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Por uma releitura de Vidas secas


Escrito em 1938, pelo escritor alagoano Graciliano Ramos, Vidas secas figura no cenário literário nacional como um dos livros regionalistas mais reconhecidos por crítica e público. Celebrado até hoje, o clássico é tão popular que quase todo brasileiro tem sua história na ponta da língua, como uma fórmula decorada após muita repetição: uma família de sertanejos animalizados e animais humanizados que fogem da seca de forma cíclica, ou seja, com o romance terminando da mesma forma que começou.

Essa naturalidade em contar e recontar o drama da família nordestina se deve, principalmente, à forma como a literatura é ensinada nas escolas de ensino básico e à cobrança de seu conteúdo em vestibulares. Porém isso não acontece somente com o romance alagoano – não nos aprofundaremos na complexidade do ensino literário, mas é importante iniciar nossa análise tendo em mente a forma automatizada com que muitas vezes os livros são tratados, partindo de resumos pouco aprofundados e pré-definidos.

A cilada dos clássicos

Não seria exagero afirmar que clássicos dispensam apresentações. Seja na literatura, no cinema ou na música, as obras que figuram nos cânones são repassadas geração após geração, pelos mais variados meios, como grandes tesouros artísticos que merecem ser perpetuados na história de um povo. Entretanto é justamente esse amplo reconhecimento que parece criar uma cilada aos clássicos: a certeza de que conhecemos algo quando, na verdade, nunca tivemos contato direto e do qual não há mais nada a ser apreendido.

No Brasil, por exemplo, as obras que mais sofrem com isso são justamente as que compõem as listas obrigatórias de vestibulares, uma vez que estamos diante de leituras cristalizadas que foram repetidas sistematicamente até se estagnarem. Com uma visão padronizada apresentada por décadas nas escolas, pode parecer aos novos leitores que nada mais há para ser extraído de histórias já tão conhecidas. Ademais, as semelhanças do conteúdo entre os resumos disponíveis em sites de educação, nos vídeos de diversas plataformas e nas mais variadas postagens em redes sociais apontam para o mesmo caminho: de que tudo já nos foi dado e interpretado.

Além de todos os problemas que isso gera para um país que lê pouco – ao reforçar uma leitura única em vez de proporcionar e incentivar olhares múltiplos sobre obras consagradas –, no caso de Vidas secas, podemos estar diante de uma outra questão superposta, a de uma leitura elitista que vem sendo perpetuada de forma automática, sem suscitar questionamentos.

Uma leitura elitizada 

Ao acompanharmos a saga do vaqueiro Fabiano, junto de sua mulher, Sinhá Vitória, dos dois filhos e da cachorrinha Baleia, somos apresentados à dura realidade de uma família nordestina que atravessa o sertão, em meio a seca, em busca de um lugar para se estabelecer e, assim, fugir da fome.

Apesar de contar com uma história comovente e de fácil identificação para boa parte dos brasileiros que vivem longe das grandes capitais e enfrentam diariamente a desigualdade social do nosso país, algumas críticas parecem não ter sensibilidade para apreender o que há de mais humano na trama, apontando sempre para as mesmas questões e reforçando análises elitizadas, como a falta de vocabulário da família e sua animalização.

Graciliano Ramos

Até mesmo grandes nomes da crítica literária não conseguiram transpor os lugares-comuns ao abordarem Vidas secas. Como exemplo, temos Antonio Candido, grande admirador de Graciliano Ramos, que em seu livro Ficção e confissão, dedicado às obras do autor alagoano, faz afirmações como “Fabiano existe, simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como o dos filhos e da cachorra Baleia” ou ainda que “Fabiano ainda não atingiu o estádio de civilização em que o homem se liberta mais ou menos dos elementos”.

De fato, o narrador nos lembra a todo momento sobre a falta de um vocabulário extenso por parte dos integrantes da família, bem como a comparação com animais – tinham calcanhares duros como cascos, pareciam-se com macaco ou com papagaio pela forma como andavam, mexiam-se como urubu – e a humanização da cachorrinha Baleia, ao tomar a frente do grupo, ter sentimentos revolucionários, ficar séria e desaprovar o comportamento dos humanos.

