últimos artigos

A mulher lésbica como fantasma em A Aparição da Senhora Veal


Existem certas dúvidas que cercam o conto A Aparição da Senhora Veal, cuja autoria é atribuída a Daniel Defoe. Publicado originalmente em 1706, no formato de panfleto anônimo, alguns anos mais tarde foi introduzido a uma coletânea de contos de Defoe, na parte intitulada "Histórias verdadeiras de fantasmas"

No conto, a senhora Bargrave recebe a visita da senhora Veal, uma antiga amiga a quem ela não via há alguns anos. Nos é brevemente descrito que elas costumavam estar sempre juntas, especialmente pelo vínculo de ajuda material que a primeira provia à segunda. Mas, para além disso, o relacionamento delas parece possuir um contexto homoafetivo. Em diversas passagens do conto, podemos perceber o narrador dizendo que a senhora Bargrave tentava aproximar-se e tocar a senhora Veal, e há um subtexto de desejo pelo toque e declarações de amor de forma aberta. Claro, a questão do toque pode ter sido inserida como modo de não deixar dúvidas quanto ao caráter fantasmagórico da aparição, que nunca fora tocada pela amiga. Entretanto, há uma parte interessante em que elas quase beijam-se na boca. 

Em 1728, Elizabeth Singer Rowe publicou Friendship in Death, in Twenty Letters from the Dead to the Living. O objetivo desse livro era apresentar cartas que espíritos escreveram para entes queridos ainda vivos. Porém, um traço significativo desses remetentes é que todos eles teriam em comum um laço muito forte com o espírito, um relacionamento emocional profundo. Embora não haja uma carta da senhora Veal para a senhora Bargrave (que já havia falecido, também, à época), é possível, nisso, inferir a mentalidade que as pessoas daquele início de século XVIII tinham a respeito da conversação com espíritos. Segundo Jennifer Frangos, em seu artigo Ghosts in the machine: the Apparition of Mrs. Veal, Rowe's Friendship in Death and the early eighteenth-century invisible world (que está no livro Spirits Unseen: the representation of subtle bodies in Early Modern European culture), as pessoas, em geral, acreditavam que uma comunicação entre os vivos e os mortos poderia existir, mas somente em casos de vínculo profundo. 

A aparição diz que precisa seguir viagem, mas que gostaria de ver a amiga antes disso para que possam reatar os laços de amizade. No entanto, ela pede que a senhora Bargrave faça um pequeno favor a ela, transmitindo recados para sua família sobre objetos que gostaria que encontrassem. Embora seja possível que a senhora Veal verdadeiramente quisesse somente reparar laços de amizade, não parece estranho que ela tenha, após a morte, manifestado um desejo tão forte de ver a amiga que nem ao menos utilizou seu tempo como fantasma para visitar a família antes? Isso indica que o sentimento para com a senhora Bargrave lhe era mais intenso do que aquele por sua própria família. 

Terry Castle, em seu livro The Apparitional Lesbian, diz que o lesbianismo sempre foi um fantasma: 

"Por que é tão difícil enxergar a lésbica - ainda que ela esteja lá, bem visível, na nossa frente? Em parte, porque ela tem sido 'espectral' - ou invisibilizada - pela própria cultura. Dizer que a lésbica representa uma ameaça ao protocolo patriarcal seria o mínimo: a civilização ocidental tem sido assombrada há séculos por um medo de 'mulheres sem homens' - de mulheres indiferentes ou resistentes ao desejo masculino."

Segundo ela, a maneira que a cultura patriarcal encontrou para lidar com a figura da lésbica foi transformá-la em um fantasma. A partir disso, ela analisa diversas obras, como A Aparição da Senhora Veal

Castle não escreveu sobre Férula, personagem de A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, mas ela também poderia encaixar-se em sua hipótese da transformação da lésbica em fantasma. Em um momento particularmente sensível da história, o espírito de Férula aparece para despedir-se de Clara, de quem havia sido afastada porque seu irmão, Esteban Trueba, fragou-lhe fazendo carinhos íntimos na esposa. Férula, em sua morte, libertou-se do jugo social, representado por seu irmão, e foi ter com Clara, a quem amava. Não é diferente do que ocorre em A Aparição da Senhora Veal. "Apenas algo palpável - em um nível mais profundo - possui a capacidade de nos 'assombrar' tão completamente", afirma Castle. 

