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Maria e João: O Conto das Bruxas, uma história sobre bruxaria e o poder feminino


Por mais que os amemos, os filmes de terror podem seguir fórmulas muito previsíveis, levando o espectador de terror comum a se preparar para ver na tela cenas sanguinárias ou com “jump scares”. No entanto, Gretel & Hansel, lançado no Brasil com o título Maria e João: O Conto das Bruxas, é um filme sombrio e inovador que, apesar de ser inspirado no conto clássico, recebeu uma roupagem nova e emocionante séculos depois de sua criação original.

Os contos de fadas


Os contos hoje considerados infantis nem sempre foram destinados às crianças. Tais narrativas eram feitas para um público que se emocionava com a figura do contador de história, alguém importante para o entretenimento naquela era. Com a evolução, a forma dessas narrativas foi se adequando às novas formas de linguagem, os livros se popularizaram e seu uso se destinou à crescente alfabetização da sociedade. 

A versão original de João e Maria, de 1882, sofreu alterações culturais durante os anos. A narrativa trazida pelos Irmãos Grimm, que reduziram a termo a história que era passada oralmente até então, encerrou a versão esterilizada para a classe média do século XIX, porque, originalmente, só era mais uma demonstração da rudeza da vida da Idade Média, devido à fome constante, onde o homicídio infantil era frugal. E é por tais problemas da época que os irmãos são abandonados no bosque: para que morressem ou simplesmente desaparecessem, porque não podiam ser alimentados. Nas primeiras edições do conto de fadas produzidas pelos Grimm, não existia madrasta; era a mãe que persuadia o pai a abandonar aos seus próprios filhos, atenuando assim a violência contra as crianças.

Outro fato que merece destaque sobre a diferença dos textos originais clássicos para as versões mais modernas é o de a mãe, ou madrasta, morrer quando as crianças matam a bruxa, o que nos leva a crer que na versão clássica a mãe/madrasta e a bruxa, são, de fato, a mesma pessoa, ou que pelo menos a personalidade delas esteja fortemente ligada.

Ilustração de Otto Kubel (1900)

De qualquer forma, o conto dos Irmãos Grimm é muito mais sombrio. As duas crianças são abandonadas pela própria mãe, para morrerem de fome na floresta, já que os pais são muito pobres e não podem sustentá-los. Quando voltam para casa, tendo sobrevivido à bruxa, encontram os pais mortos de fome. A versão foi bastante amenizada ao longo do tempo, mostrando o pai feliz pela volta de João e Maria, e arrependido por tê-los deixado partir. De uma forma ou outra, a história permanece interessante.

Maria e João readaptados


No filme, somos convidados a voltar a um tipo de medo mais simples. Lembra da sombra na parede do seu quarto que o assustou? Ou da história assustadora que seu irmão mais velho lhe contou que o deixou apavorado e fez com que você dormisse de luz acesa por um longo tempo? O bom terror não se baseia apenas em sustos ou ações desenfreadas. As raízes do medo que conhecíamos quando crianças existem em sombras sutis, e são esses os temores que realmente geram aquele frio na espinha assustador. Maria e João: O Conto das Bruxas entende esse tipo de terror e o aproveita tão bem que deixa o espectador fascinado, da melhor maneira possível.

A abordagem da história de Oz Perkins, em 2020, muda o foco da narrativa. Em vez de um conto de advertência, o filme torna-o uma história sobre o poder feminino e a feitiçaria. Apenas o título já captura as mudanças de Perkins: o nome de Maria aparece primeiro, e a atriz que faz o seu papel (Sophia Lillis), é a heroína desta história.

O enredo começa de forma semelhante ao conto popular, com os irmãos Maria e João vivendo em uma área densamente arborizada, só que, desta vez, a história mostra Maria como sendo uma jovem com alguns dons sombrios.

Quando os irmãos são mandados para a floresta por seus pais, que não podiam mais alimentá-los, se inicia uma jornada em busca de trabalho e moradia. Então, Maria aceita uma entrevista de emprego com um velho perverso que precisa de uma governanta. Olhando de soslaio para a adolescente, ele pergunta se “sua virgindade está intacta”. Esse é o catalisador que acaba jogando as duas crianças sem-teto nos braços de uma bruxa malvada que quer comê-las no jantar. Depois de tudo que eles passaram até aquele momento, a bruxa Helga (Alice Krige) é honestamente a pessoa mais legal do filme para com as crianças.


