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A Sucessora: o olhar e a manifestação do desejo

Olhar e ser visto. Quem nos olha? Para o que olhamos? Com que olhar? O que podemos aprender com telenovelas sobre o gesto de olhar e sermos olhados? Em 1978, a adaptação do livro A Sucessora, de Carolina Nabuco, para o formato telenovela nos deu uma aula sobre a questão do olhar e de quem nos olha.

A premissa da telenovela é bastante simples: uma jovem do interior, da Fazenda Santa Rosa, Marina (Susana Vieira), casa-se com um milionário, Roberto (Rubens de Falco), do Rio de Janeiro, e vai morar com ele. A partir do momento em que coloca os pés no casarão onde morará com o marido, ela começa a se sentir assombrada pelo fantasma de Alice, a falecida esposa de Roberto.

A Sucessora, o romance, faz um mergulho muito profundo nos sentimentos de Marina. Ela se sente deslocada o tempo todo, pois os amigos de seu marido, "O Grupo", fazem questão de dizer o quanto Alice era melhor. Estamos a todo instante seguindo os pensamentos da nova esposa. Como adaptar isso para uma novela?

É sempre um desafio levar uma obra literária para outro formato. É um jogo de perdas e ganhos. No caso de A Sucessora, acredito que houve um ganho maior em relação ao livro pelo fato de ter deixado um pouco mais claro uma das questões que atravessam a obra: para onde estamos olhando? E o que fazemos com essas imagens? 

No cinema, a questão do olhar é mais discutida. O olhar do cinema foi forjado por homens brancos e heterossexuais. São eles que olham para as mulheres e definem imagens sobre elas. Um ângulo de câmera nos diz muito sobre como uma mulher é retratada. Nos filmes noir, por exemplo, as mulheres são quase sempre hiperssexualizadas. A mensagem é de que uma mulher com o controle da própria sexualidade é perigosa. Esse é apenas um exemplo dentre tantos.

A partir desses olhares, definidos por homens brancos e heterossexuais, é que olhamos para o que nos rodeia. Como uma mulher lésbica, não consigo dizer até que ponto esse olhar masculino hegemônico me influenciou, tanto em meus afetos quanto nos meus relacionamentos amorosos.

No caso de A Sucessora, o olhar que atravessa a telenovela não é o masculino, mas sim aquele que outras pessoas têm sobre alguém que já está morto. Tal olhar é influenciado pelas memórias e experiências que os vivos tiveram com a morta. A todo momento, Marina será lembrada de que ela só passará a ser aceita se incorporar a imagem que os outros, por terem convivido com Alice, têm da falecida: uma mulher divertida e dona de si.

O olhar em A Sucessora é materializado pelo quadro de Alice que, quando a novela começa, está na sala-de-estar. O primeiro encontro de Marina com a falecida é marcado por uma sensação muito forte de que ela é uma intrusa na vida de todos ali. Enquanto Marina contempla o quadro, que é filmado acima dela, em uma clara mensagem de superioridade, a governanta, Juliana (Nathalia Timberg), entra na sala. Elas têm um curto diálogo, no qual Juliana desculpa-se por não poder ter recebido a patroa, mas o que está acontecendo de verdade não está na fala das duas. Juliana olha diversas vezes para o quadro, como se estivesse endeusando a falecida patroa, enquanto Marina evita encará-lo.

Para sentir-se menos intimidada, Marina pede que o quadro seja transferido da sala-de-estar para uma saleta, onde Alice costumava ler. É lá que as dinâmicas com o quadro da falecida vão se dar durante toda a novela. Apesar de ter sido transferida, a memória de Alice continua viva em cada cômodo da casa. A diferença é que, na saleta, existe a materialização dessa memória.

Em quase todas as cenas no local, o diretor da novela, Herval Rossano, deu um jeito de filmar o quadro de relance, como se ele estivesse participando dos diálogos, como se estivesse pensando no que os vivos estavam dizendo. Isso, inclusive, se dá pelo uso de um espelho, que reflete o quadro. O que esse ângulo pensado nos diz? Podemos pensar no espelho como um reflexo de nós. Porém, um reflexo distorcido. O que queremos que seja refletido. Ali, no quadro, está apenas a perfeição da morta. Seus defeitos jamais são refletidos.

