Irene Redfield vive bem. Casou-se com um médico, que assim como ela, é afro-americano e, por isso, ao seu lado, sente que não precisa fingir ser alguém que não lhe agradaria. De todo o seu passado, as únicas coisas que restaram foram o bairro, Harlem, em que ainda reside, e as lembranças, permeadas pelos pequenos momentos em que mesmo criança, soube, pelo modo como seu pai conversava com a família, que ser uma mulher negra em um país racista significava lutar contra muitas coisas, dia após dia, apenas por existir. Ela só não esperava ver seu passado novamente.
Clare Kendry cresceu muito próxima de Irene, mas seus caminhos foram totalmente opostos. Com uma infância cruzada pela violência e a negligência do pai alcoólatra, Clare, ainda muito nova, aprendeu a conseguir das pessoas aquilo que precisasse para sobreviver, através de sua aparência. O sorriso milimetricamente calculado, os olhos que fingem se interessar por cada história que se conta, e todos os trejeitos sempre tão bem pensados foram o que a içaram para, segundo ela, uma vida melhor, muito longe do bairro de sua infância. Até o dia em que encontrou com Irene novamente, por acaso, e apresentou seu marido para ela: um homem branco com falas racistas que, Irene não sabe como, parece não perceber que sua esposa, mesmo que com a chamada pele clara, também é negra. Identidade, publicado por Nella Larsen em 1929, alterna então entre dois momentos da vida de Irene: o antes e o depois do encontro com Clare, e sua dificuldade em apresentar e explicar as questões envolvidas pela raça para alguém que tanto fugiu desta.
"— Ah, não, Neguinha — declarou ele —, comigo não. Sei que você não é crioula, então tudo bem. Pode ficar preta o quanto quiser, desde que não vire crioula. Esse é meu limite. Nada de crioulos na família. Nunca tivemos e nunca vamos ter."
O contexto histórico
Os anos 20 nos Estados Unidos da América, marcados pela vida pós-emancipação, foram também o momento em que mulheres e homens afro-americanos, de condições financeiras mais altas, buscavam encaixar-se na sociedade e ter acesso às mesmas oportunidades que, até então, em grande maioria, só as pessoas brancas tinham. À época, usava-se o termo "color line" para segregar quem, de acordo com a pele, o alisamento dos cabelos, entre outras características, poderia ou não, por exemplo, andar no mesmo transporte coletivo que pessoas brancas, o que significava, muitas vezes, que ter um tom de pele mais embranquecido poderia contribuir para determinados interesses.
Caracterizada pelo sociólogo W.E.B. Du Bois como o grande problema do século XX, a segregação racial interposta pela "linha de cor" foi tema de seu estudo The Philadelphia Negro, no qual o acadêmico observou que os problemas sociais da cidade eram os mesmos que de outros locais de condições socioeconômicas baixas, mas que ter, em sua maioria, habitantes negros, fazia com que tais problemáticas fossem estereotipadas como características da raça, alimentando o sistema racista norte-americano.
"Em todas as esferas da vida, o negro está sujeito a encontrar alguma objeção à sua presença ou algum tratamento descortês; e os laços de amizade ou memória raramente são fortes o suficiente para se manter além da linha de cores." W. E. B. Du Bois
Utilizada em um momento da narração de Larsen, o país também possuía a lei Jim Crow, parte dos Black Codes, que começaram a valer logo após o fim da abolição da escravatura, e que permitiam a apreensão de crianças negras para fins trabalhistas, proibiam o voto, entre outras atividades cidadãs. Em Identidade, um restaurante com placas que sinalizavam a prevalência da lei Jim Crow, permitiu a permanência tanto de Clare quanto de Irene no local, por ambas serem negras de pele clara.
Outro momento histórico retratado no livro são os bailes entre a comunidade. Chamados de "novos negros", pessoas influentes, com dinheiro, e que se destacavam mesmo em uma década em que as próprias leis eram feitas contra, e não a favor, deles, se reuniam em sarais, recitais, almoços e jantares beneficentes. De acordo com a pesquisadora Giovanna Xavier da Conceição Nascimento, em seu artigo Os Perigos dos Negros Brancos: Cultura Mulata, Classe e Beleza Eugênica no Pós-Emancipação (1900-1920), "[...] setores da elite mulata
construíram um padrão de beleza eugênico para representação da nova negritude. Alimentado pela pigmentocracia – valorização da pele clara em detrimento da escura no interior da comunidade afro-americana, tal padrão
pressupunha a superioridade dos mulatos em relação aos seus “irmãos” mais
escuros."
O renascimento do Harlem
Movimento literário ao qual Nella Larsem, e consequentemente, Identidade, fizeram parte, o renascimento do Harlem ocorreu no bairro nova iorquino que leva seu nome. Destino de muitos afro-americanos, abrigou a classe média, que começou a se expressar através da arte e da literatura. Com o objetivo final de demonstrar o que era ser negro nos Estados Unidos, incluiu, até mesmo, o famoso cantor Louis Armstrong. Com o fim da década de 20 e a aproximação da grande depressão, o renascimento do Harlem também entrou em declínio.
Se interessou pelo livro? Você pode comprá-lo clicando aqui!
(Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Ao comprar pelo nosso link, você não paga nada a mais por isso, mas nós recebemos uma pequena porcentagem que nos ajuda a manter o site.)
Referências
- NASCIMENTO, Giovana Xavier da Conceição. Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920). Rev. Bras. Hist. [online]. 2015, vol.35, n.69.
- SILVA, Tainan Silva. O colorismo e suas bases históricas discriminatórias. Revista Direito UNIFACS.
- A New African American Identify. National Museum of African American History and Culture.
Texto e imagem de destaque: Tati Ferrari
Comentários
Postar um comentário