Lançado há 34 anos, o livro Tomates Verdes Fritos, escrito por Fannie Flagg, é ainda bastante analisado e estudado até hoje e sua adaptação para as telas figura como um clássico. A história, para além de uma amizade, possui representação ambígua do relacionamento entre as personagens Idgie Theadgoode e Ruth Jamison no livro e no filme.
Lançado em 1987, o livro Tomates Verdes Fritos no Café da Parada do Apito (publicado pela Globo Livros, com tradução de Vera Caputo) foi logo adaptado para o cinema pelo diretor e roteirista Jon Avnet, com roteiro dividido entre ele, Fannie e Carol Sobieski. Guardadas as devidas modificações da mídia literária para a audiovisual, a história-base de ambos segue, em duas linhas temporais diferentes, os relacionamentos interpessoais entre a idosa Ninny e Evelyn Couch no ano de 1985 e Idgie e Ruth Jamison, nas décadas de 1920 até por volta de 1950.
Durante a narrativa, Ninny conta histórias da vida em Parada do Apito, um vilarejo no Alabama, Estados Unidos. E, principalmente sobre Idgie e Ruth, personagens que nos acompanham durante todo o tempo.
Idgie é filha de Momma e Poppa Theadgoode, e a mais moleca e diferente do grupo de irmãos, seja por não corresponder aos padrões de feminilidade da época, como usar vestidos, ou por ser mais aventureira. Sua personalidade é delineada como sendo “determinada” desde o começo e seus pais, apesar de acharem que trata-se uma fase, são compreensivos a ponto de dar um terno de presente para Idgie. Após a morte de seu irmão e melhor amigo, Buddy, a adolescente Idgie conhece Ruth Jamison, uma jovem um pouco mais velha que a ajuda a passar pelo luto.
No filme, há uma pequena modificação nesse sentido. Ruth é uma crush de seu irmão Buddy e, por conta de um acidente, ele morre e Idgie e Ruth se aproximam. Essa modificação é curiosa, pois, na obra cinematográfica, a conhecemos a partir de um olhar que é apresentado na heterossexualidade da personagem. No livro Narrativas de Desejo no Livro de Ruth, escrito por Stephanie Day Powell, a autora observa a maneira com que esse começo já dá o tom de como os paralelos com o livro bíblico do Antigo Testamento de Rute são presentes durante a narrativa. Rute foi uma mulher moebita que se casa com Malom, cuja mãe se chama Naomi (ou Noemi). Quando tanto o marido de Naomi quanto seus filhos Malom e Quiliom morrem, Naomi aconselha as noras a deixarem-na e a seguirem suas vidas. Umas delas o faz, porém Rute segue com ela, se comprometendo com esse laço com a passagem mais conhecida do Livro (1: 16-17):
"Não me inste para que te deixes e me afaste de ti; porque aonde quer que tu fores, irei eu e, onde quer que pousares à noite, ali pousarei eu; o teu povo é meu povo, o teu Deus é meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu e ali serei sepultada; me faça assim o Senhor e outro tanto, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti."
Uma leitura queer do Livro de Rute ainda gera bastante controvérsia em determinadas igrejas e denominações religiosas, mas, em linhas gerais, algumas argumentações sugerem que Naomi e Rute podiam ter uma relação romântica não explicitada, mas codificada e sugerida nos escritos. Certas denominações religiosas questionam essa interpretação, alegando que é impossível por uma série de razões, algumas delas bastante questionáveis, como por exemplo: Naomi e Rute eram casadas com homens e a Bíblia condena a homossexualidade. Entrar nessa questão é um grande vespeiro. Mas o fato é: a) a leitura da Bíblia, assim como de qualquer livro, é um exercício de interpretação constante, vai de cada um e de cada vivência, e b) o sentido da palavra queer não é apenas sobre orientação sexual ou relações romântico-sexuais, então mesmo que não se tenha uma leitura de lesbianismo no Livro de Rute, sua leitura queer (e feminista) pode residir no fato de Naomi e Rute continuarem juntas mesmo após a morte de seus maridos. É o amor entre mulheres apresentado e o fato de Rute ser um Outro, uma estrangeira naquelas terras, como sugerem algumas leituras.
Em Tomates Verdes Fritos, tanto filme quanto livro, outra relação, essa bem explícita, com o Livro de Rute é o pedido de socorro que Ruth manda para Idgie, com a passagem 1:16-20, já citada em partes alguns parágrafos acima. Esse pedido de socorro ocorre depois que Ruth, ao sair da Parada do Apito, vai para Valdosta, onde se casa com Frank Bennet. Frank é descrito como um dândi, de boa condição financeira e pessoa que conseguia tudo o que desejava (pelo dinheiro, pela força ou pela influência) e ninguém o via como uma alguém ruim ou manipulador. Frank queria Ruth, e a conseguiu. Por certo tempo, Ruth tenta amá-lo, mas após o casamento as coisas mudaram, Frank mostra esse lado violento, com agressões físicas, psicológicas e estupros. No livro, por conhecermos o pensamento da personagem, ficamos sabendo que por muito tempo ela entendeu que essas violências eram uma espécie de “castigo merecido” por ela gostar de Idgie. E não é difícil imaginar a dor da personagem em carregar essa “culpa” e sofrer essas várias violências diariamente. No filme, esse aspecto de culpa não fica presente.
Na adaptação livro-filme, é necessário modificar e retrabalhar em certos aspectos que combinam mais a um certo de narrativa, e isso não é um demérito, de maneira alguma. Mas o que se percebe é que, mesmo que o livro também não seja explícito sobre a relação de Ruth e Idgie, o filme deixa evidenciado ainda mais uma ambiguidade.