A dinâmica mais profunda e forte da questão do olhar em A Sucessora acontece com Juliana. Ela, mais do que qualquer outra pessoa na casa, é quem frequenta aquela saleta. Existem cenas de quase cinco minutos nas quais Juliana permanece em silêncio diante do quadro. Ela olha e sofre. Mas por quê? E aí que Sigmund Freud se regozija: é o sentimento de querer ser a mulher do quadro e, ao mesmo tempo, possuí-la. 

Nathalia Timberg como Juliana

Juliana quer ser Alice, mas também quer tê-la. É uma relação que existe apenas na telenovela, e ela aconteceu graças às conversas que Nathalia Timberg teve com Manoel Carlos sobre a personagem. Juntos, eles decidiram deixar a relação ambígua, o que adiciona mais uma camada de complexidade à personagem. O olhar que Juliana tem sobre Alice recai em duas coisas bastante importantes: nas atitudes da governanta em relação à nova patroa e no enlouquecimento.

O enlouquecimento de Juliana, por conta do olhar que ela tem sobre Alice, acontece porque ela se percebe apaixonada pela patroa. E uma personagem LGBTQ+ tinha que ser, obviamente, punida naquela época. A paixão por uma mulher é algo tão perigoso que beira as raias do manicômio. O fato de Juliana, ao final da novela, ser internada é a manutenção da heteronormatividade

No entanto, por conta a ambiguidade acordada entre Manoel Carlos e Nathalia Timberg, há outra leitura possível para esse enlouquecimento. Ela incorpora o quadro. Dessa forma, o olhar já não é mais o desejo afetivo/sexual, mas sim o de ser aquela pessoa. O olhar de Juliana é de que a patroa era uma mulher perfeita, pois ela atendia a todas as expectativas sociais. Juliana queria alcançar a mesma perfeição, boa parte disso por causa de seus sentimentos ambíguos por Roberto. Se ela fosse uma cópia da falecida, por que ele não haveria de se interessar por ela?

Susana Vieira como Marina

Porém, por mais que Juliana se esforce, o que ela recebe de Roberto é piedade. Em uma das cenas mais profundas da novela, Roberto propõe à governanta que ela faça uma viagem a Paris, para que descanse a cabeça, como se quisesse dizer que deveria esquecer dele. A governanta responde que não há mais tempo e discorre sobre a passagem dos anos. São cinco minutos de cena, e ali podemos perceber o desejo latente que Juliana tem em agradar aos outros. Sem isso, ela se torna vazia, um fantasma vivo dentro daquela casa.

Quanto às atitudes de Juliana, é a partir do olhar e da percepção de que a nova esposa não é adequada que os conflitos da novela começam. O olhar ganha a dimensão material no momento em que Juliana faz da vida de Marina um inferno. O sofrimento psicológico de Marina serve ao culto à morta, que serve a Juliana, e assim por diante.

Inclusive, uma das cenas em que o olhar alheio sobre Marina fica muito evidente é quando acontece durante uma ida ao cassino. Marina está empenhada em usar a mesma roupa e maquiagem da falecida esposa. Marina se maquia, veste as roupas de Alice e desce a escada. Ao chegar lá embaixo, Roberto a agarra pelo braço e exige que ela suba e se "torne Marina" novamente. É um paradoxo interessante: todos a pressionam para ser Alice, mas quando ela finalmente o consegue, é mandada de volta ao quarto. A partir daquele momento, Marina tenta ser Alice e começa a definhar. Ela anda e age como a falecida, mas todos a repreendem. É como se o olhar não existisse mais no momento em que Marina toma uma atitude e decide incorporar a personalidade da falecida.

A Sucessora é uma novela com muitas camadas, e é muito triste perceber que diversos capítulos foram cortados na edição do DVD, o que nos impossibilita o acesso a toda a história. De qualquer forma, já dá para perceber, pelo que sobrou, os motivos de essa obra ter se tornado imortal. Carolina Nabuco costumava assistir aos capítulos da novela de mãos dadas com Manoel Carlos. Só por isso já podemos ter dimensão do casamento perfeito entre criador e criatura. 

O que foi pouco abordado no livro, ao ser adaptado para a televisão, toma a forma de imagens potentes. Juliana olhando para o quadro de Alice é uma dessas imagens porque ela nos fala sobre poder. Sobre o poder de criarmos imagens sobre outras pessoas, por vezes tão imaculadas que nem a morte pode apagá-las. Não há nada tão poderoso quanto o poder de manipular a imagem de alguém que não pode mais se defender em vida.


Arte em destaque: Mia Sodré 

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