Partindo desse pensamento, quando mulheres lésbicas são ficcionalizadas como aparições, como criaturas impalpáveis, obscuras, sem matéria física, não se há o que temer, pois o amor e o desejo tornam-se puros, de acordo com critérios homofóbicos da religião, eliminando o elemento carnal que causa desconforto na sociedade. Essa é uma saída comumente usada tanto na literatura quanto em outros produtos culturais ao longo dos séculos. Fazer da lésbica uma figura quase invisível, apenas uma sombra fantasmagórica, é negar-lhe o direito de existir. No entanto, colocar elementos homoafetivos no relacionamento entre a senhora Veal e a senhora Bargrave também é uma forma de dizer "existe um amor entre elas, quer vocês aceitem isso ou não". Porém, atenuar esse amor, delegando-o apenas ao plano espiritual, é tirar o que era considerado pecado, o contato carnal, que é proibido durante a narrativa do conto. 

The Kiss, de Clarence White, 1904

Para além disso, o narrador atesta o caráter verdadeiro da senhora Bargrave, dizendo-se amigo dela há mais de uma década e explicando que o relato da aparição da senhora Veal causou à reputação da amiga um dano. Se tal dano é o de considerá-la mentirosa ou o de suspeitar das intenções homoafetivas do espírito da amiga, é algo que não nos é dito claramente. Entretanto, muitos estudiosos do período afirmam que a crença em fantasmas que visitam amigos e familiares era comum, embora reservada mais àqueles que tivessem assuntos pendentes. Portanto, é difícil crer que a violência perpetrada contra a senhora Bargrave, por haver contado que sua amiga íntima lhe visitara, foi infligida apenas pela fantasmagoria. O narrador nos leva a crer que há algo mais por trás disso. 

"E posso confirmar a reputação de honestidade de que gozou desde sua mocidade até o momento em que a conheci, o que é necessário; porque, em função do relato que fez da aparição da senhora Veal, ela é objeto de calúnia por parte de algumas pessoas que são amigas do irmão da mencionada senhora Veal, às quais o relato da aparição parece uma ofensa, e fazem o que podem para acabar com a reputação da senhora Bargrave e para ridicularizar a história que conta. Mas, dadas as circunstâncias do que se passou e a boa disposição da senhora Bargrave, não obstante os maus-tratos inéditos a que foi sujeita por um marido muito cruel, não há em sua fisionomia o menor sinal de desalento. Nem eu a ouvi pronunciar uma expressão de desespero ou de queixa, nem mesmo quando submetida às barbaridades do marido, de que eu fui testemunha, assim como várias outras pessoas cuja reputação não se pode pôr em dúvida." 
A personalidade violenta do marido da senhora Bargrave é mencionada também ao final do conto, quando ela conta que, em sua conversa com a amiga, ela lhe ofereceu chá, mas a outra já sabia, de antemão, que provavelmente o marido da primeira havia quebrado as xícaras da casa. Tal fala parece ter sido colocada para corroborar com o fato de que a aparição, embora pudesse ser vista, não bebera ou comera nada, o que lhe confere caráter incorpóreo. Entretanto, o autor poderia tê-lo dito de outra maneira, mas a violência do marido (e de todos os homens do conto, por sinal) indica um motivo tanto para a aproximação íntima de ambas, que buscam refúgio uma na outra, quanto para o distanciamento que ocorreu durante dois anos, que não são bem explicados, exceto por motivos de distância. Mas distâncias só seriam um problema caso os homens de suas vidas não as deixassem viajar para encontrarem-se - e por que eles as impediriam? 

