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Assassinato no Campo de Golfe: uma tacada certeira de Agatha Christie

É difícil não gostar de um romance escrito por Agatha Christie. Considerada até hoje a rainha dos mistérios, ela detém tal título de forma merecida pois, durante cerca de cinco décadas, manteve-se intrigando um público sedento por histórias de detetive que fugissem ao óbvio. 2020 marca o centenário de sua primeira publicação — em 1920, com O Misterioso Caso de Styles, o nome de Agatha passou a ser conhecido pelo mundo. Desde então, foram mais de sessenta livros de mistério e tantas outras histórias publicadas ainda em vida, com personagens que entraram para o cânone dos detetives clássicos, como o belga Hercule Poirot. Assassinato No Campo de Golfe é uma das aventuras mais conhecidas de Poirot, que emprega suas células cinzentas para descobrir a verdade por trás de um complicado caso na França. 

Originalmente publicado em 1923, Assassinato No Campo de Golfe é o terceiro livro da longa carreira de Agatha Christie e o segundo onde figura um dos detetives mais famosos da literatura, Hercule Poirot. Durante uma viagem de trem, ao receber uma carta urgente pedindo seu auxílio como investigador, Poirot e o Capitão Hastings, seu amigo e narrador da aventura, partem para a França a fim de encontrar o monsieur Renauld, um multimilionário que acredita estar correndo risco de vida. Entretanto, ao chegarem lá, deparam-se com uma cena policial: o corpo de monsieur Renauld foi encontrado numa cova aberta do campo de golfe da propriedade, com uma faca enfiada em seu coração. Sua viúva, a senhora Renauld, teve pés e mãos amarrados no quarto, e fora amordaçada por dois homens de chapéu, segundo sua própria declaração. Parece tarde demais para que Poirot proteja o homem que o contratou, no entanto, o caso está apenas começando e há muito trabalho a ser feito. 

Poirot é um detetive incomum que parece, em diversos momentos, até mesmo alheio ao que está acontecendo. Ele faz comentários que não parecem ter sentido à primeira vista, não perde tempo coletando pistas minuciosas do local e detém sua atenção no estado psicológico das pessoas. Para Poirot, o crime ocorre antes na mente que na ação física. É interessante perceber como existe, na conduta do detetive e em seus comentários irônicos, uma pontada de crítica aos novos modos de se conduzir uma investigação. Na França, ele é obrigado a lidar com outro detetive, um homem chamado Giraurd, um desses “cães farejadores”, como é mencionado no livro, que não deixam passar um fio despercebido, mas baseiam-se somente em evidências físicas, ao invés de darem importância ao que ocorre nas motivações de cada um. Todos são suspeitos, uns mais do que outros, mas Agatha Christie criou um detetive da velha guarda, que enxerga além de suspeitos, e não se apressa para chegar a um resultado, analisando calmamente todas as variáveis de acordo com os personagens do quadro. Giraurd é, de certa maneira, tanto uma crítica aos novos métodos da época, que incluíam o uso de análise de digitais, coisa básica de hoje em dia, e as evidências materiais, quanto uma sátira de Sherlock Holmes, personagem de Sir Arthur Conan Doyle, que é minucioso ao extremo perante o que pode enxergar, mas não possui o costume de lidar com as questões psicológicas das pessoas envolvidas no crime. Poirot, por outro lado, é quase o oposto de Sherlock, exceto pela inteligência afiada, mas ela aplica-se de maneira diferente já que ele é, dentre tantas coisas, um senhor de idade com maneiras polidas e, é necessário dizer, arrogantes. 

“Método, entende, mon ami? É tudo uma questão de método. Ponha os fatos em ordem. Ponha as suas próprias ideias em ordem. E se algum pequeno fato por acaso não se ajustar… ao invés de descartá-lo, examine-o ainda mais atentamente. Embora o significado dele possa lhe escapar o momento, fique certo de que é importante.”

