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Mulan: onde está a lenda no live action?


Em 1998, a Disney lançou uma animação que entraria para a história e os corações de milhares de crianças: Mulan. Baseada na lenda de Hua Mulan, a trama contava com uma jovem chinesa que abandonava sua casa, escondida, para lutar no lugar do pai, que já estava velho e debilitado. Para salvar a vida de seu pai e poupar sua família, Mulan disfarça-se de homem e junta-se ao exército imperial. Sua aventura, motivada pelo amor, tem sido fonte de inspiração durante séculos e segue dessa maneira, agora popularizada pela animação. Entretanto, a decisão de transformar a obra clássica em um live action, um filme comum, pode ter sido uma das piores do estúdio. 

Livros como A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Alekisiévitch, e A Face da Guerra, de Martha Gellhorn, nos fazem pensar em todas as mulheres anônimas que lutaram em conflitos armados ao longo da história. Dizer que as guerras foram feitas apenas por homens é uma mentira perpetuada ao longo dos séculos. Mulheres tiveram participação ativa nelas, embora suas memórias geralmente estejam enterradas. A lenda de Mulan, nesse sentido, parece ser uma homenagem a todas aquelas que arriscaram suas vidas em batalhas, ainda que isso não fosse permitido por lei. 

Escrito originalmente em torno do século VI, o poema A Balada de Hua Mulan possui diversas versões, mas todas elas concordam em alguns pontos principais. Mulan foi uma jovem que saiu de casa, escondida, para lutar no lugar do pai. De acordo com o decreto imperial, um homem de cada família deveria tomar sua parte na guerra, mas ela jamais permitiria que seu pai, um homem já idoso, lutasse e perdesse a vida em campo quando ela bem poderia fazê-lo. Ao contrário da animação e do live action, Mulan passou mais de uma década no exército - e sem ser descoberta. Como trata-se de uma história muito antiga, existe pelo menos uma versão na qual ela revela-se mulher a seus companheiros de luta, mas isso após uma década, quando eles já confiam nela e não a julgariam por isso. Entretanto, a animação não erra ao inserir isso na narrativa, pois respeita o ponto principal da história de Hua Mulan: ela é tão especial justamente porque é alguém normal, uma simples garota que, por amor, arriscou-se e foi para a guerra, salvando o império como consequência, mas não como objetivo principal. 

Ilustração de Hua Mulan no “Gathering Gems of Beauty”

Mulan, o live action, destrói essa narrativa. A personagem principal é transformada em alguém que se destaca desde a infância por ter muito chi. De acordo com o filme, o chi seria semelhante à Força, encontrada na saga Star Wars, uma energia que está em tudo, mas concentra-se em guerreiros e pode ser manipulada para atingir objetivos. Entretanto, se formos averiguar de acordo com a cultura chinesa, encontraremos a definição de que o chi é algo tão natural quanto tudo o mais que existe, estando presente em todas as pessoas, não apenas em homens, como o filme insiste em dizer. 

A Mulan do filme (Liu Yifei) é retratada como alguém que, desde pequena, sempre teve um chi maior do que os das outras pessoas, algo considerado impróprio para uma mulher. Há uma cena, no início do filme, em que ela, ainda criança, praticamente faz manobras Jedi no ar para pegar uma galinha - e recebe olhares de reprovação das pessoas à sua volta. Somente essa cena já seria o suficiente para tirar todo o mérito da construção de personagem original, porém o filme não se detém nisso. Em diversos momentos, Mulan é mostrada como sendo uma mulher extraordinária, com habilidades fora do comum, naturalmente apta a ser uma guerreira - e não apenas uma guerreira, mas a melhor de todos. Enquanto na animação vemos uma Mulan aprendendo, junto de seus colegas, as técnicas de luta, e ganhando destaque não por ser especial, mas por ter aprendido a usar mais do que a força bruta para conseguir as coisas - exercitando sua inteligência -, no filme, temos uma protagonista que é admirada pelos outros por ser mais valente do que eles, mais forte, mais capaz de lutar, por ter as melhores técnicas. E tudo isso de forma natural, porque ela é especial. 

