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Xeque-mate da Rainha: o legado de Katherine Parr

“Divorciada, guilhotinada, morta, divorciada, guilhotinada. Esse é o histórico das ex-mulheres do meu noivo.”
1543, corte Tudor. Katherine Parr, uma dama recém-viúva, é obrigada a se casar com o todo-poderoso rei da Inglaterra, Henrique VIII. Apesar de a crueldade do rei louco e suas esposas assassinadas (sendo a mais famosa Ana Bolena, a segunda esposa do monarca) serem de conhecimento geral, quase nada se sabe em termos de memória coletiva sobre sua sexta e última rainha além do que já foi dito na primeira frase deste texto.

Foi por isso, e também por ser uma grande leitora de tudo o que retrata esse período da história, que fiquei tão feliz ao descobrir que a Paralela, selo da Companhia das Letras, havia lançado um livro que trata justamente da Katherine. Em Xeque-mate da Rainha, a escritora britânica Elizabeth Fremantle nos apresenta aos horrores vividos pelas mulheres em uma ambiciosa corte Tudor.

Pelas mulheres, no plural. Isso porque, apesar de Katherine ser a personagem principal do terror psicológico que vivia qualquer mulher escolhida por Henrique para ser sua nova rainha, não é somente pelo ponto de vista dela que conhecemos os corredores dos palácios, as intrigas e os horrores que cercavam a todos na época. Uma das figuras principais do livro é Dot, criada de Katherine, que mostra o submundo das pessoas anônimas, sem posses ou títulos, e que viviam à sombra das grandes figuras de poder. É Dot quem mostra as relações entre mulheres na corte, a hierarquia social imposta à elas, que colocava em posição superior até mesmo o mais reles do homem e sempre sujeitava a mulher a uma posição inferior, fosse ela uma criada ou uma rainha.

Se hoje já enfrentamos dificuldades numa sociedade machista e misógina, imagine como era viver na Inglaterra do século XVI. Não havia espaço algum para qualquer manifestação feminina que não fosse a mais perfeita submissão aos grandiosos homens que tudo podiam. Em um mundo em que tudo era regido pela vontade do rei e pela religião (dividida entre católicos e protestantes, sempre envolvidos numa guerra de poder que tinha muito mais a ver com dinheiro do que com fé), não sobrava espaço para se equilibrar usando o peso das joias da rainha e cujo menor deslize certamente proporcionaria um destino semelhante ao de outras rainhas, que pereceram por caprichos reais.

Katherine, como boa dama da corte Tudor, teve casamentos arranjados por sua família e se submeteu a eles. Ainda era nova quando ficou viúva pela segunda vez: tinha apenas 31 anos, nenhum filho e era respeitada por todos por ser uma mulher de grande virtude (ou seja, por nunca desobedecer as regras, por ter cuidado de seus dois maridos quando estavam moribundos ao invés de deixar o serviço para os médicos e por sempre se mostrar solícita a tudo que lhe fosse ordenado). Quando enviuvou, Henrique logo começou a lhe fazer a corte e o desespero que a autora colocou em Katherine no livro certamente é real, pois ela ainda era jovem e rica, e ele era um terrível senhor de 52 anos com uma úlcera eternamente aberta na perna que o fazia feder a metros de distância e um histórico de ter assassinado suas antigas rainhas por motivos inexistentes, porém validados por sua posição de chefe absoluto do Estado e da Igreja.


É interessante a abordagem que a autora escolhe para relatar os motivos que levaram Henrique a escolher, dentre tantas jovens da corte, uma viúva que tinha sido educada com sua filha mais velha, Mary Tudor (posteriormente conhecida como Bloody Mary, fama que adquiriu por reinar a Inglaterra com pulso firme – fama essa que ela dificilmente teria se tivesse sido um homem, é claro). Geralmente, em séries ou filmes que retratam esse período histórico, Katherine é mostrada como uma matrona que desempenhou o papel de esposa-enfermeira para um Henrique já velho e doente, mas a realidade, de acordo com pesquisas mais recentes, é que Henrique esperava que ela fosse sua esposa em todos os sentidos e ela padeceu muito nas mãos dele e fez um uso sábio de seus conhecimentos na área da saúde para cair nas graças do rei e não ter a cabeça guilhotinada.

