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A Morte no Bosque: as mulheres à frente do noir

A tradição do romance policial francesa é muito conhecida mundialmente. Desde o lançamento da famosa Série Noire, os franceses ganharam um lugar de destaque na ficção policial. Mas em um gênero por vezes tão misógino, a pergunta que não quer calar: onde estão as escritoras?

Desde o começo da Série Noire, muitas mulheres escreveram romances policiais. No entanto, cerca de 40% delas usavam pseudônimos. A maioria delas esbarrava na seguinte pergunta: mulheres podem escrever romances policiais? 

Por reproduzir uma violência gráfica absurda e sexualizar as mulheres, acreditou-se durante muito tempo que o lugar das mulheres não era escrevendo romances policiais. Afinal, os homens da classe trabalhadora, os maiores leitores dessas histórias, identificavam-se com detetives solitários que combatiam o crime e desviavam-se de seus próprios medos.

Na metade dos 1990, um grupo de escritoras francesas tomou a cena dos romances policiais. A partir de concursos, autoras como Fred Vargas, Brigitte Aubert Dominique Manotti puderam se lançar e acabaram criando uma espécie de subgênero do policial, o polar au féminin ("romances policiais escritos por mulheres", em tradução livre). Foi um momento bastante especial, ainda mais por conta do apagamento que as escritoras sofreram décadas antes.

A Morte no Bosque, de Brigitte Aubert, encaixa-se nessa onda de romances policiais franceses escritos por mulheres durante os anos 1990. Ao contar a história de Elise, uma mulher com deficiência motora, visual e na fala, que começa a tentar desvendar uma série de assassinatos perpetrados contra crianças no subúrbio de Paris, ela subverte tudo o que podemos esperar de um romance policial.

No começo de A Morte no Bosque, conhecemos Elise, uma jovem que sofre um violento acidente com o namorado, Benôit. Eles são vítimas de um atentado na Irlanda, o que causa a morte dele. Elise adquire sequelas motoras e visuais, ou seja, ela não pode mais andar e nem falar. A partir do acidente, ela abandona seu emprego como dona de cinema e passa a ser assistida por Yvette, uma senhora que está na família há muitos anos.

Um dia, Yvette vai fazer compras e deixa Elise esperando do lado de fora de um supermercado. Uma garotinha chamada Virginie aproxima-se de Elise e começa a conversar com ela. No entanto, o que poderia ser uma simples conversa torna-se quase um pesadelo: Virginie confessa que existe um assassino à solta que mata e mutila crianças. E ela sabe quem é.

A partir do primeiro encontro entre Virginie e Elise, a história realmente começa. O primeiro ponto que chama atenção em A Morte no Bosque é que a história se desenrola em duas frentes: a do crime e de mostrar como é a vida de uma pessoa com deficiência. Os dois pontos se fundem.

É interessante perceber que Virginie, uma criança de sete anos, é a única personagem que não trata Elise com capacitismo. Yvette, os pais da menina e os amigos a tratam com piedade, pressupondo que, já que ela não fala e nem se move, tornou-se um ser amorfo. Nesse sentido, é incrível o fato de Brigitte Aubert ter escolhido uma mulher com deficiência para estar à frente desse romance policial. Por meio de falas e acontecimentos, a autora vai nos mostrando a hipocrisia que reside no tratamento a pessoas com deficiência. Os outros personagens não enxergam a agência de Elise, mesmo que ela se comunique levantando o dedo indicador.

Como já falamos anteriormente neste especial, o romance policial é um gênero que fala muito sobre os medos sociais e culturais. Em A Morte no Bosque, o medo de Elise é que ela possa ser violentada ou morta a qualquer momento. Em uma cena muito forte da história, ela é assediada pelo assassino, que enfia a mão dentro de sua blusa e escreve "puta" com a ponta de uma faca em seu braço. Trata-se de um medo muito palpável para as mulheres, potencializado pelo fato de que Elise não tem como se defender.

Outra fonte dos medos da protagonista é viver em uma sociedade que invisibiliza pessoas com deficiência. A todo momento, Brigitte Aubert nos mostra o contrário. Elise é uma mulher inteligente e não pode ser definida apenas por sua deficiência. No entanto, a personagem sabe que não é assim que a veem.

A história é narrada do ponto de vista de Elise, ou seja, na primeira pessoa. É uma escolha bacana, especialmente porque mergulhamos em seu sofrimento. Elise oscila entre a autodestruição, humilhando a si mesma, na forma como se se refere a si ("Eu sou um legume", ela diz) e ao apego ao passado. Em diversas passagens, ela relembra sua vida antes do acidente. 

Anteriormente, comentei sobre o polar au féminin e gostaria de me ater mais a ele agora. A ideia de criar um subgênero para as mulheres nos romances policiais, ao meu ver, é bastante problemática. É como se isso não permitisse que elas pudessem estar simplesmente no romance policial, sem precisarem se encaixar em uma espécie de "cota". Sendo que, como Claire Gorrara coloca em The Roman Noir in The Post-War French Culture, a tradição das mulheres no noir é antiga. De acordo com a pesquisa de Deborah Hamilton, cerca de 180 escritoras publicaram 1.750 romances entre 1920 e 1990 na França. Claude Asnain, por exemplo, era o pseudônimo de Halette Fernand-Gregh, e por aí vai. Para que criar um subgênero se elas sempre estiveram lá?

No entanto, o que Brigitte Aubert cria em A Morte no Bosque é uma experiência difícil e intensa do que é ser o Outro. Elise é Outro por ser mulher, mas também por conta de sua deficiência. Todas as experiências que ela terá na história decorrem a partir do olhar que os outros têm sobre ela, do que é ser uma mulher com deficiência. Só por isso já uma história para ler para ontem. Em um gênero tão misógino quanto o romance policial, é um alívio ler histórias em que as mulheres são mais do que um objeto sexual.


Texto: Jessica Bandeira 
Imagem de destaque: Mia Sodré 

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