Esses pontos podem reforçar uma leitura enviesada por resultarem em uma aparente falta de complexidade dos personagens, fazendo com que parte do público não consiga enxergar humanidade neles. Entretanto nada disso é, ou deveria ser considerado, uma exclusividade desse recorte social, uma vez que pensamentos complexos nem sempre são cobrados de personagens urbanos.

Neste caso, parece que o simples fato de habitar, mostrar e descrever o dia a dia em uma capital econômica do país, como São Paulo ou Rio de Janeiro, já é suficientemente complexo, mesmo quando toda a crítica social e seus desdobramentos ficam a cargo do leitor, como acontece na produção literária contemporânea.

Com isso, o que está sendo julgado é muito mais a maneira como os personagens lidam com seu entorno e, por isso, atividades consideradas complexas pelos leitores urbanos serão diversas das de leitores situados em áreas mais rurais e/ou interioranas do país. Para aqueles, vale mais encarar um metrô lotado, a violência explícita, os opressivos arranha-céus e o conhecimento tecnológico, enquanto, para os últimos, o foco recairá na lida com a terra, a disputa territorial, a luta contra fenômenos da natureza e a dificuldade em lidar com o novo.

Logo, se parte expressiva da elite cultural e da produção acadêmica brasileira é composta por um seleto grupo de pessoas cosmopolitas, então, mesmo quando certa de ter consciência política, preocupação social e empatia com os oprimidos, essa elite não consegue esconder seu juízo de valor em relação a grupos que se afastem de seu ideal intelectual – neste caso, aos pobres e nordestinos.

Humanizando humanos 

Em um cenário repleto de mandacarus e juazeiros, nos deparamos com personagens alquebrados e embrutecidos pelo meio em que se encontram. Podemos observar essas características, de forma acentuada, em Fabiano, uma vez que o vaqueiro é frequentemente atormentado pelo dualismo homem x animal, sendo essa questão ainda mais aprofundada no segundo capítulo do romance, que leva seu nome.

Nele, fica nítido que o personagem vive em constante guerra com a ideia do que é ser homem e do que é ser bicho, como ao afirmar a si mesmo que é um homem para, logo em seguida, discordar e se comparar a um bicho, apesar disso não ser posto como algo vergonhoso, pelo contrário, “para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades”. Outro momento semelhante acontece quando pensa em sua vida no sertão, como se estivesse escondido como tatu, “duro, lerdo como tatu”, mas que um dia “sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem” para, mais uma vez, discordar ao perceber que não só ele, mas todos de sua família “precisavam ser duros, virar tatus” para suportar as adversidades impostas pela pobreza.

Nesse sentido, com uma leitura humanizada, vemos que Fabiano, um vaqueiro humilde e de pouca palavras, é um personagem complexo que percebe a sociedade em que está inserido e o local que o cerca. Ele quer ser homem e em alguns momentos sente que de fato é um, mas sua insegurança em se afirmar como tal vem de sua falta de educação básica e de sua classe social. Consciente da importância dos estudos, admira a gente da cidade que tem mais instrução e deseja o mesmo para seus filhos.

Vidas secas (1963)

Entretanto ele também sabe que o conhecimento pode inquietar o espírito do oprimido, ao entender o sistema em que está preso e contra o qual pouco ou nada pode fazer, e, por isso, sente que se um dos filhos aprendesse “qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito”. Ainda assim, o personagem anseia que as crianças estudem, mas somente após escaparem da condição imposta pelo sertão, por enquanto “tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles”.

Outro ponto que não passa despercebido por Fabiano é que são justamente aqueles que mais têm educação quem mais o oprime e, em duas passagens específicas, essa compreensão junto com a indignação de seu papel em uma sociedade estratificada ficam explícitas. A primeira ocorre após perder dinheiro em um jogo de cartas em parceria com um soldado que inicia uma briga com o sertanejo e acaba por prendê-lo. Na cadeia, ele questiona o motivo de sua injusta prisão:

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? [...] Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?

