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A monstruosidade da velhice: O que Terá Acontecido a Baby Jane?

Em 1962, com orçamento apertado e reunindo duas das maiores estrelas da Old Hollywood, nascia uma dos filmes de horror mais aclamados do gênero hagsexploitation: O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (cujo título original é What Ever Happened to Baby Jane?), de Robert Aldrich. Rodado em preto & branco, sem perspectiva nenhuma de sucesso, ele se tornou um ícone da cultura pop, citado por personalidades como RuPaul e cultuado pela comunidade LGBTQI+.

Baby Jane tinha tudo para ser um filme esquecido, mas acredito que ele foi lançado no momento certeiro, quando o cinema começava uma lenta mudança em direção à Nova Hollywood. Além disso, ele retrata como ninguém a mulher-monstruosa, aquela cujo maior horror é envelhecer, simbolizada por Bette Davis e Joan Crawford, as protagonistas e outrora ícones do glamour que Baby Jane confronta em quase duas horas de filme. A monstruosidade de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é atemporal porque o medo de mulheres envelhecerem é ainda mais palpável agora do que o era em 1962.

Inspirado no romance homônimo de Henry Farrell, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? se passa em três momentos diferentes: no começo dos anos 1920, na década de 1930 e no presente (1962). A divisão temporal é de extrema importância, pois ela estabelece a favor e contra qual personagem ficaremos ao longo desses três períodos. Baby Jane é um filme de diversas camadas, e nada é o que parece.

Tudo começa nos anos 1920, na época do vaudeville. Vemos uma garotinha, Baby Jane (Julie Allred), apresentando com seu pai a melodramática I've Written a Letter to Daddy. Tudo parece muito bem, até descobrirmos que a garotinha é mimada pelo pai, fazendo tudo o que deseja. Logo após a apresentação, Jane faz birra e pede sorvete. Temendo que as pessoas falassem de sua filha, o pai aceita fazer a vontade da menina. No cantinho, encontra-se Blanche Hudson (Gina Gillespie), a irmã mais nova, para quem Jane também pede um sorvete. Ela se sente mal por aquela situação, mas não diz nada.

Dez anos depois, na década de 1930, a história vira de cabeça para baixo. Dois produtores assistem a um filme de Baby Jane (Bette Davis). Eles comentam sobre a atuação terrível da protagonista. Durante essa conversa, podemos perceber como as atrizes da Era de Ouro da Hollywood não passavam de commodities na mão dos magnatas do cinema. Se não vendia, então não era lançado. Se você não era talentosa o suficiente, alguém era mais. Uma rainha toma o posto de outra. 

Nesse segundo momento do filme, é Blanche quem dita as cartas. Pela conversa dos produtores, ficamos sabendo que existe uma cláusula no contrato de Blanche Hudson: para cada filme com ela, deveria ser produzido outro com Baby Jane. Uma atitude louvável, especialmente para quem havia sido tão humilhada na parte anterior do filme. 

É interessante observar os três momentos temporais do filme, pois eles simbolizam momentos diferentes na indústria do entretenimento. Os magnatas da década de 1930 podiam se dar ao luxo de ter essa cláusula no contrato de Blanche, simplesmente para segurá-la no estúdio, já que era uma estrela de sucesso. Inclusive, durante a cena, eles até comentam em se desfazer de Baby Jane, "Nós pagamos advogados para isso"

As diferenças entre as personalidades das irmãs ficam mais evidentes na década de 1930. Os produtores comentam sobre o alcoolismo de Jane, um problema que desencadeará o primeiro plot twist do filme. Ao contrário da irmã, sempre tão gentil e contida, Jane era um vulcão. Ela simplesmente não aceitava as regras. 

É impossível não louvar Aldrich pela escolha de suas protagonistas, porque Bette Davis e Joan Crawford representavam essa mesma diferença na vida real. Joan sempre jogou de acordo com as regras de Hollywood, já Bette desafiou o sistema de estúdio ao desejar papéis diferentes. Blanche Hudson é, de muitas formas, a própria Joan Crawford: o sorriso generoso e a gentileza que mobilizam fãs-clube até hoje. No entanto, Bette Davis é conhecida por sua personalidade assertiva e seu enfrentamento aos contratos abusivos da indústria. Robert Aldrich também explorou isso como ninguém.

No final dos anos 1930, acontece o acidente que estabelece a passagem para os tempos atuais, em 1962. Jane joga o carro em cima de Blanche, que quebra a coluna e fica paraplégica. A abertura do filme é um espetáculo à parte: a boneca quebrada em frente ao portão, simbolizando Blanche Hudson e a própria relação entre as irmãs. É simples, mas causa um impacto muito grande.

