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Gilvan Samico e o Movimento Armorial


O Nordeste brasileiro é um universo por si só. A despeito de toda a carga pesada de xenofobia lançada a essa parte de nosso país, seja ela agressiva ou camuflada de admiração, é uma região muito rica e diversa em todos os aspectos, principalmente artísticos e históricos.

Não há quem não conheça Ariano Suassuna, certo? Quando falamos esse nome, já pensamos em João Grilo e Chicó, de O Auto da Compadecida. Essa história é muito importante para nosso cinema e literatura, é popular e querida por todos ou quase todos nós. Mas ela é apenas a ponta de um iceberg de fantasia, mitologia, comédia e tragédia trazidos por Suassuna e outros artistas a partir da década de 1960. Um Auto é uma composição teatral de um subgênero da literatura dramática nascido na Península Ibérica, tendo como um dos mais famosos expoentes Gil Vicente, que foi quem escreveu o Auto da barca do inferno, ainda numa Europa medieval (1517).

Dizemos que, historicamente, o Brasil nunca viveu esse período. Claro que, cronologicamente, sim, mas as características de uma Idade Média não foram praticadas aqui, por ser quase que em toda sua inteireza um período pré-colonial, com características próprias e distantes de todas as realidades europeias. Mas há um porém. E esse porém foi estudado, coletado e exposto pelo que chamamos, desde 18 de outubro de 1970, de Movimento Armorial.

Pela alma brasileira a se brilhar
o Brasil verdadeiro, mas leal
uma arte de atributo universal
o tesouro cultural de Ariano
de um Brasil perene e soberano
um brasil Nordestino, Armorial!

Gilvan Samico - Alexandrino e o pássaro de fogo, 1962


Ariano Suassuna não foi somente escritor, mas professor, dramaturgo, artista... Esteve sempre ligado com o teatro, e participou de movimentos estudantis e político-culturais relacionados à cultura popular brasileira. Até hoje, há muitos estudos e discussões sobre o tema. No Sudeste, tivemos a Semana da Arte Moderna de 1922, por exemplo. No caso do Nordeste, de maneira inspirada, mas muito diversa, tivemos o Movimento Armorial, que buscava "expressar o que a cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu" em todas as formas artísticas possíveis, de maneira bastante livre, pretendendo estabelecer uma arte erudita de raízes populares. 

A diferença entre o Movimento Armorial e o Movimento Modernista é que o Movimento Armorial quer mais clássico. Ele está ligado a formas clássicas da revelação da beleza. 
(Raimundo Carrero)

A cultura brasileira é muito rica, muito complexa, e tem como troncos iniciais não exclusivos a arte popular ibérica, a arte indígena e a arte negra, e a arte mestiça que foi surgindo a partir do século 16 com o encontro dessas três culturas. Eu acho que todos nós, armoriais, temos ligações com o espírito e as formas dessa arte popular brasileira. E eu tomo sempre como bandeira o folheto de cordel. 
(Ariano Suassuna)
Ariano Suassuna, 1969

O movimento não foi somente literário. Ele se espalhou por teatro, pinturas, música, danças, cordéis e xilogravura, e pretendia também se estender para a arquitetura. Por achar que o sertão preserva melhor as tradições de uma cultura especificamente brasileira - já que as capitais estão empenhadas no "progresso", que está voltado em seguir lógicas estrangeiras, sejam elas europeias ou americanas -, os artistas do Movimento Armorial eram próximos e atentos aos grupos de Maracatu, à literatura de cordel, ou mesmo práticas cotidianas e arquitetura das casas das pequenas cidades interioranas.

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos 'folhetos' do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus 'cantares', e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.

(Ariano Suassuna. Jornal da Semana: Recife, 20 maio 1975) 

Gilvan Samico foi um importante artista desse movimento. Amigo de Suassuna, transformou suas gravuras a partir de um conselho do escritor paraibano: passou a estudar a literatura de cordel, mais do que as capas, também feitas em xilogravura, e a partir de sua interpretação única das histórias rimadas e ritmadas, cunhou mundos em madeira.

A xilogravura (técnica de entalhe em madeira e impressão em papel) existe há quase dois milênios, e foi criada na China. Mas o grande boom desse ofício foi na Europa medieval, onde artesãos trabalhavam em grupo gravando na madeira cenas religiosas, comunicados de imprensa, entre outras práticas importantes para o período. Era uma novidade tremenda, já que o natural era o trabalho dos monges copistas em scriptoriums, onde replicavam a Bíblia com iluminuras - manualmente. A impressão feita com placas de madeira acelerou muito o trabalho de produção de livros e cartazes, atingindo mais e mais pessoas, sendo um marco importante para a história da escrita, dos livros e da alfabetização. A xilogravura chegou ao Brasil junto com a colonização, tendo um papel fundamental nos jornais e rótulos de produtos. Como arte, a técnica foi muito importante para a ilustração de capas de cordéis, livretos que têm esse nome por literalmente ficarem pendurados em cordas no momento da venda. No Sudeste, a xilogravura tem uma característica mais de galeria de arte, não tão visada como telas pintadas a óleo, entretanto.

