Apesar disso, há muitos anos eu não lia seus mistérios. Confesso que, após algumas obras, o formato de seus livros pode cansar pela previsibilidade na ordem dos acontecimentos. Por isso, quando vi disponível na Globoplay a série The ABC Murders pretendia apenas reencontrar este mundo e me divertir com uma boa investigação chefiada pelo querido detetive belga Hercule Poirot. Porém, como uma defensora da máxima o livro é sempre melhor, não resisti e tive que ir primeiro a ele para depois assistir à adaptação. E, para o bem ou para o mal, é impossível não comparar ambas as produções.
Dando meu melhor para não relevar qualquer spoiler — afinal, neste tipo de livro não dá para ter este tipo de escorregada! —, em Os Crimes ABC somos desde o início apresentados ao assassino, configuração esta mantida na adaptação da série. A grande trama, portanto, envolve observarmos como Poirot chegará à resposta que procura. Enfrentando um inspetor pouco simpático, o detetive nos maravilhará com sua genial linha de raciocínio e atenção às minúcias invisíveis a todos os demais envolvidos.Narrada a maior parte do tempo em primeira pessoa pelo amigo de Poirot, Capitão Arthur Hastings, e ambientada na Londres dos anos 30, a história nos apresenta um serial killer que escolhe suas vítimas e localidades em ordem alfabética, deixando sempre para trás um guia ferroviário ABC aberto na respectiva. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com um formato totalmente diferente aos quais já estava acostumada nos livros de Agatha Christie. Se normalmente o leitor acompanha a investigação e a descoberta pelos olhos de Poirot, aqui essa regra se inverte.
Como, em tese, não há suspeitos, somos conduzidos, por meio de amigos e familiares das vítimas, a entender a motivação deste assassino. Para Poirot, todos sabem algo sobre o caso, mesmo que pessoalmente não tenham consciência disso. São os detalhes, à primeira vista desimportantes, a chave para a resolução dos crimes.
"Mas a mim me parece que uma reunião dos que têm interesse pessoal no assunto... e também, posso dizer, conhecimento pessoal das vítimas... pode obter resultados que uma investigação externa não pode querer obter."
A obra mantém aquele ritmo didático que conhecemos, mas é claro que a Rainha do Crime não seria tão óbvia e brilhantemente nos presenteia com grandes reviravoltas para ninguém acusá-la de monotonia. Quando finalmente pensamos que entendemos a teia de pistas criada pela autora, somos atirados num plot twist de respeito!
Na série de apenas três episódios de uma hora de duração, acompanhamos o mesmo pano de fundo. Inicialmente, achei que seria bastante fiel, mas depois vamos percebemos que muitas foram as modificações realizadas na produção: amores, conflitos, traições e cenas de constrangimento foram inseridas para adicionar, imagino, recursos e atrativos que apenas o audiovisual pode oferecer.
O excêntrico personagem do A.B.C., por exemplo, recebe muito mais destaque e tem seu perfil enriquecido de detalhes antes inexistentes.
Esteticamente achei a série muito bonita! O figurino, as paisagens e as ambientações são encantadoras e muito bem feitas. Sem conseguir dar maiores destaques às atuações, admito que apenas no último episódio foi que percebi Rubert Grint na pele do rabugento inspetor Chrome — um grato reencontro do ator com os fãs da série Harry Potter.
A maior e mais incômoda divergência de enredo se dá em relação ao personagem mais importante e amado por todos, Hercule Poirot. Apesar dos seus contidos modos europeus, traço sempre presente nos livros, o detetive também é muitas vezes retratado com aquela arrogância espirituosa que nos faz suspeitar do caminho de suas investigações, mas ao mesmo sempre confiar de que ele certamente solucionará o mistério.
John Malkovich como Hercule Poirot em The ABC Murders |
Na série, Poirot está inserido em uma Londres xenófoba e hostil. Sua desagradável relação com Chrome protagoniza as investigações e seu misterioso passado permeia os três episódios. Mediante trágicos flashbacks, um Poirot melancólico e bastante diferente daquele ao qual estamos acostumados é construído para nós. A inovação em criar uma vida pregressa ao detetive, antes de sua vinda ao Reino Unido, é interessante, porém o estranhamento aos acostumados com suas maneiras altivas e cerimoniosas é inevitável.
Aos que não conhecem as histórias da Rainha do Crime ou especificamente Os Crimes ABC, a série certamente garante algumas horas de diversão e suspense e quem sabe até provoca a curiosidade em conhecer e se aprofundar nas mais de 80 obras da autora.
A única certeza que temos é a de que não se pode subestimar Agatha Christie. A confiança, como Poirot nos ensina, é sempre a destruição e queda do assassino satisfeito consigo mesmo — e no caso, também do leitor investigador!
"Um assassino é sempre um jogador. E, como muitos jogadores, um assassino normalmente não sabe quando parar."
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