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O terror por trás dos contos de fadas em Para o Lobo

“A Primeira Filha é para o Trono.
A Segunda Filha é para o Lobo.”

Existe algo sombrio por trás dos contos de fadas. Maçãs envenenadas; sangue escorrendo pelo fuso de uma roda de fiar; o desespero do soar da meia-noite… lobos maus. Em toda e qualquer história do gênero, o medo é indispensável para a narrativa. No entanto, em Para o Lobo, primeiro livro da duologia Wilderwood, de Hannah Whitten, esse medo é mais do que um mero ingrediente: é um prato servido deliciosamente frio.

Lançado em 2022 no Brasil, sob o selo da editora Suma, a obra de dark fantasy (em português, fantasia sombria) conta a história de duas irmãs: Redarys e Neverah. Não estranhe se os nomes de tais personagens te remeterem a dois dos mais famosos contos de fadas já escritos – Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve, respectivamente. Isso não é uma coincidência: a duologia é uma releitura desses e de outros contos de fadas sob uma perspectiva intrinsecamente aterrorizante, sedutora e juvenil. Como a própria autora destacou:

"À medida que crescemos, queremos recontextualizar as histórias que cresceram conosco; queremos cutucá-las e tentar fazer com que elementos tão familiares se encaixem em novos paradigmas, encontrando partes que possamos carregar conosco. Isso é basicamente o que tentei fazer com Para o Lobo – reconstruir pedaços de contos de fadas, transformando-os de lições desatualizadas em algo útil para mim agora."

Ao contrário dos contos de fadas originais, em que o medo é algo inevitável, mas efêmero (e, de certo modo, fundamental para a lição de moral presente em cada uma das histórias), em Para o Lobo, ele praticamente divide o papel com a protagonista, Redarys – ou simplesmente Red.

Logo no início, sentimos os primeiros resquícios da agonia que irá nos acompanhar no decorrer de sua jornada. Apreensiva em relação ao seu aniversário de 20 anos, Red, princesa de Valleyda e gêmea mais nova de Neve, está em seu quarto, encarando seu próprio reflexo, enquanto se prepara para a cerimônia que sela seu cruel destino. 

Red é uma Segunda Filha. De acordo com as lendas do universo de Whitten, sempre que há o nascimento de uma Segunda Filha no reino, ela deverá ser entregue ao lendário Lobo de Wilderwood em seu vigésimo aniversário. Isso significa que, ao contrário da irmã, que está fadada a herdar o trono, Red vive para um único propósito: o de ser sacrificada para a floresta encantada e mortal que faz fronteira com seu lar. Tal sacrifício é fruto de um pacto de mais de quatro séculos, selado entre os reis dos cinco reinos do continente e as forças de Wilderwood:

“Antigamente, a floresta fora um lugar de verão interminável, um local de conforto em um mundo movido por violência. As amas contavam que ela fora capaz até mesmo de conceder dádivas àqueles que deixavam sacrifícios dentro de seus limites — mechas de cabelo, dentes de leite, papéis salpicados com sangue. A magia existia livremente naquele mundo, acessível a todos que aprendessem a utilizá-la. 

Quando os Cinco Reis fizeram um pacto com a floresta para que esta confinasse os deuses monstruosos — para que criasse as Terras Sombrias como uma prisão para eles —, toda a magia se foi, absorvida por Wilderwood para assim realizar a monumental tarefa. Mas mesmo naquela época a floresta ainda podia barganhar — e barganhou com Ciaran e Gaya, o primeiro Lobo e a primeira Segunda Filha.”

Além disso, a lenda diz que, após cinquenta anos do pacto, os Reis adentraram Wilderwood e ali ficaram aprisionados. Desde então, o povo valleydiano nutre a crença de que a libertação dos monarcas (e, consequentemente, da magia que um dia existiu) depende do sacrifício da Segunda Filha ao Lobo que habita e assombra a floresta. 

No decorrer desses quatrocentos anos, quatro mulheres seguiram esse tenebroso destino, mas não obtiveram sucesso e jamais foram vistas novamente. Após cem anos desde o último sacrifício, Red é obrigada a cumprir com o seu papel e seguir os passos de suas antecessoras, na expectativa de que, desta vez, sua vida será o bastante para o Lobo permitir o retorno dos Cinco Reis. Assim, vestida com o manto vermelho presenteado pela adorada irmã, ela adentra o arvoredo sem olhar para trás.

Os contos de fada nada infantis de Perrault

Até então, podemos notar algumas semelhanças com o clássico Chapeuzinho Vermelho (Le Petit Chaperon Rouge) que, apesar de ser atribuído muitas vezes aos Irmãos Grimm, é de autoria do escritor francês Charles Perrault, tendo sido publicado pela primeira vez em 1697. Ao contrário da versão grimmiana, de 1812, em que a Chapeuzinho e sua vovózinha são salvas por um valente caçador, o original é mais sombrio e não conta com um final feliz: na realidade, tanto a criança quanto a vovó são devoradas pelo lobo.

Na história de Whitten, temos a donzela trajada de uma capa vermelha, um tenebroso lobo e uma perigosa floresta. No entanto, e para a surpresa do leitor, os traços da fábula no livro terminam aí. Na verdade, uma inspiração mais presente na narrativa, e também de autoria de Perrault, é O Barba Azul (La Barbe-Bleue). 

