últimos artigos

Um Corpo que Cai e a sua abordagem sobre depressão e suicídio

Em 1958, chegava aos cinemas Um Corpo que Cai (Vertigo no original), hoje considerado a obra-prima de Alfred Hitchcock. Na época de seu lançamento, o filme não foi sucesso de público e nem de crítica. Em uma entrevista ao cineasta francês François Truffaut, publicada em seu livro Hitchcock/ Truffaut,  o diretor britânico afirma que a bilheteria apenas "cobriu os gastos". Por anos, o filme ficou entre os menos prestigiados dentre suas obras, mas em 2012, a revista Sight & Sound, da British Film Institute (BFI) o classificou como o melhor filme de todos os tempos, cargo antes ocupado durante cinquenta anos por Cidadão Kane, de Orson Welles

É evidente a importância dessa obra para o cinema mundial. O filme é constantemente estudado por críticos devido a sua relevância para o gênero do suspense, mas em especial ao thriller psicológico. Um Corpo que Cai retrata a história de John "Scottie" Ferguson, um ex-detetive que, após presenciar a morte de um colega de trabalho durante uma perseguição, se aposenta da polícia. Depois do evento traumático, ele acaba desenvolvendo uma acrofobia aguda que o impede de subir em lugares altos. Mesmo tendo encerrado seu trabalho como detetive, Scottie aceita ajudar um ex-colega de faculdade que precisa que sua esposa seja vigiada, pois acredita que ela possa está possuída por um espirito que a põe em perigo. O detetive aceita a missão, mas acaba entrando em um jogo que o empurra para uma espiral de loucura, paixão e obsessão, na qual sua sanidade é posta em risco. 

Trauma

No início do filme, vemos Scottie (James Stewart) em uma perseguição. Ele acaba se desequilibrando e fica preso no alto de um prédio. Scottie tenta ajudar um colega de trabalho, mas acaba caindo e morre. Tudo é visto pelo olhos do protagonista. O episódio trágico faz com que a personagem desenvolva um Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Os sintomas são perceptíveis logo de cara. Durante uma conversa com sua amiga e ex-noiva, Midge (Barbara Bel Geddes), ele deixa claro que se aposentou dos trabalhos na polícia e que o trauma lhe causou acrofobia (medo de altura) tamanha que o fez encerrar a carreira. Esse medo de altura manifesta-se por meio de uma vertigem, ou seja, uma sensação de estar tudo girando ao seu redor (que, durante o filme, é mostrada por um movimento de câmera criado pelo diretor, o travelling-zoom). Percebemos isso quando ele tenta subir em um banco alto no apartamento de sua amiga e não consegue. Scottie também carrega o sentimento de culpa, sente-se impotente por não ter salvado o policial. Mesmo que lhe digam que não foi culpa dele, ele continua acreditando que sim. 

Scottie (James Stewart) preso no alto de um prédio

Sua qualidade de vida está totalmente comprometida, ele não tem mais a mesma rotina de antes e precisa se adaptar a uma nova realidade. Ainda no apartamento de Midge, existe um diálogo no qual ela comenta que, para seu amigo se curar da fobia, ele precisa passar por outro choque traumático. Aqui, percebemos como os tratamentos para doenças psiquiátricas mudaram ao longo dos anos. O mais indicado seria que Scottie buscasse um apoio psicológico para que ele pudesse tratar de forma saudável seu transtorno. Quando não recebe os devidos cuidados médicos, uma fobia como essa pode se transformar em outras doenças físicas e mentais, como a ansiedade e a depressão. 

A personagem de Stewart acaba indo visitar um amigo que solicita sua ajuda. Percebemos o quanto Scottie parece racional em um diálogo com Gavin Elster (Tom Helmore). Nele, o ex-colega de faculdade pede que Scottie vigie a sua esposa, Madeleine (Kim Novak), pois ele acredita que a mulher está possuída por espírito suicida e que, por isso, está correndo perigo. O detetive não acredita muito, pois defende que o melhor seria levá-la "a um psiquiatra, a um psicólogo ou a um neurologista". Apesar de não crer na hipótese para o comportamento da esposa do amigo, ele aceita investigá-la. 

