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As Diabólicas: um retrato da França do pós-guerra

Quando pensamos em filmes noir, geralmente nos lembramos de uma atmosfera de mistério, na qual a figura do detetive se vê envolvida em uma trama confusa, tentando desvendar assassinatos e tramas diabólicas. Também podemos pensar nas ambíguas femme fatales, mulheres que levam os protagonistas desse gênero cinematográfico à ruína. O noir aceita essa definição, mas não foi só isso.

O noir, como movimento literário e cinematográfico, tem camadas muito profundas. Para além de detetives e neblina, ele representou em diversos momentos os medos culturais e sociais. Quando pensamos nos filmes e romances policiais dos anos 1940 e 1950, podemos dizer que os medos e reflexos da Segunda Guerra Mundial estavam refletidos nessas narrativas. Alguns deles ficaram eternizados em nossa memória cinematográfica. É o caso de As Diabólicas, filme de 1951, dirigido por Henri-Georges Clouzot.

As Diabólicas é um filme noir francês diferente, pois ele quebra nossas expectativas sobre esse gênero, digamos assim. Para começar, ele é ambientado em um internato para garotos. A figura do assassino é substituída por duas mulheres, a esposa e a amante, que se juntam para assassinar o diretor da escola, Michel LaSalle (Paul Merisse). Além disso, ele carrega um forte contexto social, que dialoga muito com a França do pós-guerra.

A França do pós-guerra: la belle américaine

A França dos anos 1950 estava em polvorosa. Ela vivia um crescimento econômico muito forte, grande parte impulsionado pelos EUA. É a chamada belle américaine, quando os produtos americanos, como máquinas de lavar e geladeiras, entram em solo francês. Trata-se do começo de um momento de consumo nos moldes do sonho estadunidense.

A ideia era "copiar" o clima de prosperidade dos EUA, o sonho de consumo estadunidense. De acordo com a pesquisadora Claire Gorrara, no livro The Roman Noir in Post-War French Culture, foi um processo contraditório, uma vez que a França ainda se recuperava da Segunda Guerra e vivia sob as políticas de racionamento daquela época.

Christina (Vera Clouzot) e Nicole (Simone Signoret)
A esperança do futuro francês residia na vida doméstica. Dessa forma, é compreensível os motivos pelos quais a venda de eletrodomésticos explodiu nesse período. Havia um discurso de limpeza e ordem, sob o qual se escondia uma vontade imensa de esquecer os horrores de um país que lambeu as botas dos nazistas durante quatro anos.

É nesse contexto que As Diabólicas se encaixa. Ele pode ser lido como uma crítica a esse modelo social que relegava as mulheres ao âmbito privado, mas também como uma punhalada no colonialismo francês. Alguns críticos interpretam a cena em que Michel é assassinado dentro de uma banheira, afogado, como uma alusão às torturas perpetradas aos argelinos pelos franceses.

Uma figura contraditória: Clouzot e a adaptação de As Diabólicas

Henri-Georges Clouzot, como diversas figuras francesas, era repleto de contradições. Começou a carreira como roteirista na época da Ocupação Nazista na França. Ele adaptava histórias de detetive para o cinema. Seu primeiro filme, O Corvo, de 1943, dá uma dimensão de sua figura contraditória e é uma pista da preferência do diretor em inserir elementos sociais em seus filmes.

O Corvo conta a história de uma pacata cidade no interior da França. De repente, uma pessoa misteriosa começa a enviar cartas anônimas aos habitantes desse lugar, expondo seus segredos e "podres". Ele funciona como uma alegoria da Ocupação Nazista francesa. Considerado um tabu até os dias de hoje, esse é um momento de tremenda vergonha para os habitantes do Hexágono. 

Na França de Vichy, cidade-sede do governo nazista, era comum denunciar e dedurar as pessoas. Muitas vezes inocentes eram indiciados por conta de inimizades, manchando reputações para sempre. O Corvo sintetiza isso de maneira muito clara ao inserir as cartas anônimas e o efeito que elas causam na cidade. Inclusive, o filme foi banido por Vichy, afinal veiculava uma mensagem com a qual o regime não queria ser associado.


Em 1955, mais de dez anos após O Corvo, Clouzot denunciou os pilares sagrados da França do pós-guerra: o casamento e a escola. As Diabólicas é uma adaptação cinematográfica do romance Celle Qui N'Était Plus, dos escritores Pierre Boileau e Thomas Narcejac. O livro conta a história do assassinato de Mireille, esposa de Ravinel, tramado pelo marido dela e a amante, Lucienne. Em um determinado momento, Ravinel começa a acreditar que a esposa está viva e o assombrando. Será mesmo?

Celle Qui N'Était Plus teve seus direitos comprados por Clouzot três dias após seu lançamento. Alfred Hitchcock também estava de olho na história, mas Clouzot foi mais rápido. A história o compensou: ele adaptaria D'Entre Les Morts, dos mesmos autores, cerca de quatro anos depois.