Para além de Poirot, a história é sensacional. Não me atrevo dizer que é a melhor de Agatha Christie, mas certamente figura entre as minhas preferidas. O crime que levou a vida de monsieur Renauld parece simples: uma viúva que não se abala perante o interrogatório e que afirmou ter sido amarrada por dois homens com barbas falsas. Um filho que deveria estar na Argentina, mas curiosamente surge, de forma intempestiva, logo após o assassinato do pai. Um carta de amor encontrada no bolso do casaco do monsieur. Em pouco tempo, o testamento de Renauld é descoberto e as motivações — assim como os culpados — parecem cada vez mais claras. Duas semanas antes do acontecimento, Renauld alterou o testamento, deixando tudo o que tinha para sua esposa — e relegando nada ao filho. Aos olhos da polícia francesa, o filho é o maior suspeito, talvez em conluio com a viúva, que não parece ter desejado a morte do marido, mas dá a entender estar escondendo algo para defender alguém. E quem mais ela desejaria defender que não o próprio filho? 

Mas nada é tão simples num romance de Agatha Christie, e em Assassinato no Campo de Golfe acompanhamos reviravoltas atrás de reviravoltas. Personagens que só deram um oi no início do livro surgem como peças-chave para a investigação. Um crime cometido há vinte anos é central para o desenvolvimento dos acontecimentos na mansão Renauld. Ninguém é o que parece, e existe um romance no meio, além de uma briga entre detetives pomposos (os melhores momentos do livro? Talvez). 

O que me incomoda nele são coisas relacionadas ao Capitão Hastings, amigo de Poirot, que o acompanha nessa jornada investigativa. A voz narrativa no livro é a de Hastings, que nos descreve os acontecimentos de acordo com o que ele observa, assim como os diálogos de personagens com quem interage. Mas Hastings é um narrador, por vezes, enfadonho. Claro, em se tratando de um livro de investigação, pode ser interessante haver um narrador que não seja o detetive, especialmente porque o intelecto de Hastings é voltado para coisas mais óbvias, ao contrário do de Poirot, que não se dá por satisfeito com as provas materiais apresentadas no caso. Muitas vezes, ele e o amigo discutem, discordando veementemente da forma como enxergam o caso e da maneira com que lidam com o mundo. É uma subtrama que não atrapalha o caso, mas também é um pouco chata, pois Hastings não é uma pessoa suficientemente interessante para que seus dramas pessoais acrescentem positivamente ao livro. 

Além disso, talvez o que mais tenha me incomodado é o romance entre Hastings e Cinderela, alcunha da moça que ele conhece no trem, antes de embarcar para o mistério Renauld, e por quem se apaixona após uma breve troca de palavras. A paixão, que logo é chamada de amor, acontece primeiro pela beleza de Cinderela e, posteriormente, pela forma livre com que fala — chegando a usar um palavreado inadequado para mulheres na época (coisa de que gostei — foi uma audácia de Agatha Christie, e funcionou bem). Embora, ainda que sua personalidade possua liberdades avançadas para o tempo em que a história ocorre, a visão de Hastings a respeito da moça é paternalista, o que não ajuda em nada para que o leitor simpatize com um narrador que não somente apaixona-se perdidamente e está disposto a correr riscos (e trair amizades) por uma garota cujo nome verdadeiro ele nem sabe, como também possui um pensamento retrógrado até mesmo para a Europa nos anos 1920. 

O final também não me agradou ao todo. Claro, não me refiro à solução do mistério — que é simples e elegante, tão simples que não conseguimos enxergá-la, característica melhor desenvolvida em romances posteriores da autora, mas que aqui, em seu terceiro livro, já dá as caras —, mas sim ao desfecho melodramático envolvendo Hastings, Cinderela e um casamento. Após trair a confiança e amizade de Poirot em nome de um amor completamente infundado, Hastings possui o final feliz dos bobos, casando-se com alguém que mal conhece e tendo um “felizes para sempre” — ou, ao menos, até a próxima história. 

No geral, Assassinato no Campo de Golfe é uma bela história de detetive, repleta de personagens misteriosos, uma atmosfera rápida e atenta com um caso que parece intrincado, mas que mostra-se simples a partir do momento em que se usa o raciocínio, para além de confiar somente nas evidências físicas. Ainda que seja narrado pelo insosso Hastings, é praticamente impossível não sentir-se encantado com a capacidade criativa de Agatha Christie, nossa eterna Dama do Crime. 



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Texto e imagem de destaque: Mia Sodré
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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