Suicídio 

Desde o início, sabemos que a esposa de Gavin não está bem, mas essa é uma informação que é apenas transmitida a nós, uma vez ainda não a vimos. Mas é preciso se atentar ao modo como o marido nos coloca essa informação; ele apenas acredita em algo que nem sequer tem comprovação médica. Sua esposa não teve atendimento com um médico especializado. O empresário quer que o detetive funcione como um possível "médico" para determinar se a mulher está bem do juízo ou não, e isso revela certa negligência da parte dele, pois em situações como essas o indicado seria a ajuda de um profissional da área. 

Sabemos também que Gavin pode internar sua esposa. Isso causa um certo estranhamento porque essas instituições, em que pessoas consideradas "loucas" eram internadas, não são muito comuns hoje em dia. Devido ao tipo de tratamento desumano que os pacientes recebiam em tais locais, já que os mesmos serviam como depósitos para que familiares se livrassem de parentes indesejáveis, os hospitais psiquiátricos foram fechados, dando início a novos tipos de tratamentos. Por exemplo, no Brasil, desde 2001, devido a uma lei, os hospitais psiquiátricos foram substituídos por CAPs (Centro de Atendimento Psicossocial), que ofertam tratamentos mais humanizados, no qual os pacientes não precisam ser necessariamente internados. Isso revela como a sociedade tratava quem tinha transtornos mentais, como seres que precisavam permanecer confinados.                    

Voltando ao filme, chega o momento em que temos o primeiro contato com Madeleine, que coincide com o do ex-detetive. Ela aparece em um restaurante com o marido, e no primeiro olhar que Scottie lança à jovem, ele enxerga apenas um lado do rosto dela, em uma cena permeada pelo tom vermelho, revelando o que Madeleine pode representar, amor e perigo. 

Após esse encontro, conhecemos, junto com o protagonista, a misteriosa mulher. Em meio a uma perseguição, ele vai descobrindo características estranhas e melancólicas dela. Kim Novak consegue transmitir uma personagem que esconde algo, talvez uma tristeza profunda ou um segredo. Madeleine está sempre fora da realidade, como se sua mente não estivesse ali presente. 

Quando questionado, Gavin diz que o espírito que se apossou do corpo de sua esposa é o de Carlotta Valdes, bisavó dela. Tudo parece fazer mais sentido quando um historiador local conta a Scottie e Midge a história de Carlotta: ela havia tido um caso com um homem muito rico e casado. Ele abandonou a amante e levou embora o filho que tiveram juntos. Carlotta ficou desnorteada e desenvolveu depressão, o que a levou ao suicídio. 

Com essa nova informação, o detetive começa a acreditar que a esposa do amigo realmente está possuída por um espírito. E Hitchcock de fato induz o espectador a acreditar que Madeleine quer se matar porque está possuída pelo espírito da avó. Mas Midge ainda tenta resgatar o lado racional de Scottie, não conseguindo acreditar na possível história, mas abraçando a crença de que Madeleine tinha, na verdade, perdido a sanidade, e isso a fazia ter ideação suicida. Em mais um dia de investigação, Madeleine muda a rota e vai a Fort Point, localizada no lado sul da ponte Golden Gate. Ela se aproxima ainda mais da baía e se joga de lá, em uma tentativa de suicídio. A forma como ela comete o ato é tão silenciosa que Scottie leva um susto e instantaneamente se joga para salvá-la. 

Kim Novak como Madeleine Elster em frente à ponte Golden Gate

É necessário ressaltar que a escolha do local para essa cena não aconteceu por acaso. A ponte Golden Gate é considerada o local onde as pessoas mais se suicidam no mundo. Em dados levantados desde a inauguração, em 1937, mais de 1.200 pessoas se jogaram de lá. Assim, Hitchcock possivelmente colocou aquela personagem ali apenas nos avisando de que ela iria cometer o suicídio. Mas uma pergunta se apresenta: por que na baía, e não na ponte em si? O diretor usou de jogos psicológicos; se ela se jogasse da ponte, a morte seria certa, já que a queda é de 130 km/h até atingir a água. Dessa forma, seria impossível sobreviver. Então, ele a coloca apenas na Fort Point, para que ela caia, mas isso ainda lhe dê a chance de ser salva, o que de fato acontece. 

