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A Filha de Rappaccini, de Nathaniel Hawthorne, e a monstruosidade

Recentemente, assinei a Sociedade das Relíquias Literárias, projeto da editora Wish que visa expandir a publicação de contos clássicos, muitos desconhecidos por aqui. Foi com satisfação que li A Filha de Rappaccini, conto escrito por Nathaniel Hawthorne em 1844, com tradução de Cláudia Mello Belhassof

Nathaniel Hawthorne nasceu em 1804, na cidade de Salem, Massachusetts. Talvez sua origem não fosse assim tão interessante não fosse pelo detalhe de ter influenciado sua produção literária. Sua família era uma das mais tradicionais do local e seu antepassado, John Hathorne (o "w" foi adicionado posteriormente por Nathaniel), foi juiz do tribunal de caça às bruxas no episódio de Salem, no século XVII. Há especulações de que os trabalhos de Nathaniel revelam o quão envergonhado ele se sentia por ter na família um homem que participou ativamente do lamentável episódio em Salem. Há ainda quem diga que a alteração de seu sobrenome, incluindo a letra "w", foi feita para distanciar-se o máximo possível do ancestral. 

Na ficção de Hawthorne, podemos encontrar como tema principal a monstruosidade causada por pecados ocultos que, lentamente, vão envenenando seus personagens. Mas quem é o monstro em A Filha de Rappaccini

Este texto possui spoilers! 

A trama, que parece simples a princípio, revela-se mais inquietante quando examinada com cuidado. Hawthorne nos introduz a história de um jovem chamado Giovanni que hospeda-se num casarão melancólico em Pádua. Embora não saibamos ao certo o ano em que a história se passa, podemos localizá-lo em um período anterior ao da vida do escritor, talvez na Idade Média. 

Giovanni logo se depara com uma janela no casarão que dá para um jardim enorme. No entanto, embora o jardim seja atraente, ele também é estranho. Há nele uma variedade de plantas cujas origens o jovem não conseguiu definir, reconhecendo apenas uma ou duas. Tentado a descobrir mais sobre o misterioso jardim, ele logo fica sabendo que o local não faz parte do casarão onde está hospedado, mas sim do vizinho, um homem estranho chamado Rappaccini, médico de grande fama, mas não bem recebido na sociedade. Observando-o por uma fresta da janela, ele vê Rappaccini cuidar do jardim de forma esquiva, como se as plantas fossem lhe fazer mal, tendo o distanciamento máximo e usando uma máscara ao chegar perto delas. Logo, ele chama a uma jovem, Beatrice, que prontamente surge, fazendo contraste com o médico. Beatrice é sua filha e tem uma aparência de beleza e bondade extremas. Ela, que não parece temer o jardim, abraça um arbusto, ficando audivelmente feliz por ajudar o pai naquele trabalho tão peculiar aos olhos do jovem que lhes observa. 

"Nada superava a dedicação com que esse jardineiro cientista examinava cada arbusto que crescia em seu caminho. Parecia que ele estava perscrutando sua natureza mais íntima, fazendo observações sobre sua essência criativa e descobrindo por que uma folha crescia com essa forma e outra com aquela e por que motivo essas e aquelas flores se distinguiam entre si nos quesitos de cor e perfume."

Aos poucos, Giovanni vai se aproximando do jardim e de Beatrice, com quem acaba travando contato e iniciando uma espécie de relacionamento. A princípio, somos levados a crer, pelos conselhos de outro personagem, um amigo do pai de Giovanni, que o rapaz está sendo atraído para uma armadilha fatal pela jovem, que representa a beleza da perdição.

É interessante observar que a escolha que Hawthorne fez ao colocar como figura de desejo e fatalidade uma jovem de semblante inocente, com uma beleza incomparável e gentileza nos gestos, é deliberada. A moral do século XIX, assim como suas próprias questões familiares, lhe impunham o perigo que uma mulher pode representar, especialmente na vida de um rapaz incauto. Portanto, conforme o conto avança e descobrimos a verdade por trás das insinuações, somos levados a crer que o verdadeiro intento do autor era justamente contestar a noção de que a mulher é a representação dos males e da sedução. 

À direita, a capa de A Filha de Rappaccini; à esquerda, Nathaniel Hawthorne por volta de 1860

O segredo envolvendo Rappaccini e sua filha é de natureza ética, não sobrenatural. Ela, exposta a venenos desde criança, desenvolveu resistência a eles, mas tornou-se, ela mesma, venenosa. Tocá-la é fatal. Até mesmo seu hálito pode matar. Beatrice é tão vítima do pai quanto as cobaias que ele usou durante suas pesquisas. 

