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Os Miseráveis e a diminuição do papel da mulher na narrativa


Victor Hugo, escritor francês do século XIX e precursor do romantismo literário, escreveu diversas obras voltadas às injustiças sociais da França naquela época. Hugo era um personagem político, seus pais, Joseph Léopold e Sophie Trébuchet, eram respectivamente um oficial do exército napoleônico e uma monarquista fervorosa. Por esse motivo, brigas e desentendimentos eram frequentes na casa da família, o que acabou fazendo de Hugo um homem politizado, mais tarde se tornando um grande republicano, estadista e defensor da liberdade de expressão, da justiça social e da igualdade entre os cidadãos.

Em sua obra mais famosa, Os Miseráveis, o autor mergulha nas camadas mais baixas da sociedade. Ele não hesita em descrever a fome, a miséria e a maneira como os indivíduos mais vulneráveis eram invisibilizados e abandonados pelo Estado. Hugo transforma Jean Valjean, um personagem que não era visto senão com desprezo por seus dezenove anos de aprisionamento e trabalho forçado, em um herói tanto para os outros quanto para si mesmo, em sua complexa jornada de autodescoberta. O autor descreve a Paris do século XIX tal como ela era, repleta de crianças famintas, mulheres abandonadas e pessoas que, segundo ele, só poderiam ser salvas a partir do momento que fossem “iluminadas” pela luz do ensino gratuito e obrigatório, além de estarem inseridas em um Estado menos hierarquizado.

Os Miseráveis é visceral, verdadeiro e brilhantemente escrito. As temáticas que o autor aborda são relevantes ainda nos dias de hoje, servindo de objeto de estudo e mostrando que muitos dos maiores desafios tratados na obra, como a miséria e o falho sistema de justiça que aprisionou Jean Valjean por quase duas décadas por ter roubado um pão, ainda precisam ser discutidos e solucionados. Durante o livro, o leitor se depara com personagens complexos, que ao decorrer de mil e quinhentas páginas se contradizem, aprendem com seus erros, passam por obstáculos e alcançam a alegria. Esses personagens podem até ser vistos como párias pela sociedade da época no universo do livro, mas se tornam verdadeiros heróis diante dos olhos do leitor.

Victor Hugo

Esses “heróis”, entretanto, são em sua maioria homens. As personagens femininas da obra, embora sejam de suma importância para a construção do enredo, não são tão aprofundadas quanto os personagens do sexo oposto, e é interessante observar como seus papéis são muitas vezes reduzidos para caber nas narrativas dos homens presentes no livro.

Antes de tudo, é claro que é esperar demais que um livro escrito por um homem há dois séculos pudesse trazer algo de revolucionário se tratando do papel da mulher na sociedade. Assim, não é o objetivo desse texto “cancelar” um autor que escreveu obras importantíssimas não só para sua época, mas também para os dias de hoje. O objetivo é refletir sobre os enredos das três personagens femininas principais e como as estruturas sociais do passado ainda podem ser vistas na forma como mulheres são vistas na contemporaneidade.

Fantine 


Em primeiro lugar, temos Fantine, de longe a personagem feminina mais profunda da obra. Justamente por esse motivo, ela consegue ter voz própria dentro da narrativa, o que faz com que o leitor a enxergue por completo e se lembre dela e da vida que levou muito depois de virar a última página. Em Fantine, vemos quão longe as convenções sociais podem destruir por completo a vida de uma mulher, enquanto as mesmas regras não são nem de longe aplicadas a um homem na mesma situação.

Por ter engravidado fora do casamento, Fantine precisa esconder a filha e tentar construir uma nova vida longe de Paris. Quando sua situação é descoberta, todas as portas se fecham diante da personagem, que se vê sem emprego, sem amigos, vivendo na mais profunda miséria e vendendo aos poucos partes do seu corpo para manter a filha viva. A transformação de Fantine é absoluta e perturbadora. Ela se torna uma sombra, nem vista, nem ouvida, mas duramente julgada por se fazer prostituta quando nada mais lhe resta.

