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Margaret: a complexidade de uma princesa


A etiqueta da família real britânica insiste para que as personalidades individuais sejam apagadas em nome de uma visão aplainada de realeza. The Crown, série de ficção histórica que está em sua 4ª temporada, aborda esse tema com delicadeza, mas sempre o deixando em evidência suficiente para que possamos ver até que ponto as pessoas pertencentes à família real foram submetidas ao silêncio. Não é como se fossem vítimas, claro, não quando olhamos para o todo, onde há desigualdade, racismo, homofobia, xenofobia etc., problemas graves e que continuam a existir enquanto o luxo impera dentro dos palácios. Mas a ideia fortemente forjada de uma realeza impecável é desafiada na série, que nos deixa perceber as complexidades de seus personagens - e nos faz pensar no quão verdadeiras são as insinuações da tela. E, dentre toda a gama de personagens históricos presentes na série, talvez a mais complexa seja a princesa Margaret (Vanessa Kirby / Helena Boham Carter). 

Olhando para a história, podemos perceber que embora as princesas fossem vendidas como perfeitas a futuras cortes de príncipes e reis com quem poderiam casar-se, não era raro que tal reputação fosse suplantada assim que a convivência no novo local começasse. Reputações arruinadas, infâmias, boatos terríveis e com consequências avassaladoras não são exceções nas histórias de princesas. Pelo menos, não nas da vida real. Entretanto, isso acontecia principalmente em épocas onde não parecia haver a possibilidade de uma queda da monarquia. Coincidentemente ou não, a partir do momento em que a democracia começou a tomar conta do mundo e as poucas monarquias restantes sentiram-se ameaçadas, podemos perceber o surgimento da figura da princesa perfeita. Bonita, bem-vestida, simpática, mas humilde, generosa e amável, a princesa tornou-se o foco do sonho de diversas meninas ao longo das décadas. É um dos planos de marketing mais bem feitos da história. Mas isso não significa que ele corresponda à realidade. 

Numa época pré-Diana Spencer, é difícil lembrar de outra princesa que tenha causado tanto escândalo na Idade Contemporânea quanto Margaret Rose. Ela era irreverente, tinha uma vontade muito forte e rompeu com a imagem de princesa perfeita que era exigida de alguém em sua posição. Festas, flertes, namoros, risadas fora de hora, uma etiqueta respeitada apenas quando lhe convinha... Margaret era um espírito livre. O que não combina muito bem com a família real. 

Princesa Margaret em 1962, numa foto tirada por Antony Armstrong-Jones

"Beryl", o quarto episódio da 2ª temporada de The Crown, estabelece Margaret com maior propriedade como pessoa. Até ali, nós havíamos visto a sua audácia e sua força de vontade, especialmente ao lutar por seu relacionamento com Peter Townsend (Ben Miles), mas ela ainda parecia perdida dentro daquele palácio gigantesco, em meio a pessoas de quem ela gostava, pois eram sua família, mas de quem também sentia desprezo. É interessante como o episódio nos mostra em detalhes o quão fragilizada Margaret havia ficado após tantos anos naquele ambiente repressor. 

Nele, a vemos em uma sessão de fotos. A ideia é tirar fotos que representem o ideal da princesa: bonita e idílica, num vestido esvoaçante, para que toda menina e mulher do Reino Unido possa olhar e se inspirar. Mas tal imagem apaga completamente a Margaret pessoa, deixando apenas uma princesa genérica e inventada no lugar. Quando você é da realeza você não é uma pessoa, é uma imagem. E imagens não possuem expressão ou voz. 

Sentindo-se acuada numa festa de casamento, ela aceita o pedido improvisado de um amigo para que ambos se casem, baseado na antiga ideia de que um casamento é um acordo - muito melhor feito entre amigos do que entre pessoas dominadas pela paixão. Como seu casamento com Peter Townsend não foi concretizado por empecilhos da realeza, ela havia perdido seu brilho, ficando opaca e perdida em meio aos deveres reais e a toda a imposição a quem ela deveria ser. É triste ver Margaret tentando contentar-se com o noivo arranjado, especialmente após ele aproveitar a fama de um noivado com a princesa para engrandecer-se, flertando com várias mulheres e chegando a ter casos. É simplesmente humilhante. 

E Margaret sabe disso. Desmanchando o noivado, ela sai arrasada e sem vontade alguma de casar com ninguém, embora sua mãe não perca tempo e já lhe mostre uma lista de possíveis pretendentes de outras famílias reais com quem ela poderia ser arranjada. Ela é uma peça destoante no tabuleiro da realeza e todos desejam que ela apenas case com um homem de boa família e que não cause escândalos para que o problema seja solucionado de uma vez por todas. E ela quase cai nisso, mas algo muda seu destino. 