Durante certo tempo, ela conseguiu pender a balança para o seu lado, tanto que quando Henrique decidiu entrar em guerra contra a França mais uma vez, em 1544, ele deixou Katherine como regente em seu lugar, com plenos poderes para fazer o que bem entendesse em sua ausência. Isso foi uma grande honra que, como a autora deixa bem claro em seu livro, deixou toda a corte atônita, já que nenhuma rainha havia tido tanto poder desde Catarina de Aragão, primeira rainha de Henrique e mãe de Mary Tudor, em quem o rei confiava plenamente. Tal confiança não era depositada em ninguém havia anos e todos ficaram alertas pelo perigo que representava uma mulher comandando a Inglaterra. No entanto, Katherine não fez grandes mudanças durante seu breve reinado – apesar de ter governado com punho rígido e ter tomado decisões difíceis, contrariando, inclusive, o conselho real –, mas conseguiu, talvez, uma das maiores mudanças a longo prazo da história inglesa: o novo Ato de Sucessão, que permitiu com que as filhas do rei, Mary e Elizabeth, entrassem para a linha sucessória da coroa, coisa que era proibida, uma vez que a mulheres não era permitido governar. Katherine convenceu Henrique de que essa era a melhor escolha, haja vista que ele tinha apenas um herdeiro, o príncipe Edward e, se algo acontecesse com ele, a dinastia Tudor acabaria. Foi por causa dela que a Inglaterra teve sua conhecida Idade de Ouro, sob o governo de Elizabeth I, a chamada Rainha Virgem – que nunca se casou justamente para que nenhum homem tivesse mais poder do que ela, pois a esposa era vista como propriedade do marido, e Elizabeth lembrava muito bem o que havia acontecido com sua mãe para cair nesse erro.

“’Veja como é a rainha’, Dot tinha escutado Elizabeth dizer para Meg. ‘Quem disse que mulheres não podem governar? Quem disse que devem se casar e ser governadas por homens?’”

Sua influência sobre Elizabeth é, inclusive, um dos pontos altos do livro, que mostra claramente como Katherine gostava dela e se esforçava sempre para que a menina tivesse os melhores tutores, a melhor educação e não fosse apenas uma moeda de troca para uma futura aliança política. Se Elizabeth se tornou a grande rainha que foi, podemos dizer que grande parte dos créditos por isso é de Katherine Parr, sua última e mais próxima madrasta.

Contudo, por mais influente que fosse, o reinado de Katherine não durou para sempre. Logo Henrique estava de volta e ela teve de deixar de ser a governante do país para assumir novamente o cansativo papel de esposa do monarca mais violento da história inglesa. Ser escolhida para ser rainha era uma sentença de morte, e Katherine sabia disso. Os fantasmas de Ana Bolena e de Catherine Howard, a quinta esposa de Henrique, também assassinada por ele, pairavam sobre a coroa e os presentes caríssimos recebidos por ela. Durante todo o livro, vemos uma mulher tentando desesperadamente não deixar transparecer nada que pudesse aborrecer a seu marido, pois isso lhe custaria a vida. Vivendo sob a sombra dos destinos de suas predecessoras, Katherine estava sempre em um estado de constante pânico.


O ápice de seu desespero chega no momento em que ela, em um descuido, acaba discutindo teologia com Henrique na frente de outros homens da corte. Katherine era uma mulher muito bem-educada, que estava sempre informada das novidades no mundo científico e teológico (ainda que ciência e religião fossem uma coisa só naqueles tempos), e uma protestante convicta. No entanto, em seus últimos anos, Henrique estava cada vez mais retornando ao conservadorismo e permitindo novamente os ritos católicos na sociedade. O jovem reformista que rompeu os laços com a Igreja Católica para poder se separar de sua primeira esposa e favorecer a seus nobres parecia ter desaparecido na dor constante que sentia de sua ferida jamais cicatrizada e na loucura e paranoia da traição. Ao discutir teologia, Katherine fez duas coisas que não poderia: primeiro, discordou do rei; segundo, ela lembrou a ele e a seu conselho de uma outra rainha que também tinha o costume de discutir questões protestantes, Ana Bolena.

“Katherine sente um medo apertado ao lembrar de Anne comentando uma vez sobre como o rei costumava falar sobre teologia noite adentro com Ana Bolena. Mas eu sou diferente, ela pensa, não faço feitiços nem me comporto como uma prostituta.

Mas Ana Bolena fazia mesmo tudo aquilo?

