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Casablanca e West Covina: paralelos entre Crazy Ex-Girlfriend e o clássico de 1942

Recentemente, assisti a Casablanca, clássico do cinema lançado em 1942 que possui uma das histórias de amor mais famosas da telona. O romance entre Rick (Humphrey Bogart), Ilsa (Ingrid Bergman) e Victor Laszlo (Paul Henreid) comove porque envolve muito mais do que eles; ideais de revolução, da luta antifascista e antinazista permeiam a narrativa, que vai além de uma simples história de amor. Não é à toa que o filme tenha permanecido na memória coletiva, pois é verdadeiramente inspirador. 

Tão inspirador que várias produções utilizaram elementos retirados diretamente do roteiro para criar suas próprias histórias. É o caso de Crazy Ex-Girlfriend, série que foi ao ar de 2015 a 2019 e que conta a trajetória de Rebecca Bunch (Rachel Bloom) a partir do momento em que ela decide largar tudo em Nova York e mudar-se para West Covina, Califórnia. A motivação para tal mudança foi o fato de que Rebecca deu-se conta de que fazia muito tempo desde que havia se sentido feliz de verdade - desde o acampamento de verão na adolescência, para ser mais precisa. Foi ao encontrar Josh Chan (Vincent Rodriguez III), seu namorado do acampamento, atravessando a rua que Rebecca percebeu que precisava mudar de vida. Claro que essa mudança foi apenas uma escapatória rápida para problemas muito maiores, mas a motivação óbvia, a princípio, está encarnada na figura de Josh. 

Crazy Ex-Girlfriend, por vezes, parece existir para homenagear clássicos. Desde os musicais da Broadway até o cinema das décadas de 1920 a 1950, podemos encontrar diversas referências dentro de suas quatro temporadas. A série é um verdadeiro achado para aqueles que gostam de clássicos. Todavia, é quase impossível entender todas as referências de uma só vez - o que não é um problema, bem pelo contrário, já que só faz aumentar a curiosidade para conhecer mais produções que fizeram história. Eu, mesmo gostando muito de cinema clássico, não havia assistido a Casablanca, por exemplo. Mas a série o cita muitas vezes durante suas duas primeiras temporadas - e segue, com uma estrutura semelhante a do filme, até o final. 

Casablanca: o enredo 

Embora seja conhecido como "a maior história de amor do cinema", Casablanca é um filme sobre guerra - ou sentimentos em meio à guerra. No centro dos acontecimentos está a cidade de Casablanca, no Marrocos, um ponto de passagem para imigrantes que estavam em rota de fuga da França durante a ocupação nazista. É 1941 e quem quisesse sair do país e fugir das mãos dos nazistas teria de passar por lá, um território neutro, para garantir permissão para a viagem e passagens. 

É dentro desse esquema que encontra-se Rick, um estadunidense dono de um bar local que mantém uma posição neutra. Atendendo a franceses, locais e nazistas, Rick passa boa parte do filme alegando não arriscar o pescoço por ninguém e não faz nenhum movimento para ajudar pessoas a quem os nazistas estão perseguindo. Contudo, conforme a história avança, percebemos que não é bem assim que as coisas acontecem. 


Dentre os muitos motivos que fazem de Casablanca um filme genial, destaca-se o fato de que a história - e desconstrução de Rick - não nos é narrada de maneira agressiva; passamos a vê-lo contradizer as expectativas alheias, quebrando a imagem de um homem cínico e sem sentimentos em seus atos. Ao ajudar um casal a fugir daquele lugar, ser gentil com os funcionários, se posicionar contra a escravização e manter uma postura fria para, ao final, auxiliar a resistência, Rick se mostra uma pessoa muito mais complexa e pronta para dar mais um passo e finalmente deixar - metafórica e literalmente - Casablanca. 

O romance com Ilsa é um dos grandes motivos que levam Rick a sentir-se desconfortável a ponto de realmente tomar uma atitude. A cena memorável em que ele bebe em seu bar, de madrugada, enquanto fala a frase que tornou-se uma das mais célebres da história do cinema, é um dos pontos de virada na narrativa da personagem. E, embora Rick seja a figura central da obra, seu amor por Ilsa e sua rivalidade misturada com amizade por Victor Laszlo dão o tom para a trama, que não é uma simples história de amor. 

Os paralelos entre Casablanca e Crazy Ex-Girlfriend 

Separadas por mais de sete décadas, tanto Casablanca quanto Crazy Ex-Girlfriend são obras que tratam do crescimento emocional de suas personagens. Enquanto a primeira se passa durante a Segunda Guerra Mundial, a segunda é ambientada na Califórnia pré-pandemia, sem grandes problemas coletivos aparentes. Entretanto, tal impressão se desfaz conforme vamos assistindo aos episódios, pois a série trata de um dos maiores problemas da nossa geração: a questão da saúde mental. 