Charles Perrault (1628-1703)

Na história, Barba Azul é um homem temido por todos de sua cidade. Viúvo pela terceira vez, ele visita um de seus vizinhos e pede a mão de sua filha caçula. Admirada pela fortuna e a surpreendente generosidade do homem, a donzela aceita o compromisso e se muda para seu nobre castelo. 

Pouco tempo depois, Barba Azul alerta que irá viajar e entrega todas as chaves da casa para a esposa, incluindo a de um pequeno quarto que ele a proibiu de entrar. Tomada pela curiosidade, ela abre a porta do cômodo e descobre um obscuro segredo: o quarto abriga os cadáveres das antigas esposas de Barba Azul, assassinadas por ele mesmo. 

Existem dois pontos do conto que podemos associar com a história de Whitten. O primeiro deles é que o Lobo também é um personagem extremamente temido e que, assim como acontece com a mocinha de o Barba Azul, surpreende a jovem Red pela sua personalidade. Afinal, ao contrário do que ela cresceu ouvindo sobre um monstro que assombra a floresta, tal figura não passa de um homem solitário chamado Eammon. 

“Estava debruçado sobre um livro aberto, a mão se mexendo enquanto escrevia num papel com uma caneta-tinteiro. A largura de seus ombros trazia uma imagem de força — mas a força de um homem, não de um monstro; os dedos que seguravam a caneta eram longos e elegantes, nada parecidos com garras. Ainda assim, havia algo de sobrenatural em suas feições, algo que tinha um toque humano, mas não apenas isso.

— Eu não tenho chifres, se é o que está se perguntando.”

Outro ponto que se assemelha à narrativa de Perrault é o fato de que os corpos das antigas Segundas Filhas, assim como os das esposas, continuam na floresta, mas não ensanguentados e dispostos em um cômodo. É muito pior: eles estão perfurados e atravessados por vinhas, raízes e trepadeiras em uma das árvores mágicas da floresta, com os ossos e os órgãos visíveis – como se fizessem parte de toda a natureza de Wilderwood. Vale destacar a destreza que Whitten possui para descrever com detalhes, nesse capítulo, o que ela deseja que o leitor imagine durante tal cena, tornando-a uma das mais assombrosas do livro.

O monstro e a donzela

Conforme o livro avança, acabamos nos apegando cada vez mais ao misterioso Lobo e à sua relação com a recém-chegada. Apesar do jeito carrancudo e o trabalho bruto e doloroso que exerce (de manter a floresta viva com o próprio sangue), há uma bondade clara em cada ação do pseudo-monstro, que encanta e atrai Red. Então, e ironicamente, ela acaba se apaixonando por quem sempre acreditou que daria fim à sua vida. 

É nessa fase da narrativa que finalmente nos deparamos com a verdadeira e mais óbvia inspiração do livro: A Bela e a Fera (La Belle et la Bête), escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, em 1740.

Trata-se da história da filha mais nova de um rico mercador, a humilde e gentil Bela que, assim como Red, era apaixonada por leitura e tinha um espírito naturalmente empático. Ela é entregue à Fera em troca da vida de seu pai. Estava implícito que Bela morreria nas mãos da criatura; porém, ao invés de devorá-la, a Fera acaba se encantando com o charme de sua prisioneira, que corresponde aos seus sentimentos.

Contudo é importante deixar claro que, ao contrário da obra de Villeneuve, o núcleo romântico não é o cerne da história de Whitten. A própria autora salienta que a duologia possui um foco bastante claro: a dor, as bênçãos e as consequências por trás de um sacríficio.

“Minha intenção era escrever uma história em que todos têm o poder da escolha e precisam lidar com as consequências daquelas que são ruins. Ao mesmo tempo, queria criar um espaço em que a redenção é sempre uma opção, e quando você erra, você não é uma causa perdida. Eu realmente espero que, apesar de todas as sombras que rondam Wilderwood, a duologia faça com que o leitor sinta, acima de tudo, esperança.”

Ainda é possível detectar semelhanças com Branca de Neve (Schneewittchen), clássico da literatura alemã, compilado pelos Irmãos Grimm e publicado entre os anos de 1817 e 1822. Isso porque enquanto acompanhamos as aventuras de Redarys por Wilderwood, também somos contemplados pelo ponto de vista de sua irmã, a Neve, que tem de lidar com a perda da pessoa mais querida de sua vida. Whitten nos oferece, a partir desse luto, uma versão sombria de uma das personagens mais doces que o mundo conhece e, com ela, uma versão masculina, mas não menos assustadora, da Rainha Má que, tal como na história original, pretende ser outra pessoa para enganar a dama.

Ressignificando a tradição

Mesmo que a releitura de um conto de fadas não seja um conceito, por si só, criativo – tanto que já é comum nos depararmos com livros contemporâneos que se inspiram em fábulas antigas, como a saga Bridgerton, por exemplo –, não podemos deixar de nos surpreender com a forma como a autora de Para o Lobo a emprega em sua obra.

Muitas vezes, esse tipo de reinterpretação opta por cultivar a parte sensível e romântica dos contos de fadas, como a princesa sendo resgatada, o beijo de vida dado pelo amor verdadeiro e, é claro, o "felizes para sempre". No entanto, Whitten ousa ao destacar os elementos taciturnos de tais histórias, propondo uma reflexão acerca da falsa inocência que elas emanam. 

Dessa forma, Para o Lobo é um suspiro de originalidade em meio a um gênero saturado de narrativas repetitivas, misturando a tensão do terror com a delicadeza dos contos de fadas – dois elementos que parecem distantes, mas se complementam de uma forma excepcionalmente empolgante.


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