Ela morreu por isso, mas Katherine sabe tanto quanto todo mundo que não significa nada. Seus pensamentos se escondem na escuridão e o medo se instala nela apesar da adoração do marido em público, dos presentes, do carinho, do aparente fascínio que tem pela mente dela.
Ele não era fascinado por Ana Bolena também?

As rainhas mortas estão em toda parte.”

Tendo sido expulsa da presença do rei e ficado apenas com suas damas mais próximas, confinadas em seu aposento, ela fez de tudo para se livrar de quaisquer evidências que pudessem existir contra dela. Ninguém ousava mencionar em voz alta as antigas rainhas, mas desde que Ana Bolena fora decapitada, absolutamente tudo poderia acontecer. Katherine, que era uma intelectual numa época em que mulheres não podiam ser, tinha o desejo de fazer algo além de si mesma, e foi assim que acabou publicando o primeiro livro escrito por uma rainha inglesa usando seu verdadeiro nome, Prayers or Meditations, que pode, hoje, nos parecer apenas os versos de uma beata, mas que naquela época foi um grande ato de expressão e inspirou outras mulheres (inclusive uma Elizabeth Tudor ainda adolescente, futura rainha Elizabeth I, que tinha uma relação de amizade e confiança com Katherine, sua madrasta a quem ela chamava de mãe e que era vista como uma grande inspiração de sabedoria) a irem além do lugar que lhes era definido. Porém, com o desagrado de Henrique e de seus conselheiros, ela teve de se desfazer de seu precioso livro, assim como de tantos outros que eram considerados heréticos por questionar a validade dos sacramentos católicos.

“’Você é a primeira’, completa Cat. ‘A primeira rainha a publicar suas próprias palavras em inglês. Isso é histórico, Kit.’”

Em Xeque-mate da Rainha, a autora é bem detalhista e fiel aos acontecimentos históricos, tanto que não deixou passar em branco um episódio que é aliado ao desespero da rainha para se livrar de qualquer coisa comprometedora: seu envolvimento com Anne Askew, uma mulher abertamente protestante cujo crime foi ser mulher e ousar abrir a boca para falar sobre teologia numa sociedade em que a função feminina era restrita ao prazer sexual masculino e à procriação. No livro, a rainha admira Anne por sua coragem de continuar fazendo discursos públicos sobre a fé, mesmo sendo procurada e correndo risco de vida.

“Só de pensar nessa mulher Katherine tem um arrepio – por tamanha coragem. Ela mandou fundos anonimamente para financiar a pregação. O nome de Anne Askew é pronunciado em voz baixa com reverência entre os reformadores; é conhecida por seus sermões que refutam a transubstanciação e por distribuir livros proibidos. Ela é tudo que uma mulher não deveria ser, e Katherine a admira muito por isso.”

Não se sabe se Katherine de fato estava envolvida com Anne, mas há evidências que sugerem que ela ao menos tinha conhecimento do conteúdo dos discursos dela e simpatizava com suas ideias. Anne viveu uma curta vida: condenada por heresia e morta pela fogueira aos 25 anos, ela foi uma das primeiras poetas consideradas feministas na Inglaterra, uma das primeiras a exigir o divórcio e, consequentemente, a única mulher de que se tem registro de ter sido torturada na Torre de Londres.

Katherine só se viu livre do tormento de estar sempre escondendo quem realmente era e o que realmente pensava quando Henrique morreu, em 28 de janeiro de 1547. Eles ficaram casados por apenas quatro anos, mas isso foi o suficiente para quase matar Katherine – e, apesar de ela ter sido uma das únicas rainhas que sobreviveu ao casamento, acredito firmemente que ele só não a matou porque morreu antes. Henrique era um homem tremendamente perturbado. Há quem justifique seus atos como consequência de um trauma que ele sofreu ao cair de um cavalo quando era jovem – trauma esse que lhe rendeu a tão horrorosa úlcera na perna; mas, de acordo com alguns pesquisadores, essa queda também teria lhe acarretado uma mudança brusca de comportamento por ter atingido seu córtex cerebral. Claro que isso pode ser verdade, porém, é fato que homens nunca precisaram de desculpas médicas para praticar crueldade contra mulheres, e certamente um rei não necessitaria de tais desculpas, portanto, a narrativa da autora é plausível ao mostrar uma Katherine aliviada com a morte do rei, finalmente podendo desfrutar de uma liberdade que nunca teve – porque tinha sido propriedade do pai ou dos maridos, mas nunca de si mesma. Com a morte de Henrique, ela se tornou a mulher mais rica da Inglaterra e ainda conservava o título de rainha-viúva. Apesar de não ter poder para governar – já que o trono foi passado a Edward, filho de Henrique –, ela ainda era uma mulher muito influente e mais respeitada do que nunca no país. E, o melhor de tudo: uma mulher em paz, sabendo que nenhum homem mais poderia cortar sua cabeça.

