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Três Mulheres Altas: quem fomos e quem somos agora?


"Comece desde cedo; que saibam que têm pouco tempo. Que saibam que estão morrendo desde o minuto em que começaram a viver."

Outro dia, depois de voltar da rua, percebi que minha testa estava com um esboço de melasma, um tipo de mancha que minha mãe teve depois de eu nascer. Lembro de ter ficado me olhando no espelho naquele dia e me dado conta de como estou cada dia mais longe de uma suposta Jessica de 15 anos e mais próxima da minha mãe, com 55 anos.

Foi um exercício perturbador, mas ao mesmo tempo fascinante. Eu sempre afirmei ser parecida com meu pai, mas a verdade é que cada dia mais me transformo em uma cópia de xerox da minha mãe. Fiquei me olhando e tentando procurar traços daquela Jessica de 15 anos. Engraçado, eu não achava mais. Diante de mim só havia aquele rosto cheio de olheiras, um corpo que por vezes já não reconheço ser o meu. Como dizia Bette Davis: "Envelhecer não é para mocinhas"

É exatamente esse exercício de alteridade, de olhar para quem fomos e quem somos agora, que o dramaturgo Edward Albee propõe em sua peça Três Mulheres Altas, de 1991. Ele havia caído no ostracismo durante os anos 1980 para ressurgir como uma fênix das cinzas, reinventando-se e abordando um de seus temas preferidos: a velhice feminina.

Atenção: Este texto possui spoilers! 

Uma mulher tão calma quanto as calamidades do tempo o permitirão

Dividida em dois atos, Três Mulheres Altas conta a história de A, B e C, três mulheres de diferentes faixas etárias. A tem 92 anos; B, 52, e C, 26. Elas se parecem muito entre si. Quando o primeiro ato começa, somos apresentados à história de A. Viúva e com um filho ausente, a mais velha é cuidada por B e C. 

Logo nos primeiros diálogos, percebemos que A luta para manter uma postura altiva e serena, ainda que ela precise de ajuda para andar e ir ao banheiro. A descrição de Albee, "unhas vermelhas, cabelo bem-arrumado, usa maquiagem", ajuda a construir a imagem de uma senhora impenetrável. Porém, não é bem assim.

Ao longo do primeiro ato, é como se as defesas de A fossem caindo. Ela relembra seu casamento por conveniência com um homem a quem ela chama de "O Pinguim", além de seu passado turbulento com a irmã. As lembranças se misturam, A diz algo e depois nega que tenha sido assim, causando uma confusão no leitor/espectador. B e C tentam ajudá-la, mas A as ignora. A todo custo, ela tenta manter a "classe". 

No fim do primeiro ato, A tem um derrame enquanto fala sobre sua mãe. No começo do segundo ato, o quarto francês, todo em tons pastéis e azuis, transforma-se: o que se supõe que seja "A", um corpo com uma máscara de respiração, aparece no palco enquanto as três mulheres tomam a cena. E, então, o choque: descobrimos que as três são a mesma pessoa, mas em momentos diferentes.

É na descoberta de que as três são a mesma pessoa, mas em idades diferentes, que tudo começa a fazer sentido. A narrativa sustentada por A não pode ser verdade aos olhos de C. Lembremo-nos de que C tem 26 anos e, para ela, havia uma vida próspera pela frente. Ela não acredita que terá um casamento com um homem ridículo, que sua irmã morrerá de tão bêbada, logo ela que sonhava em casar-se com o homem ao qual se entregou?

"A

(Opa!)
Quêêêêê? Nunca me passou pela cabeça!
(A e B riem juntas)

C

(Trava os dentes.)
Eu nunca vou me tornar vocês - nenhuma de vocês."

As ilusões de C são despedaçadas à medida que ela percebe que seu destino é se tornar aquela mulher à beira da morte: alguém racista e que teve uma série de problemas com o filho por conta da orientação sexual dele. Já B, aos 52 anos, parece estar consciente de que, afinal de contas, a maturidade não é tão ruim assim. Ela relembra diversos momentos ao lado de A, sempre recordando que o melhor momento é o agora. Isso é interessante, pois propõe uma abordagem positiva do passado.

