Vidas Sem Rumo, filme de Francis Ford Coppola lançado em 1983, tem uma história curiosa: adaptado do livro The Outsiders: Vidas Sem Rumo, de S. E. Hinton, sua versão cinematográfica foi um pedido de estudantes do ensino médio feito através de uma carta, em 1980, com um abaixo-assinado que contava com 301 assinaturas: 300 delas de alunos, e uma da bibliotecária, Jo Ellen Misakian, de uma escola localizada em Fresno, interior da Califórnia. Além das assinaturas, uma versão de bolso do livro de Hinton foi enviada ao cineasta, com o apelo da bibliotecária: aquela era a leitura favorita dos alunos dos sétimos e oitavos anos, e todos eles queriam uma adaptação para o cinema pelo homem que havia feito O Corcel Negro. Para sorte deles, Ford Coppola se interessou e pesquisou a possibilidade da criação — afinal, outro livro da autora, Tex, estava sendo adaptado para as telonas: o coming of age Tex, Um Retrato da Juventude, dirigido por Tim Hunter. Dali, nasceu não só o filme, mas também uma amizade entre Coppola e a autora de The Outsiders, além de um novo subgênero cinematográfico: o brat pack, que visava o público adolescente dos anos 1980 a 1990.
O termo brat pack vem do rat pack, grupo musical de jazz famoso entre 1950 e 1960, formando uma brincadeira que transformava a palavra "rato" em "pirralho", a partir da alteração de uma única letra, sendo o termo utilizado pela primeira vez em uma matéria da revista New York, pelo jornalista David Blum, classificando-os como atores jovens com fama em destaque, que aproveitavam o momento para estar em festas, ter mulheres e diversão, além de sempre atuarem juntos nos mesmos filmes, que levavam bom rendimento nas bilheterias justamente pelos rostos que os estampavam.
Capa da edição de 10 de junho de 1985 da New York Magazine. |
"[...] esses meninos — esses garanhões, todos com menos de 25 anos, usando arriscados modelos de óculos de sol, jaquetas esportivas da moda e camisetas de grife — eles eram o Evento Principal." [tradução livre.] — David Blum em sua matéria Hollywood's Brat Pack.
Na matéria, Blum comenta sobre os títulos que iniciaram o subgênero, sendo o primeiro deles Toque de Recolher (Taps), de 1981, do diretor Harold Brecker, e o segundo, Vidas Sem Rumo (The Outsiders), a adaptação solicitada pelos alunos de Fresno e que rendeu 33,7 milhões de dólares. Não é por acaso, que entre os atores da mesa em que David Blum estava para começar seu artigo, se encontrava Rob Lowe (na adaptação, Sodapop Curtis).
A contradição levantada pelo artigo, é que se na história de S. E. Hinton os atores precisavam dar vida a greasers pobres e independentes, na vida real, aos olhos de David, foram todos retratados como socs: ricos, mimados e inconsequentes.
O filme
Assim como no livro, os greasers vivem no lado pobre de Tulsa, Oklahoma, e entre as primeiras cenas, já se nota exatamente o que fora comentado no texto sobre a obra de S. E. Hinton: são os socs quem perseguem e causam brigas, mesmo que alguns dos garotos que andam com o principal, Ponyboy (C. Thomas Howell), já tenham sido presos.
Na mesma noite, quando se deita para dormir dividindo a cama com o irmão Sodapop (Rob Lowe), Ponyboy o questiona porque abandonou a escola antes de terminar o ensino médio, e o irmão do meio responde que se sentia muito burro para aquilo — mesmo dizendo, logo em seguida, que era bom em matérias com mecânica e atividades físicas. Na maneira como o diálogo ocorre e nos gestos carinhosos que são trocados entre os irmãos na cena, fica claro como Sodapop substituí o laço afetivo que fora perdido com o falecimento dos pais para o caçula da família, enquanto desde o primeiro momento, refletidas em Darry (Patrick Swayze), estão as cobranças com as responsabilidades: o pedido, mesmo rabugento, para que Ponyboy não vá ao cinema sozinho para não ser pego pelos socs; a interrupção na conversa entre os amigos para que o irmão vá fazer sua lição de casa. Mesmo órfão, Ponyboy é o irmão com mais "sorte" ao ter em seus irmãos mais velhos as características necessárias para sua criação.
