar agora à cena geral, do momento da decapitação da górgona. É também intencional o fato de ser representada em um escudo, pois tradicionalmente na Grécia clássica eram esculpidas imagens da Medusa decapitada e agonizante em armamentos, considerada como símbolo de coragem, força e triunfo aos guerreiros, assim como no mito de Perseu.

Medusa, de Caravaggio, 1567

Como visto, a Medusa passou a ser uma das criaturas mitológicas mais adoradas da história, com sua imagem sendo representada em inúmeras obras, sejam elas artísticas, literárias ou cinematográficas. Também tornou-se um ícone feminista, inspirando milhares de mulheres ao redor do mundo junto à deusa hindu e mãe obscura Kali e Lilith, a lua negra, por sua história inspiradora de dor e ferocidade.

A simbologia dessas mulheres monstruosas será reverenciada pelas novas gerações e elas são e serão vistas como os ícones instigadores, complexos e incontestavelmente atemporais que inspirarão o conhecimento sobre o caráter de ferocidade, que desde antes da Antiguidade é vital para a nossa sobrevivência dentre as verdadeiras monstruosidades sociais. 

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