Mulan, o live action, passa uma mensagem clara: mulheres só ganharão destaque se forem naturalmente especiais, se tiverem um dom, se tiverem chi, caso contrário, elas serão apenas como a mãe e a irmã de Mulan, feitas para o casamento e para as atividades do lar. Não importa o quanto se esforcem. 


Para além disso, Mulan é um filme conservador. A narrativa, que foi quase completamente modificada da lenda original,  torna a protagonista uma grande defensora do império, uma mulher que sabe seu lugar e não ousa desafiar as ordens de ninguém. O grande conflito emocional do longa é justamente Mulan não sendo capaz de atingir a potência máxima de seu chi por estar mentindo a respeito de sua identidade. Ela decide revelar-se, no pior momento possível, a seus colegas de exército e a seu comandante, ao tirar a armadura - a única coisa que a protege, ao lado da identidade masculina assumida - e mostrar-se vestida como mulher. Quando, passado o conflito, a expulsam do exército, ela parte e, num diálogo com a bruxa, Xian Lang (Gong Li), que a convida a juntar-se a ela, para que ambas possam ter seu lugar na sociedade como mulheres de poder, Mulan simplesmente nega o convite, dizendo que sabe qual é o seu lugar e está disposta a aceitá-lo - ainda que o tal lugar seja o de humilhação e desprezo. Onde está a Mulan, tanto a da lenda quanto a da animação, que enfrentava a tudo e a todos e não permitia que ninguém lhe dissesse qual é o seu lugar? Pois ela não está presente nesse filme. 

Outro ponto a ser criticado é a presença da bruxa. Em primeiro lugar, porque o folclore chinês não possui bruxas, que são um conceito tão europeu - ao menos, da forma como são apresentadas no filme. A China possui, sim, mulheres conhecidas por terem acesso a energias importantes, mas elas não são bruxas, tampouco párias. Existe um respeito por essas figuras dentro do folclore e da sociedade. Portanto, já podemos apontar um grande erro do filme aí. 

Mas, não bastando isso, é completamente vazio o plot da bruxa. Ela é uma mulher que, por ter o chi forte (algo que, novamente, não faz o menor sentido, mas sigamos), foi exilada do império. Juntando-se ao chefe do inimigo do imperador, ela tenta ajudá-lo a tomar o trono para que possa ser finalmente aceita em sociedade, tendo um lugar, uma pátria, deixando de ser uma pária. Se analisarmos isso, veremos que tal argumento também não se sustenta, já que a personagem é uma mulher tão poderosa que é capaz de transformar-se em pássaros, de mover objetos com a mente, de voar... Mas precisa ser validada por homens que a desprezam. É incoerente. 


Ela não é uma figura presente em quaisquer lendas de Hua Mulan e sua presença no filme parece ter o objetivo de irritar o público, que se depara com uma narrativa fundamentada no libfem, mas longe tanto da cultura chinesa quanto das próprias regras do mundo fictício que criou. Mulan e a bruxa são inimigas que tornam-se aliadas, mas quase não trocam palavras para tal, sendo que, aquela que lutou tanto pela liberdade, entregou-se em sacrifício para que a outra, que representa o conformismo da mulher dentro do status quo de uma sociedade patriarcal, possa ter uma chance de salvar o sistema que a exilou. Não há coesão alguma nessa narrativa. 

O live action de Mulan, da forma como foi feito, não possui nenhum compromisso com a lenda ou com a animação, mostrando apenas traços dos personagens que conhecemos. Todavia, isso não seria um problema caso ele não tivesse sido vendido como uma adaptação fiel à A Balada de Hua Mulan. Para que o fosse, teria de, no mínimo, respeitar a cultura chinesa. Encher um filme de atrizes e atores chineses, mas ter na direção uma mulher branca e quatro roteiristas brancos, que incluíram diversos elementos europeus numa narrativa clássica da China medieval, é desrespeitoso. 

Mulan é uma personagem memorável tanto para nós, ocidentais, que crescemos com a animação e com a ideia de que uma jovem adolescente pode fazer a diferença, ainda que seja completamente comum, quanto - e muito mais - para aqueles que compartilham de sua cultura. Ela certamente permanecerá como um símbolo de perseverança e rebeldia - mas esperamos que o filme caia no esquecimento, que é o lugar a que pertence. 



Referências 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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