"A senhora Bargrave perguntou-lhe se queria tomar chá. Respondeu a senhora Veal:
- Não me seria desagradável. Mas garanto que aquele louco (com o que se referia ao senhor Bargrave) quebrou todos os seus utensílios de chá.
- Não obstante - disse a senhora Bargrave -, tirarei alguma coisa em que possa tomar chá."
O narrador continua sua história mostrando-nos um breve retrato da vida da senhora Veal, uma mulher que, segundo ele, tinha seus trinta anos, mas nunca havia casado, o que era estranho para a época, já que a idade média em que mulheres casavam era aos 20 anos. Afora esse fato, que o autor faz questão de ressaltar em seu relato, ele segue dizendo que, embora fosse respeitada por sua religiosidade, após sua morte e, consequentemente, após o encontro com a senhora Bargrave, o irmão da senhora Veal faz de tudo para manchar a reputação da irmã. Qual seria seu motivo para tal? Histórias de fantasmas sempre existiram e, certamente, uma visita pós-vida a uma amiga querida, para reatar laços, não seria motivo para escândalo, se fosse apenas isso. Mas não é o que somos levados a crer. 

"É preciso que vocês saibam que a senhora Veal era uma moça solteira e nobre de cerca de trinta anos de idade e, por alguns anos, vinha sofrendo de ataques que nela se manifestavam porque ela interrompia o que estava dizendo com alguma extravagância abrupta. Ela era sustentada pelo único irmão que tinha, e tomava conta da casa deste último em Dover. Era uma mulher muito religiosa, e o irmão um homem sóbrio, ao que tudo demonstrava, mas agora ele faz o que pode para reduzir a pedaços esta história."

Agora, o autor adentra o terreno das bases do afeto entre ambas e, novamente, somos brevemente apresentados a cenários de violência: os pais cruéis de ambas lhes faziam mal e uma apoiou-se na outra. Tanto em conversas quanto em ajuda material, a senhora Bargrave e a senhora Veal eram o auxílio a que cada uma recorria. 

"A senhora Veal era intimamente ligada à senhora Bargrave desde a infância. Naquela época, as condições em que vivia a senhora Veal eram ruins. O pai não tomava cuidado das crianças como devia, o que as expunha a privações, e também a senhora Bargrave vivia naqueles tempos com um pai cruel, embora não lhe faltassem nem comida nem roupa, coisas que faltavam à senhora Veal. Estava, portanto, dentro das possibilidades da senhora Bargrave ajudar a senhora Veal de várias maneiras, o que esta última muito apreciava. Muitas vezes, ela dizia:
- Senhora Bargrave, a senhora não é apenas a melhor, mas é a única amiga que tenho no mundo e nenhuma circunstância na vida dissolverá jamais tal amizade.
Elas lamentavam juntas a fortuna adversa e liam o livro de Drelincourt sobre a morte e outros livros bons. E assim, como duas amigas cristãs, elas se confortavam reciprocamente."
Após essa pequena introdução à natureza do relacionamento de ambas, finalmente chegamos à visita insólita. Num dia, quando a senhora Bargrave estava passando por adversidades - que não são explicadas na história -, a senhora Veal aparece, dois anos e meio após a última vez em que se viram. O encontro é vivo e repleto de desejo do toque, embora este nunca se concretize. 

"- Madame - disse a senhora Bargrave -, estou surpreendida em vê-la. Por tanto tempo estivemos separadas!
Mas disse-lhe que ficava feliz em voltar a vê-la, e fez menção de dela se aproximar, com o que concordou a senhora Veal, até que os lábios das duas quase se tocaram."
Em seguida, a senhora Veal expressa seu grande desejo de visitar a amiga, dizendo que enganou o irmão para tal. Embora a senhora Bargrave espante-se, já que a sociedade inglesa de 1705 não tinha por costume que mulheres viajassem sozinhas, ela aceita aquele ato como algo esplêndido, não reprovando a amiga por ter supostamente enganado o irmão. Aqui, parece que a senhora Bargrave deixa subtendido que o relacionamento de ambas foi agravado pela presença constante do irmão da senhora Veal. Mas por que uma amizade seria barrada por um irmão? Tal questão permanece no ar durante a leitura. 

