Na obra, o grupo religioso conservador Filhos de Jacó surge durante a democracia estadunidense, usufruindo da liberdade de expressão para, a partir da fé cristã, ampliar e difundir suas ideologias. Em um país sofrendo com os resultados das destruições cometidas pelos seres humanos ao longo das eras, entre elas, a diminuição das taxas de fertilidade, causada principalmente pela poluição ambiental no contexto imaginado por Margaret, o discurso propagado pelos extremistas religiosos se torna poderoso o suficiente para ameaçar a liberdade da população, culpando os nãos cristãos pelo acontecimento e disseminando a ideia de que deus os está castigando e que existem, entre eles, merecedores e não merecedores de misericórdia. Os Filhos de Jacó, é importante frisar, são todos homens com famílias já estabelecidas, carreiras promissoras e grande nível de poder e influência na sociedade, possuindo perfis muito semelhantes aos já conhecidos por nós na vida real.
Se em muitas distopias o gênero caminha ao lado da ficção cientifica, Atwood deixou-o mais próximo do horror em O Conto da Aia, e isso se dá devido à completa retirada dos direitos das mulheres, mesmo daquelas que permaneceram no lado "favorecido" da república totalitária de Gilead, e aos horrores das violências sexual, psicológica e física que são cometidos contra elas em nome de ordens governamentais baseadas no extremismo religioso, tanto no livro, quanto em sua adaptação para TV, pelo serviço de streaming Hulu, The Handmaid's Tale. Mas mais assustador que isso, é quando notamos o quão presente a República de Gilead está no nosso dia-a-dia.
"Todos eles tiraram direitos das mulheres. Não importa como as ditaduras se autodenominam: todas elas o fazem. A mulher é algo a ser resolvido."
Margaret Atwood, em entrevista para a BBC News Mundo e o Jornal ABC.
As evidências do quão presente Gilead se faz no cotidiano moderno são muitas, e ocorrem em diferentes locais do globo. Em Singapura e na Índia, por exemplo, os estupros cometidos em O Conto da Aia também não seriam considerados crimes se realizados dentro do matrimônio, pois acredita-se que a mulher deve estar ao dispor do marido quando este assim desejar, desconsiderando completamente a violência do ato. Assim como ocorre na série de TV, a mutilação genital feminina ocorre em alguns países do continente Africano. E um exemplo recente, que parece não ter tido o destaque necessário tamanho seu absurdo, muito provavelmente por conta da população a que atinge, encarados, principalmente pelo país em questão, como invisíveis e indesejáveis, é o da situação dos imigrantes nos Estados Unidos da América.
A enfermeira Daw Wooten, ex-trabalhadora de um dos centros que abrigam imigrantes na Georgia, fez diversas denúncias do destrato a que são submetidos cidadãos estrangeiros não legalizados. Além do completo descuido com a contaminação da Covid-19 em um local repleto de pessoas, Daw chamou atenção para as absurdas cirurgias, sem consentimento prévio, de esterilização a que estavam sendo sujeitas mulheres dentro desses centros. Em seu relato, a enfermeira contou que conversando com as mulheres que sofreram a violência médica, havia o entendimento da retirada de seus úteros e no que isso implicaria para elas, no entanto, em uma situação já de extremas condições inumanas, a cirurgia não parecia ser perfeitamente assimilada por elas.
O papel de potência mundial norte americano poderia dar a sensação de estranheza àqueles que leem O Conto da Aia por não conseguirem visualizar um futuro em que um país poderoso torna-se refém de um golpe, mas o caso ocorrido em 2020 com os imigrantes demonstra que apesar da dita democracia, governos possuem interesses que podem muito bem tornarem-se totalitários a fim de defendê-los, e que as mulheres, como minorias, assim como em Gilead, estão sim entre os primeiros grupos a ter seus direitos mais básicos negados. As diferentes posições de poder, além de ocupadas em grande maioria por homens, retratam muito bem o que Atwood quis mostrar quando reflete a respeito de até onde vai a propriedade das mulheres sobre o próprio corpo.
Em um exemplo ainda mais próximo, temos o caso dos extremistas religiosos brasileiros que há alguns meses, invadiram um hospital onde uma criança vítima de abuso sexual seria submetida ao procedimento de aborto, protegido, no caso de estupros, por lei, a fim de impedir o processo até mesmo com ameaças aos funcionários que o realizariam, em nome de um contexto bíblico que para eles, encarado como pecado, parece os dar permissão de invalidarem o também bíblico livre arbítrio, sentindo-se donos de uma verdade que precisa ser forçada a outros independente da retirada de direitos básicos a que possa estar aliada. A constante evangelização, sobretudo nos países americanos, parece ter levado a população local a um ponto onde não temos mais como controlar e separar o que é laico do que é religioso. Parecemos estar, cada dia mais, fadados a Gilead.
Referências
- Teoria Crítica e Literatura: A Distopia Como Ferramenta de Análise Radical da Modernidade (Leomir Cardoso Hilário)
- Margaret Atwood, autora de ‘O Conto da Aia’: ‘Se os EUA tivessem uma ditadura, seria religiosa’ (BBC News Brasil)
- Enfermeira denuncia procedimentos médicos sem autorização em centro de imigrantes nos EUA (G1 - Jornal Nacional)
Eu ainda não li o livro, só assisti a série e em todos os episódios eu fico "gzuis, isso é muito real, está acontecendo atualmente e em vários locais". É assustador.
ResponderExcluirTe entendo perfeitamente :(
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