Tudo acontece em West Covina. A cidade, que é pequena e nada glamorosa, abriga as personagens principais, que por mais diferentes entre si, carregam questões profundas que são desenvolvidas ao longo das quatro temporadas. A presença de psicólogos é constante, mas ela não adianta muito enquanto as pessoas que ali vivem não encaram a si mesmas. O argumento da série é que West Covina é um local de passagem, quase um limbo, onde pessoas psicologicamente danificadas permanecem, cada qual vivendo a sua mentira e tentando, por vezes, sair dali - o que nem sempre dá certo e exige muito esforço. 


Dentro desse núcleo de saúde mental, encontra-se Rebecca, uma jovem mulher que desvia de suas questões psicológicas para focar no amor, como se um relacionamento amoroso fosse resolver todos os problemas do mundo. Josh Chan e Greg Serrano (Santino Fontana) são homens jovens que formam um triângulo amoroso durante duas temporadas, também caindo no conto de que o amor resolve tudo. Ainda que tenham seus problemas e vivam numa espécie de negação, eles abraçam o torpor e decidem envolver-se com a comédia do amor para não lidarem com seus próprios dilemas psicológicos. 

É claro que Crazy Ex-Girlfriend não é uma releitura fiel a Casablanca. Mas os elementos principais estão todos ali: um grande problema que afeta a todos (saúde mental), uma cidade que serve como abrigo e prisão (West Covina), uma personagem cujos sentimentos demoram a se revelar (Greg) e um triângulo amoroso formado por pessoas que genuinamente se gostam (Greg, amigo de infância de Josh, e Rebecca). Entretanto, dentre todos eles, é Greg quem mais se destaca e quem faz a verdadeira união entre as referências ao clássico de 1942 e a série. 

Greg Serrano e Richard Blaine: duas faces da mesma moeda 

Se Richard "Rick" Blaine é o grande anti-herói romântico do cinema clássico da década de 1940, Greg Serrano é seu espelho contemporâneo. Talvez ele não pareça uma escolha óbvia para ser o objeto de nossa atenção, tampouco para ter o título de anti-herói romântico, nem mesmo para Rebecca, a protagonista da série, todavia é Greg quem possui os maiores paralelos com Rick. 

Assim como Rick, Greg trabalha num bar, mas quebra a expectativa do bartender tagarela, que bebe com os clientes e lhes dá conselhos. Greg é calado, paira sobre as pessoas ao seu redor como alguém que está apenas cumprindo sua função, nada além disso. Ele parece ter algum vago objetivo, mas também dá a impressão de já ter desistido do que um dia pensou conquistar. Como ele mesmo canta em um de seus mais famosos solos na série, "Eu poderia se quisesse" (I could if I wanted to).


Não é à toa que Greg seja um bartender. É claro que ele o seria, já que Crazy Ex-Girlfriend bebe da água da Casablanca. E, assim como Rick, ele passa por uma desconstrução de suas camadas superficiais durante a série. O Greg que conhecemos no início, distante, sarcástico e alcoólatra, não é o Greg que aparece ao final, pois ele teve anos para lidar com suas questões psicológicas e, a partir do relacionamento com Rebecca e dos limites que está disposto a cruzar para estar com ela, ele percebe o quanto precisa de ajuda. 

E essa descoberta se dá justamente porque Greg não quer ficar entre Rebecca e Josh, um amigo de quem gosta muito. Claro, essa estrutura já foi vista em Casablanca, quando Rick decide não se interpor entre Ilsa e Victor Laszlo. Os motivos podem ser diferentes, mas eles convergem para um sentimento de carinho e respeito em ambos os casos. 

E, mais do que isso, de posicionamento e aceitação de responsabilidades. 

Se Rick aceita que não pode mais dar uma de isentão enquanto há tantas pessoas sofrendo naquela guerra, Greg aceita que não pode mais continuar utilizando desculpas (o cuidado com seu pai, o amor por Rebecca, os amigos) para permanecer num lugar que é tão confortável quanto tóxico. West Covina é um limbo metafórico onde todas as personagens permanecem até que resolvam seus conflitos internos. Mas é Greg quem dá o primeiro empurrão para que as outras percebam que, assim como ele pôde enfrentar seus demônios e ir embora, eles também precisam entender por que seus caminhos permanecem parados. 

As grandes jornadas são sobre isso, no final das contas. E faz sentido que Casablanca seja justamente a fonte da qual CXG bebeu, já que trata-se de uma das melhores jornadas de desconstrução de personagem e aceitação de responsabilidades do cinema. 

No episódio 6 da 1ª temporada de Crazy Ex-Girlfriend, Greg tem uma cena comovente quando canta, ao estilo de Billy Joel, "What'll it be (Hey, West Covina)", uma canção melancólica onde podemos vê-lo refletir a respeito de seu papel em West Covina e como ele está preso àquela cidade, com aquelas mesmas pessoas, sem perspectivas de mudança.


"It's 5: 53 on Thanksgiving
Not one customer's walked through the door
But I'm still here, slinging drinks for a living
[...]
I know this town like the back of my hand
But I'm not such a fan of the back of my hand
[...]
The point is
Hey, West Covina
Why won't you let me break free?
Am I doomed to stay here
Pouring my high school friends beers
For the rest of eternity?

