Figura feminina importante na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos do século XX e também uma personalidade que marcou a história das mulheres na cultura pop: a atriz afro-americana Nichelle Nichols protagonizou o primeiro beijo interracial na TV norte-americana, entre ela, tenente Uhura, e o capitão James Kirk. Foi apenas um dos melhores episódios de Star Trek, a versão original do seriado, produzido entre 1966 e 1969. O papel de Nichols na série representou um grande momento — em sua carreira, para a representatividade negra nos Estados Unidos e quanto à visibilidade feminina nas telas. O próprio nome diz: escolhido por ela, o nome “Uhura” quer dizer “liberdade”.
Desde a adolescência, Nichols sonhou em ir para a Broadway. Nascida em Illinois, em 1932, estudou dança na Academia de Ballet de Chicago e iniciou sua carreira como cantora de jazz e dançarina. Nichelle chegou a cantar nas orquestras de Lionel Hampton e de Duke Ellington, que descobriu seu talento e foi quem a fez deslanchar. Ainda antes da carreira na televisão, ela trabalhou como dançarina em diversos musicais e peças.
Até hoje, a presença de minorias como negros, LGTBs e mulheres na televisão norte-americana é limitada. Quando aparecem, geralmente recebem papéis de menor destaque e têm menos falas. Uma pesquisa feita pela Universidade do Sul da Califórnia, em 2016, mostrou que o problema é nativo de Hollywood, não se restringindo somente aos Oscars. O estudo foi produzido após a polêmica em torno da ausência de atores negros nos indicados à premiação naquele ano, analisando 109 filmes e 305 programas de televisão e séries digitais lançados em 2014. Segundo o levantamento, somente 33,5% dos personagens com falas nos programas analisados são mulheres, embora mais de metade da população norte-americana seja feminina. Além disso, apenas 28% dos personagens que aparecem nas obras são negros — 9% menos do que o percentual de negros na população dos EUA.
Esse quadro é constatado nos dias de hoje. Nichelle trabalhou na televisão norte-americana em meados do século passado, quando a situação era muito mais difícil para as minorias. Um dos primeiros trabalhos dela na TV foi no seriado The Lieuetenent, através do qual conheceu o diretor de Star Trek, Gene Roddenberry. Eles tiveram um breve caso, o que abriu caminho para que Nichols interpretasse Uhura. Em plena década de 1960, quando o espaço para as mulheres na televisão era muito mais limitado, uma negra faz um papel de autoridade, numa posição de comando — era tenente Nyota Uhura. Quando viu a atriz no seriado, a genial Whoopi Goldberg afirmou que correu para contar à sua mãe que tinha visto uma mulher negra na TV que não estava interpretando uma doméstica ou empregada.
Em meio ao estopim da luta contra a segregação racial nos EUA, o papel de Nichols representou grande marco para as mulheres negras na TV nos Estados Unidos. No entanto, após a primeira temporada de Jornada nas Estrelas, ofereceram a Nichols um papel na Broadway e ela cogitou deixar sua carreira de atriz pra voltar a cantar. Foi quando Martin Luther King, grande ativista pelos direitos civis, decidiu intervir e conversar com a artista. Ele revelou a ela que era um grande fã — Trekkie Luther King —, e a lembrou de como a sua interpretação no seriado a tornou grande inspiração para a juventude negra. Após a declaração, ela resolveu permanecer no seriado, e seguiu até o fim da Star Trek clássica.
Com a conquista da cidadania dos negros em 1965, quando conseguiram o direito ao voto, os conflitos se agravaram. Em 1968, Luther King foi assassinado. A série teve seu fim pouco depois, em 1969. Mas Star Trek já havia tornado Nichols um símbolo, não somente para artistas, como também para os militantes da luta contra o racismo e o sexismo. A história da atriz pode ser considerada um exemplo de quebra de paradigmas na cultura pop, que é um território ocupado majoritariamente por homens brancos, até os dias de hoje.
Além de contribuir para a visibilidade de negros e mulheres, influenciou também na presença das mulheres na ciência, uma área que sempre foi mais masculina e hostil a elas. Nas décadas de 1970 e 1980, Nichols foi convidada para participar de um programa da NASA. O projeto visava incentivar minorias, como jovens negros, para ingressarem no programa de ônibus espaciais. Ela recrutou muitas mulheres, dentre elas Mae Jemison, primeira mulher afro-americana a ir ao espaço, e Sally K. Ride — a primeira astronauta mulher. Em 2015, Nichols teve um pequeno derrame. Ainda assim, no mesmo ano, contribuiu com a NASA novamente: liderou um voo promocional no Observatório Estratosférico para Astronomia Infravermelha.
Aos 87 anos, Nichelle Nichols tem dois livros publicados, um de ficção-científica e a sua autobiografia. Contudo, sua história tem pouco destaque nos meios intelectual e artístico. Infelizmente, é reconhecida e homenageada por poucos, em comparação com os atores homens que protagonizaram clássicos da cultura pop. Por essa razão, é necessário valorizar mulheres como Nichelle, que foi personagem fundamental na luta pela representatividade das minorias, expandindo a diversidade dentro do universo da cultura pop e da ciência.
Que texto maravilhoso. Hoje ela se foi, mas seu legado é eterno.
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