"Disse à senhora Bargrave que partiria sozinha numa viagem e tivera um grande desejo de visitá-la antes de seguir.
- Mas - ponderou a senhora Bargrave - como é que a senhora parte em viagem sozinha? Isso espanta-me, porque sei que seu irmão lhe é tão aficionado.
- Ora - disse a senhora Veal -, enganei meu irmão e vim sozinha, tal era o meu desejo de ver a senhora, antes de partir em viagem.
Elas começam a conversar sobre literatura, já que mantiveram, durante muitos anos, uma espécie de clube do livro, onde liam obras sobre a morte. Em dado momento, a senhora Veal pergunta à senhora Bargrave sobre um livro específico, o que suscita uma conversa sobre versos que a amiga mesmo havia publicado, recentemente, e uma declaração de amor comovente e espontânea, que não deixa dúvidas acerca da natureza do sentimento entre elas. 

"- O senhor Norris - disse a senhora Veal - escreveu um bonito livro de versos intitulado amizade na perfeição, livro que eu admiro enormemente. A senhora conhece o livro?
- Não - disse a senhora Bargrave -, mas publiquei os meus próprios versos.
- A senhora publicou? - perguntou a senhora Veal. - Então, vá buscá-los.
A senhora Bargrave buscou os versos no andar de cima e os ofereceu à senhora Veal, para que os lesse, mas esta os recusou e disse que olhar para baixo lhe daria dor de cabeça; pediu então à senhora Bargrave que lesse os versos, coisa que esta última fez.
Quando admiravam "Amizade", a senhora Veal disse:
- Querida senhora Bargrave, eu a amarei para sempre."
Se o relato é jornalístico ou ficcional, é algo que dificilmente saberemos. O certo é que ele foi atribuído a Daniel Defoe muitos anos após a primeira publicação. Seja como for, a forma com que o relato é contado nos dá pistas do que aquele que o escreveu queria dizer a respeito do incidente. Como é dito mais para o final, o favor que a senhora Veal solicitou à amiga não faz muito sentido, já que os bens que gostaria que passassem para a família eram somente quinquilharias. E o irmão da senhora Veal afirmou que estivera com ela em seu leito de morte e perguntara-lhe a respeito de questões referentes à herança, e que a irmã nada mencionara sobre aquilo. Tudo parecia ter sido um pretexto para estar, uma última vez, com a amiga e mulher a quem tanto amava e para declarar-lhe seu amor eterno. 

"E o fato de que a senhora Veal passava com freqüência a mão pelos olhos e perguntava à senhora Bargrave se os ataques que ela sofria não a haviam afetado, parece-me tudo feito de propósito para relembrar os ataques à senhora Bargrave, para prepará-la a não julgar estranho que ela própria não escrevesse ao irmão para que ele distribuísse os anéis e o ouro, coisa que parecia tanto com o pedido de uma pessoa prestes a falecer. E esse foi o efeito produzido na senhora Bargrave, a quem tudo pareceu resultado dos ataques, e foi um dos muitos exemplos de seu enorme amor pela senhora Bargrave, e cuidado com ela, para que não temesse, o que transparece em toda a maneira de conduzir-se a aparição, particularmente em que veio ter com a senhora Bargrave durante o dia, quando esta estava sozinha, e evitou a saudação; e também na maneira de partir, para impedir uma segunda tentativa de saudação, de proximidade, de beijos.
Ao lado de tantas outras personagens cuja identidade não-hétero foi apagada, é possível afirmar que a senhora Veal figura entre as lésbicas da literatura, transformada em fantasma para tornar-se menos perigosa. Só assim é tolerado, dentro da narrativa, que ela confesse seu amor abertamente, quando não mais existe, perpetrando a ideia homofóbica de que pessoas não-héteros não possuem direitos e deveriam esconder-se. 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)