Hey, West Covina
You know just where to find me
I'll never go far
So pull up to the bar
Hey, West Covina
What'll it be?"


"São 5h53 no Dia de Ação de Graças
Nenhum cliente entrou pela porta
Mas eu ainda estou aqui, servindo bebidas para viver
[...]
Eu conheço esta cidade como a palma da minha mão
Mas eu não sou tão fã da palma da minha mão
[...]
A questão é
Ei, West Covina
Por que você não me deixa escapar?
Estou condenado a ficar aqui
Servindo cervejas para meus amigos do colégio
Para o resto da eternidade?

Ei, West Covina
Você sabe exatamente onde me encontrar
Eu nunca irei longe
Então vá até o bar
Ei, West Covina
O que vai ser?"
O Greg da primeira temporada, embora pareça estar relativamente confortável em sua posição como bartender e não demonstrar sentimentos nem mesmo para os amigos, sente-se preso ao limbo de West Covina - que não é tanto da cidade, já que ela apenas comporta aquelas tantas pessoas perdidas, mas sim de si mesmo e de suas escolhas. O que vai ser - essa é a sua pergunta a West Covina, e a si mesmo. No entanto, demoraria ainda um bom tempo para que ele conseguisse sair daquela estagnação e tomar uma atitude. Assim como a personagem-base de sua personalidade, Rick Blaine, Greg demora até mesmo para admitir a si próprio que o que ele precisa resolver é ele, não a cidade ou as outras pessoas

A despedida de Greg e Rebecca e a referência à cena do aeroporto em Casablanca

Um dos momentos mais marcantes entre Greg e Rebecca é quando ele decide ir embora, mais ou menos na metade da segunda temporada. Diante de uma decisão difícil e já tendo tido uma experiência de relacionamento com Rebecca, que o havia deixado para ficar com Josh Chan, Greg tem diante de si uma escolha: separar definitivamente o amigo da mulher a quem ama, interferindo numa história que não parecia ter chegado ao fim, e também modificando seu destino ao permanecer num lugar onde não mais cabia crescimento, ou partir para outra cidade, estado, vida, para prosseguir com os estudos, o tratamento do alcoolismo e assumir responsabilidade por seu destino - ainda que longe de Rebecca. É uma decisão difícil que Greg toma. E ele o faz sem que ela o saiba - apenas no aeroporto, poucos minutos antes da partida, é que ambos têm um encontro de despedida. 

Nesse momento, Greg canta "It was a shitshow", música em que faz referência direta à Casablanca ao dizer, em um dos versos, que "we're Jerry Springer, not Casablanca". Com isso, Greg queria dar fim à fantasia de Rebecca, que enxerga sua vida aos moldes dos grandes romances clássicos - e já havia comparado seu romance com Greg àquele que Rick possui com Ilsa no filme. 


Todavia, isso é mais algo no qual Greg quer acreditar do que verdade. A referência a Casablanca foi tão necessária à música que seus compositores fizeram uma das mais estranhas rimas da série: lingua franca. Era realmente algo que quiseram inserir ali, e não foi à toa. Apesar das palavras de Greg, que termina com Rebecca, tentando pôr um fim não apenas ao relacionamento, mas à visão romântica dela, que também lhe enxerga como uma espécie de Rick Blaine, Greg parte para um outro destino. 

É interessante observar que essa cena se passa num aeroporto, assim como a última cena de Casablanca. Mas, enquanto Rick é quem organiza para que Ilsa e Victor Laszlo possam ir embora dali, permanecendo ele mesmo no local - até segunda ordem, pois o filme dá a entender que agora ele está finalmente livre para seguir adiante -, é Greg quem vai embora, deixando Rebecca em West Covina para resolver suas questões pessoais até o dia em que possa estar pronta para dar adeus ao drama Josh-Chan-saúde-mental e assumir suas responsabilidades. 

Até aquele momento, Rebecca não sabe que Greg escolheu assumir o controle de sua vida e tomar uma posição, partindo do limbo metafórico que é West Covina. Ilsa, no filme, também não sabia que Rick havia decidido que ela partiria, posicionando-se, enfim, no aeroporto, e a deixando partir - partindo ele também. 


Talvez por imaginar como teria sido o desenrolar da história de Rick e Ilsa, as criadoras de Crazy Ex-Girlfriend decidiram trazer Greg de volta na quarta temporada - um novo Greg, de forma literal (interpretado por Slylar Austin). Sua mudança não foi apenas na escalação, mas também em pontos importantes da personagem: ele agora, embora ainda odeie tudo e seja sarcástico e um pouco cínico, teve anos para lidar com seus problemas psicológicos e seu alcoolismo. Também estudou administração e está pronto para ter seu próprio restaurante, o Serrano's, e talvez viver o romance com o amor de sua vida. 

A ideia de romance paira no ar, mas não temos uma resposta definitiva para ela. Assim como Casablanca, às vezes o melhor é a promessa de que um dia, quem sabe, poderemos ficar juntos. O importante é fazer o melhor no agora e esperar por um futuro menos sombrio. 

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Arte em destaque: Mia Sodré 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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