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Diálogos entre Pearl e Dorothy

O mágico de Oz é um grande clássico do cinema que serviu de inspiração e referência para diversas gerações posteriores. O filme tem músicas marcantes, personagens inesquecíveis e uma estética lindíssima. Porém nem tudo são flores na estrada dos tijolos amarelos. Esse pequeno alerta, se já não havia sido notado, acabou em evidência com a chegada do filme Pearl

Pearl é a prequência do filme X - A marca da morte, e conta a história da velhinha assassina ainda durante a juventude. No entanto, algumas similaridades entre Dorothy e Pearl podem ser notadas, dando ao espectador a oportunidade de repensar o clássico.

Dorothy é uma menina doce que sente um enorme desejo de conhecer o mundo e todas as suas possibilidades. A canção Over the rainbow, cantada por ela na adaptação cinematográfica, evidencia pontos importante sobre a personagem que também conversam com o filme da carismática assassina. A música toda denota um desejo de partir e uma atitude sonhadora, beirando ao delírio de acreditar que coisas impossíveis podem acontecer através da força do desejar. 

“And the dreams that you dare to dream
Really do come true
Someday, I'll wish upon a star”

(“E os sonhos que você se atreve a sonhar
Realmente se tornam realidade
Um dia, vou fazer um pedido a uma estrela”)

O trecho acima lembra uma cena que acontece em Pearl, na qual há um destaque para o que poderia ser uma estrela dos desejos. Porém o diálogo mais forte entre essa música e o filme de terror está em outro trecho da canção: 

“Somewhere over the rainbow, blue birds fly
Birds fly over the rainbow
Why then, oh, why can't I?
If happy little blue birds fly beyond the rainbow
Why, oh, why can't I?”

(“Em algum lugar além do arco-íris, pássaros azuis voam
Pássaros voam além do arco-íris
Por que, então, ah, eu não posso voar também?
Se passarinhos azuis alegres voam além do arco-íris
Por que, ah, eu não posso voar também?”)

Intencionalmente ou não, esse trecho da música coincide em diversos pontos com a fotografia de Pearl. Assim como Maxine em X, Pearl em sua fase sonhadora e otimista está sempre com um icônico tom de azul, comum inclusive à Dorothy, apenas mudando para o vermelho ao entrar em sua trajetória sanguinolenta e desesperançosa. Além disso, em diversas cenas na casa de Pearl é possível observar pássaros, eles estão espalhados por toda a parte, em quadros, nas estampas de papel de parede e até mesmo há um pássaro vivo em uma gaiola que costuma aparecer nas cenas em que Pearl interage com seu pai. Dorothy e Pearl são pássaros engaiolado pelas cercas de suas fazendas e suas famílias, que têm em comum o sonho de liberdade. 

No entanto, enquanto Dorothy usa pura imaginação, Pearl tem a influência do cinema na criação de seus sonhos. Trata-se de sonhos modelados dentro de um imaginário já construído no qual mocinhas como Dorothy são verdadeiros modelos, dignos de identificação e até imitação. 

Mas a vida de Pearl é muito mais realista que a de Dorothy, e essa é beleza perversa do roteiro. Ele foi construído aos moldes de mocinhas clássicas, usando ícones e narrativas extremamente reconhecíveis, colocando o espectador em um lugar confortável de familiaridade para então corromper as expectativas. 

Quando Pearl faz um pedido à estrela, ela não é atendida; quando fala com uma ave é para matá-la e dar de presente ao crocodilo; quando ela encontra um “amor”, não é puro... Daí por diante o filme destrói diversas vezes as certezas absolutas com sofisticação. 

As quebras de expectativa ocorrem tanto textualmente quanto visualmente, pois assim como X simula os filmes dos anos 1970, a estética de Pearl e seu texto apontam para uma construção de filme inocente da época em que se passa.

Uma das cenas que mais marca o diálogo com O mágico de Oz é aquela na qual Pearl está com sua roupinha azul andando de bicicleta - assim como Dorothy andava -, e então encontra um espantalho no meio de um campo. O próprio ato de andar até ele gera a sensação de uma possível transição para entrada em um novo arco narrativo onde a magia é possível. Um espantalho amigável é familiar para o espectador desde Oz. A similaridade fica mais explícita, gerando um imediato paralelo. Mas Pearl brinca com isso, e o espantalho que jamais ganhou vida na verdade é usado como um objeto sexual pela protagonista.

No entanto, ver o que Pearl tem a ver com Dorothy parece um exercício relativamente mais simples que repensar o que Dorothy tem a ver com Pearl. 