Porém, como ter uma visão positiva do passado quando nossa sociedade simplesmente abomina que mulheres envelheçam? Podemos sentir, pelo relato das três, o quanto a juventude é uma questão para a personagem principal de Três Mulheres Altas. É na juventude que ela se sente vista e desejada, como nesta cena em que ela descreve quando traiu o marido no estábulo:

"B

(Para A e C)

Silêncio. Não é à toa que um dia nós voltamos da cavalgada, o cavalo resfolegando, todo suado, e ele toma as rédeas, o cavalariço, e ele nos ajuda a descer do cavalo, a mão dele toca o verso da nossa coxa, e percebemos, e ele percebe que percebemos, e lembramos que nós prestamos atenção nele antes, mais especialmente de peito à mostra naquele dia levando a palha, aqueles braços, aquela bunda. E não é à toa que sorrimos daquele modo que ele entende tão rapidamente, e não é à toa que ele nos leva para o fundo do estábulo - naquele feno de foder, meu Deus! - e assim vamos, e é a vingança e a autopiedade que nos movem até que percebemos que isso se transforma em um prazer por si, um prazer por nós, e estamos suando em bicas e ele come a gente como vemos nos filmes pornô e nós chegamos a gritar, e então ficamos ali caídas na palha - provavelmente cheias de merda - relaxando, e ele diz que queria comer muito a gente, que ele gosta de mulheres grandes, mas ele não tinha coragem, e ele vai ser despedido agora?"

O que sobra para B e C é um resquício de um frescor há muito perdido. Também abundam velhos rancores, como a saída do filho de casa. Edward Albee sempre inseriu elementos autobiográficos em suas peças de teatro, e com essa não poderia ser diferente. Muito de sua tumultuada relação com a mãe está presente nas páginas de Três Mulheres Altas. Como "O garoto", ele também saiu de casa por conta de sua orientação sexual.

A maternidade e o casamento são os pilares da infelicidade de A e B. Isso não é à toa. Ainda que a peça tenha sido escrita em 1991, ela encontra ecos em 2020. Para muitas mulheres, a maternidade ou a ausência dela é uma questão. O casamento também o é. De certa maneira, é como se a felicidade residisse apenas nessas duas coisas, sem elas você não é uma mulher completa. E, nesses dois âmbitos, nossa personagem sente que falhou.

É interessante perceber como não existem personagens masculinos na peça. Como em Oito Mulheres, peça de teatro de Robert Thomas e adaptada para o cinema por François Ozon, apenas se fala sobre os homens. É na fala das mulheres que eles aparecem, quase sempre como fracos e apenas interessados em sexo e dinheiro. Conhecemos o caráter do filho e do marido de A por meio do que ela nos fala sobre ele, da imagem que tem deles. Dessa forma, ela despersonaliza os homens.

Particularmente, o que mexeu comigo foi a questão do confronto entre as três versões de uma mesma pessoa. Como cada uma tem uma visão sobre o que é a vida, o que foram aqueles momentos. Em diversos momentos, podemos perceber essa dissociação, principalmente quando elas se corrigem dizendo "Não foi assim. Foi assado".  É estranho pensar que dentro de nós habita aquelas que já fomos, o quanto nosso corpo é elástico para guardar essas personalidades tão distintas entre si.

Ao dar voz a três mulheres diferentes, mas iguais, Edward Albee reflete sobre a noção de tempo e espaço, algo muito caro nesta pandemia. Com certeza, não somos mais as mesmas pessoas de março. Quem, dentro de nós, morreu na pandemia? E quem surgiu no lugar dessa pessoa morta? Quando estamos trancafiados dentro de casa, Três Mulheres Altas se torna uma leitura ainda mais difícil do que se estivéssemos circulando por aí.

Com o texto, Albee ganhou seu terceiro Prêmio Pulitzer, depois de um longo tempo de peças fracassadas durante os anos 80. No Brasil, ela foi encenada em 1995 por Nathalia Timberg, Beatriz Segall e Marisa Orth. Foi um sucesso de crítica, sendo, inclusive, citada na novela A Próxima Vítima. Em 2020, a ideia era reencenar o espetáculo, com Nathalia no papel de A (ela interpretou B na primeira versão), mas a pandemia adiou esses planos por enquanto.

De qualquer forma, enquanto o espetáculo não ganha uma nova encenação em palcos brasileiros, vale a pena a leitura. Três Mulheres Altas reflete sobre os contornos que a velhice ganha quando relembramos quem éramos e quem somos agora. Às vezes pode ser apenas uma questão de ponto de vista. Ou não.


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Texto: Jessica Bandeira 
Imagem de destaque: Mia Sodré 

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