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Querida Kitty, um romance de Anne Frank

O ano era 1942, a Holanda estava ocupada por tropas alemãs e a perseguição aos judeus estava em ascensão de forma ferrenha. Por isso, Anne Frank e sua família se escondiam em uma casa nos fundos do prédio da empresa de seu pai, esconderijo que por dois anos foi suficiente para que a família de Anne e mais alguns agregados conseguissem escapar do que os cercava. Ali, Anne passou a registrar o dia a dia de sua vida no esconderijo em um diário, que ganhou o mundo tempos depois.

Naquele que hoje conhecemos como O Diário de Anne Frank, a menina expressou um grande desejo de publicar um romance ao fim da guerra, nomeado por ela como A Casa dos Fundos. Já como uma preparação para seu projeto de escrita, a mais nova integrante da família Frank passou a elaborar ideias minuciosamente em seu diário. Com muita sensibilidade e um senso de humor invejável para aqueles tempos, a partir de cartas destinadas a Kitty, sua amiga imaginária, Anne relata como era o cotidiano e as relações na casa onde todos estavam escondidos, nos mostrando também o clima de terror que viviam com a escalada do conflito mundial. Agora, contados mais de setenta anos da publicação inicial, a editora Zahar, realiza o desejo de Anne Frank e publica pela primeira vez em português seu romance epistolar baseado nas páginas de seu caderno.

Para o romance, Anne incrementou ainda mais a descrição do momento histórico que acontecia ao seu redor. De dentro do esconderijo, ela passou a expressar seus sentimentos diante da perseguição alemã contra os judeus. Focando muito mais no perfil dos personagens, notadamente, ela excluiu trechos que considerava não tão interessantes aos seus futuros leitores, demonstrando seu talento para a escrita. Trechos polêmicos de suas declarações foram retirados por ela mesma do romance, a exemplo da frase "Sinto a necessidade de ver minha mãe como exemplo e de respeitá-la e, na maioria das coisas, minha mãe é mesmo um exemplo para mim. Mas um exemplo daquilo que eu justamente não devo fazer". É impactante ler e se deparar com tantos sentimentos e franqueza, que partiram de uma menina de treze anos. Devido aos ataques da guerra, infelizmente, Anne não conseguiu finalizar a revisão para concluir o romance.

Os escritos originais de seu diário vão até agosto de 1944, mas a revisão em forma de cartas para o que veio a ser publicado como Querida Kitty se encerra com a carta escrita por ela em 29 de março daquele mesmo ano — justamente a carta em que ela fala sobre o sonho de publicar seu romance, ora interrompido. No último parágrafo escrito por Anne encontramos sua visão de esperança e confiança  nos cidadãos holandeses que sobreviviam à invasão e ao domínio nazista. No entanto, meses depois, o  esconderijo da família Frank foi descoberto pelo exército nazista, e Anne foi enviada a um campo de concentração, onde morreu meses depois, tendo sua escrita e sonhos interrompidos.

"Há uma coisa boa em tudo isso: a sabotagem contra o governo está crescendo à medida que os alimentos pioram e as ações contra o povo se tornam mais severas. O serviço de distribuição de alimentos, a polícia, os funcionários públicos, todos participam para, das duas uma, ajudar os seus concidadãos ou os entregarem, mandando-os assim para a prisão. Felizmente, apenas uma pequena percentagem de cidadãos holandeses está do lado errado."
Ler Querida Kitty nos faz questionar se estamos realmente diante de uma obra literária ou de um documento de registro histórico. A qualidade literária do texto é inquestionável. No período em que esteve escondida, Anne realmente desenvolveu-se como escritora. Foi uma grata surpresa o lançamento deste fragmento como um romance independente, reconhecendo Anne como a escritora que sempre foi. 

A edição do clássico Zahar conta ainda com um capítulo dedicado a uma nota das tradutoras Karolien Van Eck e Ana Iaria, que tecem comentários sobre as escolhas e desafios da tradução baseada no idioma original escrito por Anne, o holandês. Por fim, o posfácio demonstra-se arrebatador e emocionante, escrito pela professora Dra. Laureen Nussbaum, nascida em Frankfurt e sobrevivente do nazismo. Posteriormente, a pesquisadora se estabeleceu no mesmo bairro que a família Frank e ficou amiga deles, emigrando, mais tarde, para os Estados Unidos, onde, como teórica literária, ocupou a cadeira de Filologia Alemã na Universidade Estadual de Portland.

Um livro realmente emocionante e muito bem escrito, Querida Kitty realiza o sonho e assim, fecha o ciclo iniciado por Anne Frank com suas anotações diárias. Mais que um romance epistolar, é uma viagem no tempo e um lembrete para que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial não se repitam nunca mais. 


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Arte em destaque: Sofia Lungui 


Allan Azevedo
Carioca, morando na Serra Gaúcha. Fã incondicional de livros, filmes e quadrinhos. Nas horas vagas gosta de escrever contos de horror e fazer resenhas do que assiste e lê.

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