Samico estudou gravura em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas voltou a Pernambuco, sua terra natal, vivendo em Olinda até sua morte em 2013. Nasceu em 1928, em Recife, e passou a infância junto a animais e à natureza. Tem uma história muito bonita do primeiro contato com o desenho, quando percebeu, junto a um artista amigo de seu pai, que não era apenas possível copiar rostos impressos em revistas, mas podia ele mesmo desenhar o mundo que via a seu redor. Isso foi importante para caracterizar sua obra futura, repleta de elementos da natureza relacionados a figuras e personagens míticos e religiosos.

Gilvan Samico - O Senhor do dia, 1986
Pavões, serpentes, peixes, estrelas, sereias... Uma infinidade de seres cantados e contados pelo cancioneiro popular, certamente uma herança ibérica, indígena e africana, de um modo geral. E, por ibérico, não falo aqui apenas dos portugueses colonizadores, mas toda a herança árabe presente em Portugal e Espanha que também cruzou o Atlântico para findar em nossas terras, além de ciganos e cristãos novos fugidos da Inquisição. São riquíssimas e profundas culturas vivendo juntas num Brasil muito distante desse que conhecemos, um Brasil pré-Brasil, um Brasil com características medievais próprias. 

A gravura, eu vou desde a própria árvore, até [de] símbolos como fertilização, como o ovo [...], três figuras, por exemplo, tomam leite, que a cabra fornece, como símbolo de vida, de alimento. E a coisa se desdobra... Mas tem algumas coisas que faz parte de meu mistério.
(Gilvan Samico)

Gilvan Samico não era ligado à religião, mas estudava seus arquétipos. Tudo que leu, viu, ouviu, está gravado em suas obras, mundialmente famosas. Ele foi Armorial antes mesmo do movimento, e por isso mesmo é parte tão importante do mesmo. Uma obra sempre lembrada em catálogos de arte é A Tentação de Santo Antonio, de 1962 (pré-Armorial, portanto, ainda que dentro da proposta do movimento). De temática cristã, associo ao tríptico As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, produzido entre 1495-1500, e que retrata o mesmo eremita sendo tentado por demônios no deserto. Boa parte de suas obras ainda retrata a mitologia grega (a litogravura Lêda, de 1977), a ancestralidade latino-americana e indígena com base na leitura de Eduardo Galeano (Criação - homem e mulher, 1993) e lendas astecas (Criação - O Sol, A Lua, As Estrelas, 2011) entre outros temas históricos e literários.

É dele também Alexandrino e o pássaro de fogo, capa do primeiro disco do Quinteto Armorial, que traz uma música "erudita" baseada no cancioneiro popular sertanejo e em seus instrumentos, como rabeca e pífano, heranças árabe e medieval. "Toada e desafio", por exemplo, fez parte da trilha sonora do inesquecível (e injustiçado pelo Oscar) Central do Brasil.

Gilvan Samico entintando gravura em seu atelier em Olinda - PE. Foto: Agência O Globo

Por características próprias de sua personalidade, que Gilvan explicava como vagareza, passou a fabricar uma gravura por ano, indo contra o ritmo mercadológico da arte, que obriga muitos artistas a produzir em quantidade, nem sempre em qualidade. Antes da impressão final, Samico fazia muitas matrizes de estudo, desenhos e impressões de prova, para testar seu trabalho, muito minucioso. A impressão de xilogravura é um processo muito delicado, e quando a obra é colorida o trabalho é muito maior, já que para cada cor é necessária uma impressão diferente no mesmo papel. 

Antes de ser gravador, sou artesão e marceneiro. Alguns móveis da minha casa foram feitos por mim. Mas não é de artista, com letra maiúscula, aquele peso, eu vou improvisando. Para mim, o que é importante é que um bom trabalho feito por um marceneiro é tão bom quanto uma gravura.
(Gilvan Samico)

A arte de Samico é impressionante não somente pelo belo trabalho construído e demonstrado em cada gravura. O que impressiona mais é a dedicação, o tempo, a beleza e as formas que nos transportam para um outro tempo, mais lento, manual, onde tudo tem seu lugar e sua hora. O próprio processo artístico é uma arte: não apenas a temática, a proposta, os mitos apresentados, mas a própria forma de trabalhar e guiar a vida, negando toda essa pressa, pressão, competição e opressão capitalistas e abrindo caminho para um mundo aberto, acessível, possível dentro do impossível, que beira o utópico.

O que me interessa nessas lendas são os absurdos. Mais do que a própria lenda. Há também a questão de que as lendas são universais, elas podem pertencer a qualquer povo, em qualquer época e lugar.
(Gilvan Samico)
Helen Araújo
Filha de paraibanos nascida en São Paulo em 1992. Historiadora e artesã com espírito setentista, escreve sobre tudo, especialmente música, símbolos, mitos e migrações. Quando não escreve no Querido Clássico e Um Velho Mundo, fabrica onde escrever: cadernos no Estúdio São Jerônimo.

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