No livro, a relação das duas é descrita como bastante próxima, uma não saia do lado da outra. E todos percebem, até mesmo os pais de Idgie, que alertam para a família inteira que a menina “estava tendo uma paixão (crush)” e ninguém deveria tirar sarro disso. Assim que Idgie salva Ruth de Frank e a leva de volta para Parada do Apito, a moça e os pais de Idgie conversam, e há uma parte que se sobressai na conversa:
"RUTH: (...) eu nunca deveria tê-la deixado há quatro anos, sei disso agora. Mas vou tentar compensar tudo e nunca mais magoá-la, dou minha palavra.POPPA: Bem, só espero que saiba o que está fazendo. Como sabe, Idgie é osso duro de roer.(....)POPPA: (...) Só queremos que você saiba que faz parte da família agora, Ruth, e só podemos ficar felizes porque nossa filha tem uma companheira como você."
Depois de um tempo, Poppa empresta dinheiro para Idgie para que ela e Ruth comecem o Café da Parada do Apito juntas. O livro não diz, em nenhum momento, palavras como namoradas, mas os sinais estão lá. De certa forma, considerando o lugar onde se passa a história (em um vilarejo pequeno do Alabama na década de 1930), é de se imaginar que ninguém diria mesmo. Uma curiosidade é que o Alabama só aceitou legalmente os casamentos homoafetivos em 2015. Outro ponto é que Flagg já deu algumas declarações de que “não queria levantar bandeiras” sobre o tema. A autora nunca falou sobre como se identificava, mas é sabido que ela se relacionava com mulheres e viveu por muito tempo com a escritora Rita Mae Brown. Essas são algumas das hipóteses levantadas para explicar o porquê de no livro não ser explicitado em palavras se Idgie e Ruth eram namoradas. Rita também comenta em sua autobiografia que o livro foi inspirado na vida da tia de Flagg, que morou por muitos anos com sua companheira, mas ficou viúva em determinado momento.
Após Ruth ser resgatada, ela descobre que está grávida de Frank e ao saber da notícia é imediatamente acolhida pela família de Idgie. Não apenas isso, Idgie é participante ativa da vida de Buddy Jr., mais conhecido pelo apelido Toco, e é reconhecida como tia. E, novamente, se considerarmos o contexto conservador de cidade pequena em um estado sulista dos Estados Unidos na década de 1930-1940, Toco chamar Idgie de tia pode ainda mais reforçar essas relações que precisavam ser escondidas (ou não explicitadas) para existirem em paz.
Nos estudos de mídia, alguns conceitos são importantes para nomearmos certas coisas, como a sensibilidade queer, que é uma sensibilidade que pessoas que têm a vivência queer ou são LGBTQIA + capturam com mais facilidade. É uma troca de olhares que nunca termina em beijo, o uso da palavra “companheira” (que até hoje ainda é usado), os sinais estão presentes. E, por muito tempo, relações romântico-sexuais entre mulheres não poderiam ser retratadas, seja por censura ou por medo de reações adversas de público, e quando eram “mostradas” ou escritas havia uma ambiguidade estratégica, como em Tomates Verdes Fritos.
E esse conceito abarca diversos tropos bem conhecidos sobre relações amorosas entre mulheres: relacionamentos entre mulheres em um ambiente conservador (como internatos em Senhoritas de Uniforme, de 1931), vampiras (Carmilla é um exemplo clássico, inclusive o podcast do Querido Clássico tem um episódio bem interessante sobre o assunto, vale a pena conferir), entre outros.
A crítica de cinema Karen Hollinger identifica Tomates Verdes Fritos como “o filme lésbico ambíguo”, (o que vale também para o livro), pois é
"um tipo de filme que alcançou considerável popularidade mainstream tanto com a audência lésbica quanto com mulheres heterossexual por uma recusa de se identificar como um retrato de uma amizade entre mulheres ou um romance lésbico. A orientação sexual das personagens nunca ficam explícita, e fica para o público a interpretação."
De maneira geral, apesar de nunca falar a palavra, o livro acaba descrevendo mais situações que nos permitem pensar que o que se passa entre as duas está para além de uma grande amizade. Livro e filme são hoje reconhecidos por possuirem temática lésbica, apesar da autora do livro e do diretor e roteiristas do filme não assumirem esse lado. Mas, no final das contas, cabe a nós a interpretação. Pessoalmente, a primeira vez que assisti ao filme e li o livro ficou bastante evidente como não era apenas sobre amizade. Mas, para quem nunca consumiu nenhuma das duas obras, faço esse convite. Apesar de no artigo analisar principalmente um aspecto, ambas as obras apresentam temáticas interessantes e nos fazem entender por que ela é falada e estudada até hoje.
E ao amor que não ousa dizer seu nome, Ruth e Idgie o vivem por um bom tempo.
Referências
- Narrative Desire and the Book of Ruth (Stephanie Day Powell)
- Assessing the Vanishing Lesbian in Book-to-Film Adaptations:
- A Critical Study of Rebecca, Fried Green Tomatoes, and Black Panther (Felicia Coursen)
- What Happened to Celie and Idgie?: "Apparitional Lesbians" in American Film (Jan Whitt)
- Bíblia Sagrada (traduzida em português por João Ferreira de Almeida, 2010)
Arte em destaque: Mia Sodré
UAU, que trabalho fantástico de pesquisa e análise... Parabéns pelo texto, muitíssimo bem desenvolvido!
ResponderExcluirParabéns. A melhor análise que ja li sobre essa obra prima. Muito bem desenvolvido.
ResponderExcluirVirei fã!