Todo o episódio da prisão reforça que Fabiano é consciente de si, da sociedade e da dinâmica por ela imposta, de sua ignorância e de sua classe e do quanto elas o imobilizam, o impedindo de reagir como gostaria. Já a segunda passagem ocorre na festa natalina da cidade, na qual o vaqueiro se sente deslocado pelos habitantes que possuem maior traquejo social – “Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior” – e oprimido ao reconhecer que todos ali já tinham se aproveitado de sua inocência em alguma situação.

Contudo a festa também é um bom capítulo para observar a personalidade dos outros integrantes da pequena família. Enquanto Sinhá Vitória consegue ver beleza na vida quando ela não está envolta em miséria, as crianças se mostram curiosas e questionadoras ao ficarem fascinadas com tudo que veem na cidade.

Inclusive, ao focarmos nesses três personagens, veremos que Sinhá Vitória tem anseios, remorsos, não gosta de ser considerada bicho e é muito admirada pelo marido, que ficava “encantado com a esperteza de sinhá Vitória. [...]. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo”. Já os filhos são apresentados como crianças comuns – no capítulo do menino mais novo, o sentimento de admiração domina toda a passagem, com o filho orgulhoso do trabalho do pai, tentando imitá-lo e visualizando seu futuro como vaqueiro; no capítulo do menino mais velho, somos guiados pela curiosidade típica da infância, com o menino descobrindo uma palavra nova.

De modo geral, todos os capítulos mostram o desejo desses personagens de serem gente, não por não serem e/ou por se sentirem mais próximos dos animais, mas porque a pobreza, a seca e a fome fazem com que eles se sintam e vivam como bichos, principalmente, ao se confrontarem com quem tinha mais dinheiro e instrução, como o patrão e as pessoas da cidade. Por isso, devemos nos atentar que são os próprios personagens que se comparam a animais devido às situações brutais que moldam suas vidas, fazendo com que percam, em alguns momentos, a própria noção de humanidade, em vez de a retirarmos por considerá-los bestiais ao não nos apresentarem um vocabulário complexo que descreva pensamentos filosóficos intrincados. 

Quebrando o romance cíclico 

Um dos pontos mais conhecidos sobre Vidas secas é o seu caráter cíclico, com o livro terminando no mesmo ponto em que começou, ao mostrar os personagens fugindo da seca mais uma vez. Segundo Antonio Candido, o romance “começa por uma fuga e acaba com outra. Decorre entre duas situações idênticas, de tal modo que o fim, encontrando o princípio, fecha a ação num círculo”. Porém uma leitura atenta mostra que o romance termina com o rompimento desse ciclo, o que já é evidenciado pelos títulos dos capítulos: o livro abre com Mudança e se encerra com Fuga – eles não estão mais mudando de um local para outro do sertão, eles estão fugindo do sertão.

O próprio romance nos fornece passagens que mostram como seria o seu desfecho caso fosse realmente cíclico, quando Fabiano pensa em seu futuro, bem antes do capítulo final, caso ele fizesse escolhas parecidas com a do início do livro: “Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca”.

Na medida em que outra seca avança, surge uma nova dúvida sobre o futuro e o casal cogita continuar na já conhecida sina, porém, esse questionamento sobre continuar no sertão vai se intensificando até chegarem na conclusão de que “não valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca” e que seria “necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados”, quebrando com a ideia de história cíclica.

Junto com toda a discussão sobre partir ou não, o último capítulo também traz mais algumas passagens que rebatem a leitura de que os personagens seriam animalizados:

Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam. – O mundo é grande. 

Por fim, ao colocarmos o primeiro e o último capítulos lado a lado, fica evidente a diferença no comportamento e anseios dos personagens, principalmente de Fabiano e Sinhá Vitória. Se no começo vemos a família cansada, com fome e sem expectativas, no final vemos que

[...] andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.

O sertão não mandaria para a cidade bichos presos em um castigo sem fim. O sertão mandaria homens.


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