O filme de fato começa quando as protagonistas, já adultas e envelhecidas, entram em cena. É um espetáculo de atuação assistir Bette Davis e Joan Crawford atuando. A atuação exagerada e histriônica delas empresta um tom cômico ao horror da trama, e em muitos momentos nos pegamos rindo de nervoso. Quando Jane imita a voz da irmã, seu jeito contido, é um desses momentos. Nesse sentido, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é considerado um clássico camp. Susan Sontag define o que é camp no texto Notas Sobre o Camp, de 1966:

"A essência do camp é seu amor pelo inatural: artifício e exagero."

O camp de Baby Jane funde-se com um retrato sobre a feminilidade monstruosa. A aparência de Jane, a pinta malfeita no rosto, suas roupas ultrapassadas debocham daquilo que é considerado asseado e bonito, ou seja, feminino. Jane é monstruosa porque desvia do feminino como o concebemos. O que entendemos como belo? Certamente, Blanche Hudson. Ao contrário de Jane, Blanche está arrumada. Ela até usa cílios postiços em cena! 

Nesse sentido, o background das protagonistas também ajuda na questão da feminilidade monstruosa. Durante muitos anos, Bette Davis foi considerada feia pelo cinema. Jack Warner, presidente da Warner Brothers, estúdio no qual trabalhou boa parte da carreira, não sabia o que fazer com ela, em quais filmes colocá-la, justamente por conta de sua "feiura". Já Joan Crawford foi sexualizada desde seus primeiros filmes mudos. Inconscientemente, os espectadores fizeram essa associação durante o filme.

Também existe uma forte repulsa a qualquer tipo de desejo sexual em Baby Jane. Blanche e Jane são bruxas (as hags do termo hagsexploitation) e não podem inspirar nada além de nojo. O envelhecimento feminino é repulsivo. Mesmo Blanche, a representação do belo, não escapa de seu destino: na metade do filme, ela começa a aparecer decrépita. Termina como uma versão acabada de si. 

A repulsa pelo envelhecimento também pode ser sentida pela forma como Jane cultua o passado, ou seja, seus tempos de criança. Uma das cenas mais fortes do filme é quando ela canta I've Written a Letter to Daddy diante do espelho. Ela percebe suas rugas, seu corpo envelhecido quando termina a canção, e se confronta com a própria imagem. Como alguém que foi descartada pela indústria, Jane busca o conforto em uma época em que todos a respeitavam.

O horror do filme decorre da forma como o envelhecimento é mostrado. Por que é tão difícil para nós, mulheres, envelhecermos? Por que somos descartadas como um sapato velho? Na indústria do entretenimento é ainda pior. Após uma "certa idade", mulheres são descartadas, ou ainda relegadas ao papel de mãe da protagonista. Trancadas em um casarão, Blanche e Jane revivem, cada uma do seu jeito, os tempos de glamour. Blanche reassiste aos próprios filmes na televisão, por exemplo. Inclusive, essa nostalgia também é cultivada pela vizinha das irmãs, a sra. Bates (Anna Lee), que sonha em conhecer Blanche.

O título do filme nos convida a uma reflexão mais profunda: como alguém com a personalidade de Jane pode emergir? Quem a tornou o que ela mostra? Jane é monstruosa mesmo? Ou seria Blanche? Mais para o final da história, percebemos que o grande vilão do filme é a forma como a sociedade trata as mulheres. Na indústria de Hollywood, mulheres eram inimigas, porque ser rainha de um estúdio não era um posto fácil de se manter. Mas a que custo se, logo após os quarenta anos, você era descartada? Joan Crawford e Bette Davis viveram isso. Amigas ou rivais, tiveram o mesmo destino: foram descartadas pelos estúdios que amavam e a quem eram tão dedicadas.

O Que Terá Acontecido a Baby Jane? nos mostra que, mesmo em 2020, não estamos muito longe dos mesmos dilemas com os quais as protagonistas se depararam. Ontem mesmo, eu me olhei no espelho e fiquei apavorada com as marcas de expressão que carrego embaixo das pálpebras. Por que não pode ser apenas uma marca de alguém que já viveu vinte e nove anos? Por que nosso rosto, nosso corpo, não pode ser respeitado por simplesmente envelhecer? Por que aos homens não é negado esse direito?




Imagem de destaque: Tati Ferrari 

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