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O narrador de A Hora da Estrela como delator do intelectual brasileiro

A Hora da Estrela, último livro escrito e publicado pela genial e emblemática escritora brasileira Clarice Lispector, no ano de 1977, é uma obra de rara profundidade e complexidade para suas poucas páginas e o enredo, à primeira vista, tão simples.

Não há leitor que não se compadeça por Macabéa, a retirante nordestina que vemos passar por desgraça atrás de desgraça ao longo do pequeno livro. No entanto, minha proposta é para que, neste instante, olhemos para Macabéa como criação de Rodrigo S. M., o narrador, e analisemos o que a relação entre os dois tem a nos mostrar.

“Como começar pelo início se as coisas acontecem antes de acontecer?”, se indaga Rodrigo logo na primeira página. De fato, o livro expõe um conflito duplamente anterior ao nascimento de Macabéa – isto é, à sua criação por Rodrigo S. M. Trata-se do conflito entre o intelectual e a representação do subalterno, que se antecipa ao advento de Macabéa pois está presente tanto na cabeça do leitor – ainda que ele não o note – quanto na de Rodrigo, que veremos representar também a posição da própria Clarice Lispector.

Marcélia Cataxo como Macabéa na adaptação cinematográfica de A Hora da Estrela

É desse conflito que Rodrigo está tratando ao revelar os “antecedentes” de sua história, como o fato de ter pego “no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”, conhecendo assim os fatos que pretende com frieza contar. Ele também revela ser um dos personagens mais importantes da história, a qual diz não se tratar “apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”, e ter o dever de conta-la.

Contudo, a questão encontra-se subjacente às suas palavras e, até mesmo, à sua consciência. Rodrigo S. M. já nos mostrou que Macabéa é basicamente um tipo, uma pessoa que se conhece por inteiro numa simples olhada, uma moça igual a tantas outras que se encontra por aí. E não se trata de ficção, ele não cansa de afirmar. Trata-se da verdade, não lhe resta dúvida alguma quanto a isso. Sua certeza é tamanha que vem acompanhada de um profundo sentimento de obrigação de mostrar ao mundo a realidade da “nordestina”. Há, antes, um dever, uma necessidade até, não um conflito. Mas Rodrigo reconhece que há complicações ao criar uma personagem tão distante socialmente dele próprio.

Sua escrita deve ser simples, ele diz, pois somente assim ele poderia “captar a sua (de Macabéa) delicada e vaga existência”. Para falar de sua heroína, uma moça tão vazia de vida e miserável em diversas maneiras, Rodrigo alega precisar “não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão”. Essas são apenas algumas das experiências pelas quais o escritor acredita ter que passar para se aproximar de sua personagem e passá-la para o papel em palavras tão insípidas quanto ela. Mas voltemos à questão da necessidade, fator que conecta o escritor fictício, o intelectual da novela, a suas contrapartes no mundo real. 

“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.”

Rodrigo escreve sobre o que acredita ser a realidade, pois se fascinara com a ideia de transgredir seus próprios limites. Talvez também visse a proposta como uma possibilidade de alavancar sua medíocre carreira literária. Macabéa, por sua vez, é a escolhida para representar a realidade (por Rodrigo S. M.), pois desde que surge, numa olhada corriqueira pela rua, ele se sente acusado por ela. Macabéa o sufoca, na verdade, são seus preconceitos que lhe apontam o dedo através da moça, e escrever sobre ela é o único meio que o escritor encontra para defender-se.

Ora, quantos não foram os escritores que, como Rodrigo, se prestaram a falar sobre a realidade como se fosse esta a sua missão, como se denunciá-la fosse algo maior do que fazer mera ficção? Outros ainda dirão ser questão inevitável de se tratar em sua escrita, de modo bastante semelhante a Rodrigo. No Brasil, há aos montes as obras literárias que busquem retratar a vida de brasileiros subalternos. Para seus autores, Rodrigo já adianta, a narrativa “é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta”.

Como Clarice nos mostra o processo pelo qual Rodrigo S. M. cria Macabéa, expondo seus sentimentos e suas considerações enquanto a escreve, seus colegas do lado de cá poderão se identificar ao longo de todo o texto com o cinismo e a arrogância de Rodrigo. Como a dentina de seus dentes, eles também estarão ali, expostos, da primeira à última página da novela. Curioso é que eles, assim como Rodrigo, no fundo de seu ser, reconheçam que seus personagens, estes “outros” que procuram retratar, são cópias de si mesmos. 

“Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca.” Isso é o que diz Rodrigo a poucos momentos de iniciar a história de fato, que Macabéa e tudo que com ela se passa são parte dele. Poucos parágrafos adiante, ao colocar a moça em frente a um espelho, Rodrigo ainda diz enxergar nele o seu próprio rosto barbado, e não o da moça. E este talvez seja um bom momento para que o próprio leitor se observe no espelho de Macabéa.

Essa estrutura expositiva da escrita de Rodrigo S. M. também provoca os leitores que não se encontram na posição de representar o subalterno. Seriam só deles os preconceitos de que Macabéa é feita, ou será que podemos encontra-los em nós mesmos? Afinal, em que medida Macabéa se assemelha à imagem que se tem de retirantes nordestinos, principalmente entre pessoas de uma classe média urbana, da qual Rodrigo faz parte, e de onde ele supõe serem seus leitores?

Mas não são apenas os leitores de Clarice Lispector e seus colegas de profissão que fazem parte do estrato social que tal leitura de A Hora da Estrela está expondo; a própria escritora também os acompanha. Clarice é uma intelectual que se vê levada a compartilhar com Rodrigo S. M. suas considerações sobre a escrita de alguém como Macabéa. Escrevendo durante a ditadura no Brasil, sempre se esperou da autora que denunciasse os males do país com uma literatura mais socialmente comprometida. Aqui, em sua última obra, ela parece responder a essa expectativa.

O que seu livro consegue mostrar é que falar sobre sujeitos subalternos, marginalizados pela sociedade em que vivem, pode ser tão complexo quanto falar de si. Rodrigo S. M. tira de Macabéa sua voz, pois acredita poder falar de sua própria realidade melhor do que ela mesma, e então a enche de seus preconceitos, igualando-a a uma massa de nordestinas que ele jura serem idênticas a ela. Mas ela não lhe permite tamanha diminuição, e invade a sua escrita, fazendo com que o escritor perceba não a compreender tão bem quanto acreditava. Macabéa pensa, e quando Rodrigo vê isso acontecer, ainda que de relance, fica desconcertado.

Se essa é uma resposta de Clarice, é uma resposta que aprofunda o que já havia sido feito até então por seus colegas escritores. A Hora da Estrela mostra que a realidade é mais complexa do que imaginamos e, por mais bem-intencionados que possamos estar, nossos preconceitos insistirão em entrar no meio do caminho de nossas escritas e de nossas leituras, e é preciso muita atenção para nos desviarmos deles.

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Referências:



Arte em destaque: Sofia Lungui 

Jonathan Fenile
Vou lendo a vida e escrevendo o que encontro em suas linhas.

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