Vanessa Kirby como a princesa Margaret em The Crown

Numa festa na casa de sua dama de companhia, um local onde não há pessoas tradicionalmente ricas ou que lambem o chão da realeza, ela conhece Antony Armstrong-Jones (Matthew Goode), um fotógrafo que lhe fascina tanto por seu desprezo ao seu título quanto por sua capacidade de ler as pessoas. Não demora para que ela esteja no estúdio de fotografia dele, pronta para desvendar o homem misterioso - e esperando ser desvendada também. Quando Tony lhe diz que ela não faz ideia de quem seja, podemos ver um estremecimento em Margaret, que à meia-luz de um estúdio estranho e frio, com um homem suficientemente arrogante para não dar a mínima para seu título de princesa, Margaret encara algumas coisas sobre si mesma. É uma experiência catártica, ainda que silenciosa. 

O design de produção do episódio é impecável. A câmera fica torta por boa parte do tempo em que Margaret e Tony estão no estúdio, mostrando claramente o desconforto da princesa ao deixar o espectador desconfortável. Aquele não é seu mundo, mas é um no qual ela deseja manter-se estável. Justamente por não se enquadrar, por não precisar representar um papel, ela se permite ser uma pessoa antes de uma imagem pela primeira vez. 

Os gestos trêmulos, a voz, outrora tão eloquente, emitindo apenas respostas monossilábicas e diretas, os olhares fortuitos, tudo é construído de forma a dizer que existe uma pessoa ali, alguém que está se enxergando pela primeira vez sem o filtro da perfeição. Não há necessidade de representar um papel naquele estúdio. 

Vanessa Kirby e Matthew Good como princesa Margaret e Antony Armstrong-Jones em The Crown

"Beryl" é focado no olhar de Margaret. Em diversos momentos do episódio, ela vira a cabeça para olhar algo, alguém, parecendo sempre à procura de alguma coisa. E então, num estúdio mal iluminado de um homem que ela mal conhece, ela é vista. E isso a assusta, mas também a encoraja. 

Como muitas mulheres, Margaret ficou marcada por suas relações amorosas. A sociedade da época era ainda mais conservadora do que a de hoje nesse quesito, e ser uma mulher que abertamente mantinha relacionamentos e interesses amorosos com mais de um homem era considerado escandaloso. Sua vida com Antony, que logo tornou-se seu marido, não foi muito fácil. Sabemos que ele a desrespeitava constantemente, desafiando todos os limites da princesa. Era um relacionamento complicado para ambos, e a série mostra como as intenções de Antony não eram tão ideais assim ao se aproximar de Margaret. 

Alguns episódios mais tarde, ela tem uma conversa com sua irmã, a rainha Elizabeth II (Claire Foy) na qual diz que casará com Antony porque ele a define. Enquanto espectadores do século XXI, nós podemos julgá-la, mas não condená-la: é muito humano apoiar-se em alguém. Mesmo que não seja saudável. 

Vanessa Kirby como princesa Margaret em The Crown

The Crown é, talvez, a melhor série de ficção histórica da atualidade, não apenas por ser bem produzida, mas por dar contornos psicológicos nítidos a seus personagens. A ambiguidade de cada um se faz presente, e raramente podemos dizer que alguém ali é bom ou mau - o que parece ser raridade em tramas políticas. Todavia, Margaret destaca-se nesse meio por romper com o tropo da princesa perfeita e ser uma personagem com problemáticas tangíveis. 

A realidade por trás da ficção 

Ao final do episódio, uma das fotos tiradas por Antony em seu estúdio é escolhida como a foto oficial de aniversário da princesa Margaret. É uma foto que representa a intimidade da aproximação emocional entre ela e Antony, assim como marca a adultez da princesa, que passa a tomar conta da própria vida sem dar muita importância aos comandos da realeza. 

A foto da princesa Margaret estampada no jornal, na série The Crown

A polêmica foto que Antony Armstrong-Jones tirou de Margaret e que foi parar nos jornais, escandalizando a família real pela sugestão de que a princesa havia posado nua, é uma mistura de duas fotos famosas que ele tirou. A primeira, referência histórica do episódio, é de 1959, tirada um ano antes deles se casarem. Nela, a princesa Margaret encara a câmera, num close espontâneo, usando brincos e um colar, mas sem a indicação de roupas, o que era inaceitável na época, dentro daquele contexto. 

Princesa Margaret em 1959, por Antony Armstrong-Jones. / Getty Images

A segunda, que parece ter sido a inspiração visual da série, é muito mais ousada, porém foi tirada em 1967, quando Margaret e Antony já estavam casados. Porém, nela, a princesa aparece usando do ombro para cima, e tudo que podemos ver nela é um brinco. Ela, de fato, parece estar nua, o que foi algo bem escandaloso na época.

Princesa Margaret fotografada em 1967 por seu marido, Lord Snowdon. / Getty Images


Referências 



Texto e imagem de destaque:
Mia Sodré
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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