Enquanto os mais novos, Ponyboy e Johnny Cade (Ralph Macchio) passam um tempo saindo com Dallas (Matt Dillon), o greaser recém saído da prisão, os integrantes mais velhos — e ainda assim, muito novos para as vidas que levam —, Soda e Steve (Tom Cruise) são vistos trabalhando em um posto de gasolina. Tal fato chama atenção para o que foi levantado por Hinton em seu livro, e continua bem explorado por Coppola na adaptação: nos bairros pobres, ainda na adolescência, é preferível estar trabalhando do que estudando. A história de S. E. Hinton em parceria com Francis não parece estar tão distante da atual realidade, mesmo passados mais de 20 anos desde sua primeira exibição, e fica fácil entender os motivos da predileção dos alunos californianos pela narrativa. Tanto o livro como sua posterior adaptação olhavam para os adolescentes como, acima de tudo, pessoas reais, e não unicamente uma juventude sem problemas. Na realidade, mesmo com a pouca idade, as consequências das diferenças de classe já os atingem, e fogem completamente da sua capacidade de resolução.
Os problemas que possuem são tão além de seus próprios poderes de resolvê-los, que Johnny prefere passar a noite na rua, ou na casa dos irmãos Curtis, do que em sua própria residência. Quando os garotos retornam do cinema, entendemos o porque disso: apesar de não estarem presentes na cena, as sombras dos pais do garoto, sobre a cortina da janela principal da casa, e os barulhos que são feitos, mostram um óbvio momento de violência contra a mulher. Infelizmente, tudo já é tão natural para os garotos, que estes continuam brincando um com o outro na calçada, até que Johnny diga "odeio quando meus velhos brigam", com naturalidade, e saía para um terreno baldio com Ponyboy. A violência dentro da família não se restringe apenas aos pais: no rosto de Johnny, desde sua primeira aparição, veem-se machucados, e para aqueles que leram o livro, a autora os esclarece não como resultados de uma briga entre gangues, até porque, Johnny é, junto de Ponyboy, um dos greasers que não se envolve em brigas de rua. Seus hematomas são causados por seu pai, um homem agressivo e que torna toda a sua família disfuncional.
Quando enfim sozinho com Ponyboy, Johnny enfim cede ao seu verdadeiro eu: um garoto muito novo para precisar lidar com tanto. Com os gritos dos pais ecoando ao fundo, Johnny chora e diz para seu amigo que não sabe mais até quando conseguirá aguentar, dizendo até como pensa em se matar para por fim ao seu sofrimento. Ponyboy age com o amigo da mesma forma que Soda age para com ele: com carinho e cumplicidade. Ser um greaser é ter uma família que dá certo, mesmo que a sua de sangue não te aceite ou não te cuide, e seus integrantes sabem disso, mas para que se sintam bem-vindos, precisam que todos os outros, de fora do grupo, também saibam e os tratem como pessoas reais: sem rumo.
Porém, se para os mais velhos isso é claro, para Johnny e Ponyboy, que pedem em seus sonhos mais íntimos por um chance de ser pessoas "normais", tal constatação ainda demorará para acontecer. Por isso, depois de mais uma briga com o irmão mais velho, Ponyboy vê na oportunidade a chance de sair de casa acompanhado de Johnny, visando, quem sabe, ir para o interior a fim de construírem uma nova vida juntos, onde não sejam taxados pelo grupo com quem andam. A saída na madrugada resulta em um novo encontro com os socs, com quem Dallas havia se desentendido mais cedo no cinema, e por sempre serem associados ao que o grupo como um todo faz, são os mais novos quem acabam sendo atacados pelos jovens do sul da cidade, momento que culmina na reviravolta que os tornam fugitivos.
Se o homem é produto do meio em que vive, mais tarde, durante o período em que os dois personagens passam escondidos, mais uma vez é o meio quem os faz: em uma situação de resgate, os meninos procurados pela polícia tornam-se heróis, e mesmo que da pior maneira, são vistos além de integrantes dos greasers. Triste é perceber que isso só é possível a partir da morte de um deles, quando todo o descaso a que esses garotos foram submetidos por tanto tempo se torna irreversível.
Referências
- Hollywood's Brat Pack — David Blum, 1985. New York Magazine.
- HINTON, S. E. The Outsiders: Vidas Sem Rumo. Tradução de Ana Guadalupe. 2020, Intrínseca.
Imagem de destaque e texto: Tati Ferrari
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