Quando recobra a consciência, ela se vê na casa do homem que a salvou. Ao questionar o que lhe aconteceu, Scottie responde que ela desmaiou, o que aumenta a confusão na cabeça do ex-detetive, já que ela diz que nunca entrou no Palácio da Legião de Honra, galeria de arte em que se encontra o quadro de Carlotta Valdes e que Madeleine visita com frequência. Isso gera o questionamento: quem está tentando cometer suicídio é Carlotta ou Madeleine? Essa figura do duplo é muito comum dentro do longa, em vários momentos vemos a personagem de Novak em frente a espelhos, dando a impressão de que existe duas dela. 

No dia seguinte, os dois saem juntos, e quando vão a Muir Woods e ao Cypress Point, percebemos como a moça parece confusa e cansada. Ela corre em meio às rochas em direção ao mar, e mais uma vez há o perigo do suicídio. Em outro diálogo, ela confessa seu medo de forma desesperada a Scottie, e ele se sente na posição de salvador, diz que nunca irá soltá-la e a beija em meio a força do mar. 

"Scottie, não estou louca! Não quero morrer, mas alguém dentro de mim diz que devo."
Pouco mais da metade do filme, ambos, que já estão ligados amorosamente, vão a uma igreja localizada na cidade onde Carlotta nasceu. Após Madeleine contar a Scottie sobre um pesadelo que teve, ele a leva até lá na tentativa de fazê-la entender que não está possuída por um espírito e que ele poderá protegê-la. Porém, infelizmente, ela sobe na torre do sino e se joga lá de cima, e ele não consegue impedí-la, pois sua acrofobia o impossibilita de subir as escadas. Scottie apenas ver o corpo de sua amada caído no telhado e, atônito, vai embora do local. 

Depressão


A partir da morte de Madeleine, entramos em contato com a depressão, algo que parecia permear a Scottie, mas que passa a ser mais evidente. Antes, sabíamos que ele não conseguia subir em lugares altos, e também estávamos cientes do trauma por que ele passou com a morte do colega. Mas aqui, isso se torna muito mais potente, pois ele tinha um laço com a pessoa que viu mais uma vez morrer. Ele amava Madeleine, e a dor que ele sente agora é muito mais violenta. 

A culpa é escancarada para o personagem em um julgamento no qual se declara a morte de Madeleine Elster como suicídio. Scottie sente-se impotente por não tê-la impedido de se matar. Ele começa a ter pesadelos permeados pela queda e pela morte. O uso de efeitos visuais animados dá a impressão de que ele está caindo, e isso reforça como a mente dele está funcionando de forma bagunçada, confusa.

Midge e Scottie quando ele é internado no hospital psiquiátrico

Scottie entra em depressão profunda e acaba se internando em um hospital para se tratar. Quando uma amiga o visita, percebemos seu estado catatônico. Ele não fala nada, apenas expressa pelo olhar a tristeza que carrega dentro de si. Quando Midge conversa com o psiquiatra do local, este lhe diz que Scottie sofre de uma "depressão aguda, com complexo de culpa". A cura pode demorar muito tempo. Ela reconhece que pode levar anos, mas reforça que musicoterapia, a que ele está sendo submetido, não irá cura-lo.

"Ele a amava. Ainda a ama. E quer saber? Mozart não vai ajudar."

Scottie acaba vivenciando o que poderia ter acontecido a Madeleine: a internação. Os fortes pesadelos indicam um dos sintomas de sua depressão. Quando vemos a personagem no quarto, já identificamos que a musicoterapia é um erro enquanto tratamento. O uso dessa técnica é muito comum; estudos já comprovaram a eficácia na redução dos níveis de depressão, mas isso não produz efeito na personagem, pois não é o tipo de tratamento adequado a ela.