Boileau e Narcejac gostaram da adaptação de As Diabólicas, mas em uma entrevista afirmaram que tratava-se mais de uma recriação. Toda adaptação é, de certa forma, uma recriação, mas entendo o que eles querem colocar. Li o livro e acredito que esse seja um raro caso em que o livro não consegue fazer jus à adaptação. A adaptação, ao transpor a história de Nantes para um internato, conseguiu adicionar camadas mais profundas, que talvez deixem a desejar na trama de Boileau-Narcejac.

Um marido misógino, uma esposa católica fervorosa e a amante: o que poderia dar errado?

As Diabólicas conta a história de um internato para garotos, dirigido pelo misógino e cruel Michel DeLaSalle. Ele é casado com Christina (Vera Clouzot), diretora e professora da instituição, e mantém um caso com Nicole (Simone Signoret), outra professora do internato. Cansadas dos maus tratos de Michel, elas resolvem tramar a morte dele.

Michel é um misógino de marca maior. Em uma das primeiras cenas do filme, ele constrange a esposa durante o almoço, obrigando-a a comer. A fala dele, "Engula!", também pode ser interpretada de outra forma, algo de cunho sexual. Como se Michel estivesse estuprando Christina. Além disso, ele agride a amante. Algumas cenas depois, Nicole aparece de óculos escuros por conta de um olho roxo, obra de Michel. É extremamente constrangedor de se assistir, especialmente porque Michel representa a ordem patriarcal. Apesar de Christina ser a dona da escola, é ele quem administra o dinheiro. Até 1955, as francesas não tinham direito a administrar seus bens, apenas os maridos podiam fazer isso. Christina é vítima de toda sorte de violências: física, psicológica e financeira.

Ao tramarem a morte de Michel, Nicole e Christina levantam-se, de certa forma, contra a ordem patriarcal que impera durante todo o filme. Vale observar que ambas as mulheres são bastante diferentes: Christina é católica fervorosa, ao passo que Nicole é uma mulher liberal, que se sustentava com o dinheiro da escola e do aluguel de sua propriedade em Niort. Apesar de tão diferentes, elas se unem por um desejo comum: acabar com o homem que atormenta a vida delas.

A execução do assassinato de Michel acontece durante um feriado. Christina atraí o marido até Niort, mentindo que deseja se separar dele. Ao chegar lá, ela o droga e depois Nicole o afoga na banheira. É uma cena forte de várias formas, especialmente pelo simbolismo que ela carrega. Após serem violentadas de tantas formas, as duas mulheres respondem com uma violência ainda mais brutal. A única solução que viam para aquela situação era a morte de Michel.

Elas levam o cadáver de Michel até a escola e o jogam na piscina. Ao esvaziarem a piscina, descobrimos que o corpo desapareceu. Será que Michel sobreviveu? O que aconteceu a ele? São respostas que o filme vai construindo durante as quase duas horas de duração. Porém, gostaria de chamar atenção para o fato de que o desfecho não chega a ser tão importante quanto o processo que acontece depois da morte de Michel: a perda da sanidade de Christina.

Após o assassinato do marido, Christina é invadida por uma culpa católica muito forte. Ela se culpa e acredita que será punida pelo que fez. Começa, assim, seu calvário. As Diabólicas desloca o foco para o sofrimento mental de Christina. Ela tem problemas no coração e pode morrer, dependendo da emoção. Nesse sentido, é interessante observarmos como o noir é muito mais do que o "Quem matou?", e sim "Por que esse personagem sofre?" A grande sacada de As Diabólicas é mergulhar profundamente no tormento de Christina, e isso é realizado por meio de uma câmera subjetiva que a acompanha vagando pela escola, depois de ouvir barulhos e acreditar que Michel veio levá-la para o inferno.

As Diabólicas é um filme sobre personagens atormentados com seus próprios demônios. O medo vem daí. Christina perde o controle de sua vida após o assassinato de Michel. Ela não come, não dorme, pois acredita que será descoberta a qualquer momento. Seu tormento chega a tal ponto que ela confessa ser a assassina de Michel, embora ninguém acredite nela.

Como dissemos anteriormente, esse filme também desmonta a instituição escola e casamento. Em As Diabólicas, tudo e todos são podres. Os alunos afrontam os professores, os professores fazem comentários misóginos e desrespeitosos sobre as professoras, o marido agride a esposa. A limpeza e ordem francesas caem por terra quando olhamos o funcionamento do internato e do casamento entre os personagens principais. A escola e o casamento eram essenciais à reconstrução da França no pós-guerra, mas Clouzot não está interessado em enaltecer tais instituições. Talvez isso explique o porquê de o filme ter sido tão mal recebido na época. Clouzot mostrou que, por trás de lindas donas de casa e crianças, escondem-se a maldade e a hipocrisia. O final de As Diabólicas confirma isso.

As Diabólicas é um filme sensacional e, mesmo para os padrões de 2020, brutal. Ele reflete as particularidades da França do pós-guerra, usando técnicas do noir estadunidense para criar algo que representa a crise de uma época. O noir é um corpo flexível, adaptando-se a cada realidade. Ainda bem, pois assim nos possibilita conhecer os meandros de cada cultura. Foi o que Clouzot conseguiu com muito louvor.



Texto: Jessica Bandeira 
Imagem de destaque: Mia Sodré 

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