Ao rever O mágico de Oz, percebe-se uma narrativa de manipulação e culpa que restringe a personagem. Dorothy é uma menina jovem que está passando por um problema e não consegue ajuda de nenhum adulto à sua volta, ela é negligenciada e, como consequência, quase perdeu seu companheiro Totó. Todos os adultos julgam ter problemas maiores que os dela e ela é continuamente silenciada. Quando Totó se liberta e volta para ela, Dorothy decide que é hora de ela sair de casa e começar a sua própria jornada. No entanto, ela esbarra em um mago charlatão que mente para ela dizendo que se ela sair de casa sua tia irá adoecer e morrer de tristeza com sua partida. O mago pode ter a boa intenção de não estimular a fuga de uma jovem claramente despreparada para a vida, mas as consequências disso ficam em Dorothy. Ela se desespera e tenta voltar para casa, sendo pega pelo furacão, que supostamente a leva para Oz. O mundo mágico que encontra é tudo aquilo que tinha imaginado, porém, em momento nenhum Dorothy parece satisfeita em sua jornada, sempre reforçando que precisa voltar para casa, visivelmente preocupada e culpada por ter saído de lá, temendo as terríveis consequências prometidas. No fim do filme, Dorothy descobre a maneira de voltar para casa, que consiste em repetir a frase “Não há lugar como nosso lar” enquanto bate seus sapatinhos vermelhos. Não sem antes receber uma leve lição da Bruxa Boa, que diz para a menina que ela sempre teve o poder de voltar para casa, mas que não adiantaria ela contar antes, pois a menina devia aprender a lição completa, que nas palavras de Dorothy seriam valorizar o lugar onde ela vivia e as pessoas que ali estavam. 

A mensagem de valorização familiar pode ter sido muito bem aceita por todos e pode até ser bonita dependendo do contexto, mas não deve passar batida. Rever a cena com um olhar mais crítico pode indicar um subtexto bem mais sombrio, dando ao mantra notas mais assustadoras. Trata-se da velha mensagem de cerceamento do feminino, da mulher do lar, destinada ao lugar de responsabilidade e cuidar a todo o custo, a permanecer vinculada aos familiares não importando o quão tóxico seja o meio. 

Dorothy não sofria abusos físicos ou psicológicos, mas era negligenciada. No entanto, em contextos em que há familiares ou parceiros abusivos, essa mensagem pode ser ainda mais perigosa. Muitas meninas se sentem prisioneiras em seu próprio lar, mas não se libertam e se tornam independentes por sentir que é sua função social permanecer em casa para cuidar dos demais, ainda que a recíproca não seja verdadeira. Sobrecarga de trabalho, diferenças de divisão das funções domésticas e de cuidado, cerceamento da liberdade, privação da expressão sexual, violência física e psicológica, são muitos os desafios comumente encontrados por mulheres em seus lares, seja com seus pais ou com seus parceiros.

O filme não dá segurança a Totó no final, nem sinal de que qualquer outro personagem além de Dorothy tenha passado por alguma transformação. Apenas Dorothy muda, se adapta e aceita seu destino na fazenda com aquelas mesmas pessoas. 

A transformação também ocorre em vermelho.

Porém Dorothy é a mocinha perfeita, ela abraça de coração seu destino monótono em preto e branco naquela fazenda. Já Pearl, sua versão distorcida, tenta um sorriso, mas é claramente falso e desesperado, fazendo da cena de crédito algo absolutamente icônico.

Pearl é um filme de terror com notas dramáticas cuja personagem de Mia Goth mostra muitas camadas de profundidade e uma infinidade de possíveis reflexões. Ty West pode ser um diretor experiente, mas é a contribuição de Mia que torna Pearl tão desconfortavelmente real. 

Através do filme pode-se repensar as construções sociais do feminino no cinema, as narrativas reservadas a elas, as mensagens que repetidas vezes chegam em gerações e gerações de mulheres que se moldam, se conectam e são influenciadas por essas construções. O terror do filme está nas consequências de uma desconexão entre o ideal formado na cabeça da menina e sua realidade. Pearl tem uma mãe opressora e fria que lhe nega afeto, um pai que realmente depende dela, muitas obrigações, poucos recursos financeiros, pouco lazer, seu suposto príncipe encantado não quis tirá-la de casa e ainda a abandonou para servir na guerra, ela tem um amante que também não a leva para o amor romântico, e seu sonho de ser uma estrela nunca se concretiza. Talvez ela sempre tenha sido perigosa, mas o abismo potencializa sua raiva e percepção de injustiça. São tons extremos, mas é uma decepção recorrente, conhecida e repetida. 

A mãe de Pearl também tinha sonhos quebrados, era dela o vestido vermelho que Pearl usa em seu teste de atriz. Mas o vestido estava guardado. Fica implícito que a mulher tinha vivido suas próprias dores e que, apesar da frieza, ela estava endurecendo Pearl para protegê-la de coisas que ela mesma viveu. 

O vermelho-sangue de Pearl é o vermelho decepcionado do vestido de sua mãe e é o vermelho purpurinado dos sapatinhos de Dorothy. São muitos os tons da desilusão. Assim como são diversas as reações a ela. Todas as três acabam presas à fazenda.

Apesar dessa releitura, é inegável que O mágico de Oz é um filme lindíssimo e memorável! Servindo de inspiração para diversos tipos de obras, mesmo décadas depois de seu lançamento ainda desperta profundo encantamento. A camada crítica só agrega a possibilidade de debates e interpretações, que provavelmente apenas ajudam a manter quente a memória do filme. Pearl é um filme recente, que, como muitos outros parece ter tirado alguma inspiração do clássico, mas que o faz de forma tão única que demonstra potencial para se tornar também uma obra inesquecível para muitas gerações de fãs de terror. 



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