Giovanni, entretanto, ao finalmente descobrir o enigma de Beatrice, encolara-se com a jovem, como se ela tivesse maquinado para atraí-lo e transformá-lo num ser abjeto, que pudesse ser seu companheiro. Ele, após tanto tempo de exposição - sem toques, mas respirando o mesmo ar, estando na presença dela e das plantas do jardim -, tornou-se tóxico também. 

Ao invés de virar-se contra Rappaccini, que envenenou a filha e o usou como experimento científico, ao mesmo tempo comprovando uma hipótese e dando um par romântico de presente para Beatrice, que passava os dias trancafiada em casa e no jardim, Giovanni decidiu que toda a culpa deveria cair sobre a jovem, que nada fez além de responder às investidas do rapaz com conversas tímidas, sem nem ao menos deixar que ele a tocasse. Giovanni, ao perceber que tornou-se tão venenoso quanto Beatrice, passa a desprezá-la, como se ela tivesse culpa de todo o mal causado pelas experiências de seu pai e pela própria insistência de Giovanni, que permanece junto a ela mesmo após perceber que há algo de estranho na jovem. 

"[...] a fantasia de Giovanni deve ter ficado mórbida enquanto ele olhava para o jardim, pois a impressão que a bela desconhecida lhe passou foi de que ela era mais uma flor, a irmã humana daquelas vegetais, tão linda quanto elas, mais linda que a mais esplêndida delas, mas que só podia ser tocada com uma luva e da qual ninguém podia se aproximar sem uma máscara."

Quem é o verdadeiro monstro em A Filha de Rappaccini? Beatrice, a bela e fatal mulher, Giovanni, o rapaz galante que não hesita um instante sequer antes de virar-se contra o objeto de seu desejo porque algo não ocorreu como ele gostaria, ou mesmo o doutor Rappaccini, que não possui escrúpulos em nome da ciência? 

É ela quem leva a culpa aos olhos de Giovanni, mas a monstruosidade no caráter do rapaz é muito maior do que qualquer veneno que ela poderia ter. 

O conto é repleto de duplos, talvez o da jovem bonita e perigosa seja o mais óbvio dentre eles. Beatrice corresponde ao mesmo tempo à beleza idílica e virginal da época e também à figura da mulher sedutora e fatal. Ela refere-se ao arbusto no centro do jardim como seu gêmeo, e descobrimos mais tarde que as experiências científicas de seu pai de fato tornaram Beatrice e aquela planta mais semelhantes do que se possa pensar. A jovem é fruto do espírito sem compaixão de seu pai, que lhe expôs a venenos desde pequena para criar uma mulher fatal e, ao mesmo tempo, inatingível. Beatrice vive isolada no jardim, e todos que dela se aproximam encontram apenas um destino. 

Hawthorne, com isso, consegue demonstrar que era comum à sua época enxergar mulheres como a resposta evidente para um problema. No entanto, como o autor demonstra, ainda que Beatrice seja venenosa a ponto de matar quem dela se aproximar e tenha diversos duplos ao longo do conto, ela é a grande vítima - tanto de seu pai quanto de Giovanni, que a condena à morte ao lhe ferir emocionalmente e, em seguida, oferecer-lhe um suposto antídoto, que mata a jovem. 

Não sabemos que fim levam Giovanni, Rappaccini e o Baglioni, médico amigo do rapaz, que lhe entregou o antídoto/veneno. O que sabemos, todavia, é que em meio a disputas de ego de homens da ciência, quem termina morta é a mulher, vítima por toda sua vida e mais ainda em seus momentos finais. 

É no engano do que as aparências podem dizer sobre alguém que concentra-se o terror nessa história. Mas talvez o que mais se tem a temer é o quão pouco significa a vida de uma mulher para esses grandes homens. 

"Ah, será que não havia, desde o início, mais veneno na sua natureza do que na minha?"
  

Referências 

  • John Hathorne Home, Site of (Salem Witch Museum) 
  • A utilização da maquinaria gótica e seus sentidos em Rappaccini's Daughter (Raquel de Vasconcellos Cantarelli) 


Texto: Mia Sodré
Imagem de destaque: colagem feita a partir da ilustração da capa do conto, por Caroline Murta 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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