As reverberações de traumas e abusos, e como as mulheres podem chegar ao poder em um mundo projetado para homens, são os motores que impulsionam esta abordagem surpreendentemente feminista de um conto de fadas perturbador, escrito pelo roteirista estreante Rob Hayes. Embora seja muito comum hoje em dia que roteiristas do sexo masculino lutem para adotar uma psicologia feminina em seus textos, com a intenção de conseguir uma maior aprovação dos produtores, tudo sobre Maria e João: O Conto das Bruxas é mais estranho, mais inteligente e muito mais cinematográfico do que esperávamos, graças a algumas escolhas fascinantes feitas pelo diretor Perkins.

Na execução do roteiro, Oz já inicia sua visão distorcendo a história: a troca do nome original para “Maria e João” nos mostra que a reviravolta é óbvia: esta é a história de Maria, onde João (Samuel Leakey), é quase que excluído da trama, e praticamente desaparece durante metade do filme.

Assim como não faz mais sentido algum contar histórias de princesas que devem entender seu lugar de fragilidade e dependência diante de uma figura masculina, também não há mais sentido contar histórias de crianças que se perdem na floresta para pessoas que vivem em ambientes urbanizados, e que tem à sua disposição smartphones com internet, capacidade de enviar mensagens que chegam instantaneamente aos destinatários, e de quebra, ainda tem um GPS. Embora essas tecnologias muitas vezes nos deixem na mão (afinal, a cobertura de sinal não é homogênea), já não é comum que crianças se percam em florestas. O tempo passa, as organizações sociais sofrem mudanças, e as histórias, se quiserem ser metáforas para as nossas vidas, precisam mudar ou ser ressignificadas. Como diz a bruxa Holda (Alice Krige) para Maria: a história que está sendo contada está errada.

Histórias de bruxas, no geral, costumam ser sobre o feminino, e qualquer história com o estereótipo de uma mulher velha e má como bruxa deve ser questionada. O feminino em Maria e João: O Conto das Bruxas é um poder, e não um conjunto de regras sociais a serem seguidas pela mulher. Maria tem cabelo curto, contrariando o estereótipo patriarcal de feminilidade. Além disso, como já mencionado, ela se recusa a aceitar um emprego que traria segurança para a sua família, mas no qual seria assediada, preferindo passar fome a se submeter à exploração do seu corpo.


Em diversos momentos do filme é apresentada a forma geométrica triangular: a bruxa sentada embaixo de um triângulo, quando a história da filha de Holda é contada pela primeira vez, o formato da casa de Holda, além de alguns planos e contra-planos durante as filmagens. O triângulo é uma figura que, na bruxaria, representa justamente o homem, o falo e, sobretudo, o fogo. Não demora para que percebamos que a trajetória de Maria nesse novo filme não é salvar a si e seu irmão e voltar para casa, mas sim amadurecer como uma mulher livre e independente em uma sociedade machista.

A representação do elemento fogo (através do triângulo) ajuda a justificar a fotografia amarelada do longa metragem, e serve também para alertar que a casa de Holda, como no conto original, apesar de parecer aconchegante, não é um local confiável. Na história que conhecemos, a bruxa planeja comer as crianças perdidas na floresta, o que, nesta adaptação, torna-se um ritual para libertar Maria da figura masculina que a acompanha. A personagem, no entanto, compreende que essa libertação não precisa vir da anulação total do homem. Ela entende que em sua jornada de libertação deve buscar a justiça na igualdade de direitos entre homens e mulheres, uma visão realmente mais voltada para o que é o feminismo.

Mesmo com estas análises e contrapontos, é bastante claro que o conto fantástico foi levado para o universo do gênero de terror atmosférico. O desconhecido e a nossa fragilidade diante de algo que parece muito maior e mais forte, são os elementos que compõem o horror da obra de Oz Perkins. O feminismo embutido na trama joga ainda com um outro terror real: a desunião entre as próprias mulheres.

Holda, a bruxa, acaba se tornando vilã pelas escolhas erradas que fez em sua vida, ainda que elas sejam justificadas pelo trauma vivido, o que torna a personagem muito mais profunda. O embate entre Maria e Holda é justamente porque ela impõe à Maria (que acaba por descobrir-se bruxa também), uma lógica violenta e destrutiva, ao invés de propor uma relação de compreensão e igualdade.

Maria e João: O Conto das Bruxas é um espetáculo visual e um trabalho incrível de adaptação. É um conto de fadas para quem está cansado de ouvir a mesma história sendo contada sempre. Não se trata mais de contar histórias para alertar, proibir e criar medos: é preciso mudar a realidade e emancipar todo aquele que precise ser emancipado.



Texto: Allan Vagner
Imagem de destaque: Mia Sodré 
Allan Azevedo
Carioca, morando na Serra Gaúcha. Fã incondicional de livros, filmes e quadrinhos. Nas horas vagas gosta de escrever contos de horror e fazer resenhas do que assiste e lê.

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