Retrato de Katherine Parr datando do final do século XVI; artista desconhecido

A história poderia terminar assim, mas é claro que isso não acontece. O livro é muito bem escrito e realmente pude me ver dentro dos corredores de Hampton Court, durante banquetes extravagantes e no meio de intrigas terríveis. No entanto, a decisão de vendê-lo como uma “história de um amor proibido dentro da perigosa corte de Henrique VIII” é falaciosa porque o que vemos ali – tanto na narrativa literária quanto na história real – não tem nada de amor, mas sim de desespero. A autora quis ser fiel à história, o que é algo excelente quando se está lendo um livro de ficção histórica, mas, ao mesmo tempo, me fez passar raiva, porque começamos o livro com uma narrativa de um romance proibido entre Katherine e Thomas Seymour, o que de fato aconteceu – Seymour estava cortejando Katherine quando Henrique a obrigou a se casar com ele –, mas não é como se Xeque-mate da Rainha fosse sobre isso ou como se a história da vida da rainha se resumisse ao amor que sentia por Seymour. Reduzir Katherine Parr a esse papel é tirar toda a relevância que ela teve na história. Katherine foi uma mulher incrivelmente culta, astuta e decidida a fazer o melhor possível, não apenas para ela, mas também para outras mulheres de sua época. Ela fez com que as mulheres tivessem o direito de sucederem ao trono como rainhas. Como disse a historiadora Suzannah Lipscomb, na época pesquisadora da Royal Palaces:

“Ela foi a primeira rainha da Inglaterra a publicar um livro, a primeira mulher inglesa do século XVI a escrever um livro de prosa; era uma patrona das artes, para músicos e artistas, ajudou na formação do Trinity College em Cambridge, inspirava criatividade e excelência; ela também reuniu as três crianças sem mãe de Henrique, e teve muita influência na jovem Elizabeth. Nós sabemos que o seu exemplo de governo feminino durante o período em que ela foi regente, assim como Catarina de Aragão, é apenas uma das muitas conquistas de Katherine Parr. Ela foi uma inspiração tão grande para Elizabeth como uma líder mulher que a guiou e mostrou como ser uma rainha. Sem dúvida nenhuma nossa maior rainha aprendeu com base em Katherine Parr.”

Sua história é muito mais do que um romance com um homem que a seduziu apenas por seu dinheiro e poder. Infelizmente a história conta que Katherine casou com Seymour após a morte de Henrique, o que, de acordo com os registros, lhe trouxe apenas infelicidade e traição, pois, apesar de ser galante e bem-apessoado, o novo marido era um homem extremamente ambicioso, que não se contentou apenas com ela. Durante algum tempo, Elizabeth morou com os dois, pois era muito afeiçoada a Katherine; mas Seymour tentou seduzi-la. Não se sabe se ele de fato conseguiu, mas é sabido que isso afetou tanto Katherine quanto Elizabeth, deixando marcas profundas em ambas.

Elizabeth sobreviveu a homens poderosos e ambiciosos, Katherine, não. Pouco tempo depois de casar com Seymour, ela morreu durante o parto de sua única filha. Após isso, Seymour foi executado por traição por mais uma vez tentar seduzir Elizabeth. Katherine não teve descanso, sendo levada de um lado a outro e enganada pelo homem a quem amava e com quem pensou que finalmente poderia encontrar alguma paz e felicidade. Infelizmente, quando a história lembra-se dela, somente é falado que ela sobreviveu a Henrique para correr para os braços de Seymour. Como sempre, suas conquistas, sua coragem e sua inteligência são deixadas de lado para dar espaço aos homens que passaram por sua vida.

Os livros de história escrevem apenas sobre homens e sempre deixam as mulheres de lado o máximo possível, mas Katherine Parr é uma mulher a ser lembrada e admirada. Sem ela, o mundo como o conhecemos certamente não seria o mesmo. 




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Arte em destaque: Mia Sodré 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Excelente texto! Acho q ela n ter direito de governar uma boa coisa, monarcas raramente tinham paz.

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