Anne Hathaway como Fantine (2012)

Na época em que o livro foi escrito e publicado, ser mãe de um filho ilegítimo era o pior cenário em que uma mulher podia se encontrar. Durante boa parte da história da humanidade, o sexo foi algo restrito apenas às figuras masculinas. Homens solteiros e casados poderiam obter prazer quando desejassem, possuir várias amantes e filhos que fossem concebidos fora do casamento.

Por outro lado, a mulher que engravidasse fora do laço matrimonial era reduzida a menos que escória da sociedade. Ela seria vista como uma mulher indigna, suja e abominável. Assim como retratado em Os Miseráveis, todas as oportunidades seriam tiradas dela. Sem trabalho, sem cuidado e sem perspectivas de um futuro melhor, mulheres muitas vezes se tornavam prostitutas por não terem outra escolha, sendo julgadas e vistas como o pior tipo de gente pelas mesmas pessoas que lhes viraram as costas.

Fantine, então, carrega todo o fardo de tentar criar uma filha de um homem que a usou e a deixou para nunca mais voltar. Ela é abandonada por todos, e as provações por que passa durante o livro são de revirar o estômago.

Também é possível traçar um paralelo entre a situação enfrentada por Fantine e a realidade de muitas mães do século XXI. Ainda hoje, empresas se recusam a contratar mulheres que são mães ou expressam o desejo de engravidar. Assim como Fantine teve diversos empregos negados pela sua condição de mãe solteira, hoje mulheres em situações similares são vistas como não aptas ao trabalho.

Cosette 


Cosette, filha de Fantine, pode ser considerada a grande protagonista feminina de Os Miseráveis. Mas a partir do momento que deixa a infância e a casa dos Thénardier onde foi criada, toda a sua narrativa gira em torno dos personagens masculinos da obra e das expectativas deles sobre ela.

Apesar da relação de pai e filha entre Cosette e Jean Valjean ser muito bem construída, o que vemos de Cosette é basicamente a importância dela para a vida de Jean, como ela é amada por ele e como, por esse motivo, “salvou” sua alma. Pelas palavras do narrador, Cosette é uma jovem que se torna muito bonita, gentil e bem-educada, mas nada mais que isso. Ela é peça-chave para todo o desenvolvimento da história e para a grande maioria dos personagens, mas, ao ler a última página de Os Miseráveis, a impressão que fica é que não sabemos direito quem de fato é Cosette.

Amanda Seyfried como Cosette (2012)

A relação dela com Marius também não deixa de ser superficial. É uma característica comum da escola literária romântica a idealização da mulher amada, vista como símbolo de pureza e virtude, uma pessoa perfeita aos olhos do homem. Cosette é tudo isso e mais um pouco para Marius. Ela se torna o interesse amoroso do personagem e só. Em palavras simples, Cosette se transforma na donzela a ser salva, protegida e adorada por nenhum motivo aparente.

É possível perceber como o papel de Cosette – de novo, a personagem mais importante em questão de enredo para a obra – é dependente da sua relação com dois dos personagens masculinos principais. Cosette mal tem voz e espaço na narrativa, serve apenas de conforto para Jean Valjean e como objeto de desejo de Marius. Tirando o fato da paixão por esse último e do que esse sentimento recém-descoberto causa em seu interior, Cosette não tem mais aprofundamento. Diferente desses dois personagens masculinos – que por muitas vezes têm vários debates morais internos na obra, mergulhando em quem eles são e como veem o mundo ao seu redor – o único aspecto da mente de Cosette que é analisado depois de crescida é a sua paixão por Marius.

Não há muito a falar sobre ela porque não há muito que seja dito sobre ela. Cosette é o início, o meio e o fim, mas ao analisar atentamente Os Miseráveis, percebemos que essa personagem serve apenas para alavancar as narrativas dos protagonistas masculinos do livro.