Obsessão

Depois de receber alta do hospital psiquiátrico, o ex-detetive começa a revisitar os locais onde sua amada esteve. Em todos eles, a figura de Madeleine estava presente, qualquer silhueta loira o fazia lembrar dela. Scottie começa a ficar obcecado, e o homem que vimos no começo da história parece não existir mais; a situação em que se encontra é de total desorientação, seu lado racional se dissipou e sua sanidade é posta em risco.

Entra em cena uma nova personagem, Judy (Kim Novak), uma mulher idêntica a Madeleine, porém menos sofisticada e sem o cabelo loiro. Scottie a segue até seu apartamento e coloca em xeque a identidade dela. Com isso, o mistério sobre o suicídio é revelado, apenas para quem assiste. 

Judy (Kim Novak)

Descobrimos que Scottie, assim como o espectador, foi cruelmente manipulado para que um plano diabólico de assassinato pudesse acontecer. Após tomar conhecimento da verdade, ele passa a apresentar um comportamento sombrio, manipulador e obsessivo que não conhecíamos: sua vitima se torna Judy. Ele faz com que ela mude totalmente a aparência e se torne a "sua Madeleine". Ela permite apenas para que ele a ame. Porém, quem ele ama é a mulher que viu morrer. Scottie acredita que ela está morta e, mesmo assim, quer ressuscitar as lembranças com outro alguém. 

A cena em que Judy aparece trajada como a falecida é totalmente impactante: ela está coberta por uma névoa verde e fantasmagórica, que dá a impressão de que ela faz parte da imaginação de Scottie. Em entevista a Truffaut, Hicthcock descreve essa cena como:

"Há outro aspecto, que chamarei de 'sexo psicológico', e que é, aqui, a vontade que anima esse homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas simplesmente, esse homem quer se deitar com uma falecida, é pura necrofilia."
Judy aparece vestida como Madeleine

As cenas finais do filme deixam o espectador aflito. Scottie e Judy têm um embate em que a verdade é revelada, e a cura da acrofobia do ex-detetive se apresenta estranhamente na morte de mais uma personagem. 

Em Um Corpo que Cai, as personagens aqui citadas, com exceção de Midge, não estão isentas de más intenções. Até o protagonista, que no começo se mostrou um herói, revela seu lado manipulador e obsessivo. Além do suspense, o diretor apresenta um drama psicológico no longa. Ainda que a real intenção de Hitchcock não tenha sido abordar transtornos mentais, ele se vale deles para enriquecer o thriller. Mesmo que a forma como os problemas psicológicos das personagens foram apresentados não correspondam à realidade de uma pessoa que passa por eles, isso não anula o debate que podemos ter. 

Traumas precisam ser tratados com psicoterapia, apoio psiquiátrico ou medicação. Mas o fato é que é fundamental que haja um tratamento. Ao trazermos as personagens para o mundo real, percebemos que Scottie, desde o início, devia ter buscado cuidar de sua saúde mental, recuperar a condição de vida anterior ao trauma que lhe causou vertigem. Uma pessoa que tem pensamentos suicidas precisa seriamente de ajuda psicológica; a Madeleine que conhecemos em Um Corpo Que Cai necessitava disso, não de outro relacionamento amoroso em sua vida. O mesmo é valido para a depressão, uma doença que pode levar alguém dar fim à própria existência. Ainda que os métodos de tratamentos tenham evoluído muito da década de 1950 para cá, falar sobre saúde mental ainda é um tabu. Estamos sendo negligentes quando evitamos discutir sobre isso, doenças psicológicas podem estar presentes no nosso dia a dia sem que percebamos quem está sofrendo. 

Maria Fontenele
Piauiense, nascida em 2000, se arrisca a escrever desde pequena. Apaixonada por reprises de filmes antigos, sonha em viver num musical dos anos 60, mesmo sem saber cantar. Chora ouvindo Scorpions, e tem uma lista tão grande de livros que jura que vai ler tudo antes de morrer.

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)