Éponine 


Éponine, por sua vez, é filha do casal que acolheu Cosette no passado, e embora tenha sido mimada por sua mãe, a personagem passa o fim da infância e o resto da sua vida na miséria de Paris.

Ela é uma personagem interessante por vários motivos, mas sem dúvida a coragem e a desenvoltura com que enfrenta a vida perigosa e sofrida nas ruas da capital da França e dentro da própria casa em meio a uma família disfuncional é o que mais chama atenção. Éponine cresceu com a imagem de um pai cruel e corrupto, uma mãe que, apesar de se preocupar com as filhas, se preocupava mais consigo mesma e em satisfazer os desejos do marido. “Más influências” não tornaram Éponine má, apesar de ter sido retratada como uma espécie de antagonista durante a infância, quando levava uma vida relativamente confortável e Cosette era maltratada por seus pais.

Infelizmente, o potencial de Éponine chega a ser desperdiçado na obra de Victor Hugo quando a personagem se apaixona por Marius, que é apaixonado por Cosette e interesse amoroso da mesma. Éponine tem uma cena incrível quando enfrenta não só o pai, mas um bando de bandidos armados para proteger Marius de um possível conflito. Entretanto o que vemos a partir daí é uma redução da personagem para engrandecer de certa forma o personagem masculino, que em vários momentos da trama é visto como uma espécie de herói na revolução que acontece em Paris.

Éponine, uma personagem interessantíssima, forte e resiliente acaba sendo resumida a um interesse amoroso. Ela endeusa Marius e muitas de suas ações futuras acabam sendo direcionadas apenas pelo desejo de estar ao lado dele, resultando em um desperdício de potencial gigante.

Samantha Barks como Éponine (2012)

O que acontece com Éponine e Cosette é ainda muito comum em obras contemporâneas. Muitas vezes personagens femininas são usadas apenas como adereços para engrandecer alguma característica dos personagens masculinos, tal como virilidade e bravura. Em uma sociedade patriarcal, homens são constantemente vistos como protagonistas, os escolhidos para representarem uma história, e frequentemente mulheres se tornam nada menos que figurantes nessas narrativas, subordinadas ao homem e servindo de meros adornos para uma história mais “grandiosa” protagonizada pelos mesmos.

Os Miseráveis traz assuntos pertinentes e relevantes e abre os olhos do leitor quanto a problemas sociais importantíssimos que ainda hoje se fazem presentes na sociedade. Victor Hugo não é um escritor aclamado por acaso, ele tinha e ainda tem muito a dizer sobre o mundo em que estamos inseridos. Entretanto também é interessante debater o papel das mulheres nesse livro em específico porque ele mostra de maneira clara como o sexo feminino foi – e ainda é – retratado como dependente do masculino em todas as instâncias.

Esse é um ponto que vem sendo desmistificado nos dias atuais, mas que vez ou outra volta a surgir em filmes, séries e livros recentes. Por isso é tão incrível também dar uma chance a autoras clássicas. Ao contrário de muitos dos livros escritos por homens, em obras como Mulherzinhas, Orgulho e Preconceito e Jane Eyre é possível ver mulheres que têm muito a dizer sobre si mesmas e sobre o mundo, possuem seus medos e ambições, são ousadas, corajosas e não subordinadas às narrativas dos personagens do sexo oposto.

Por isso é tão interessante discutir os clássicos. Eles têm muito a ensinar? Com certeza! Mas também são obras antigas que podem nos mostrar com clareza o quanto nossa realidade não é assim tão diferente do que era há alguns séculos. É importante notar essas questões, discuti-las e tentar, pouco a pouco, fazer a diferença.

Referências 

Comentários

  1. Incrível teu texto, Cecília. Não li o livro ainda, mas com certeza quando fizer isso vou pensar nessa problematização. Obrigada!

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. obrigada!!! Apesar dessa questão envolvendo as personagens femininas do livro, a obra é incrível e traz muitas discussões interessantes <3

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