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A arte popular revolucionária do CPC em “A mais valia vai acabar, seu Edgar”


Na década de 1960, o Brasil foi palco de diversas mudanças político-culturais, como as famosas Reformas de Base, conhecidas, principalmente, por gerar muitos debates acerca da reforma agrária durante o governo do então presidente João Goulart (Jango), e o fortalecimento de movimentos sociais de esquerda. Dentre os movimentos de esquerda ligados à vertente cultural, destaca-se o nascimento do Centro Popular de Cultura. A criação do CPC deve-se ao debate gerado na época a respeito da necessidade de uma arte que pudesse valorizar a cultura brasileira e que fosse politizada, a fim de denunciar as injustiças sofridas pelo proletariado, como foi expresso na peça teatral A mais-valia vai acabar, seu Edgar

Rumo à arte popular


O Teatro de Arena, um dos grupos teatrais mais influentes das décadas de 1950 e 1960 e que vinha encenando apenas peças escritas por estrangeiros, passa, a partir de 1960, a aderir à arte nacionalista. Além de contribuir para tal revolução artística, o Teatro passou a denunciar, por meio dos shows apresentados, as dificuldades sociais pelas quais vinha passando o povo brasileiro. Contudo, o custo dos ingressos era altíssimo e o acesso às apresentações teatrais era inalcançável à maior parte das pessoas. O responsável pelas críticas feitas a essa situação foi Vianinha, que defendia um teatro militante e didático. 

Com a insatisfação de outros integrantes do Teatro de Arena, foi elaborada a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, por Vianinha e Chico de Assis, com canção de Carlos Lyra. O grupo contou com a ajuda  do sociólogo Carlos Estevam, que contribuiu para a elaboração da explicação do conceito de mais-valia. Desse modo, já estava constituído o núcleo dos principais participantes do CPC. Esses intelectuais organizaram um curso de filosofia em um dos ambientes da União Nacional dos Estudantes, que juntaram-se com membros da UNE e deram início à elaboração do CPC, com inspirações no Movimento de Cultura Popular e fundadores de grandes nomes da dramaturgia, escrita e pedagogia: Paulo Freire e Ariano Suassuna.


A inauguração do CPC com A mais-valia vai acabar, seu Edgar já apontava os objetivos do Centro que visavam a politização do público, principalmente pelo teatro, dentre as diversas outras expressões artísticas e educacionais. Daí enxergamos, pois, a principal ligação militante do Centro Popular de Cultura à União Nacional dos Estudantes: a política.

A mais-valia científica representada no teatro

Não é quem trabalha quem tem lucro. [...] Ou eu acabo com o lucro, ou o lucro acaba comigo.

É assim que os autores da peça destacam, de modo simples e objetivo, as implicações causadas na estrutura social capilitalista pela mais-valia, conceito criado e defendido por Karl Marx no século XIX. 

A introdução desse termo socialista-científico é advinda de uma longa jornada de descobertas e questionamentos enfrentadas pelo personagem Desgraçado 4. A compreensão deste termo é construída aos poucos, ao longo dos acontecimentos da peça, de modo que a realidade dos personagens Desgraçados seja reconhecido pelo público de trabalhadores. Assim, é apresentada a concepção relativa da mais-valia: 

Acabei de ganhar o desafio! Uma máquina andando bem ligeiro faz sapato em três horas bem verdadeiro, e o Manuel da esquina que é sapateiro faz um par de sapato num ano inteiro que só vale três horas e não deu dinheiro.

Como foi exemplificado no trecho, essa faceta da mais-valia é um modo moderno de organização de trabalho que se dá pelo aumento do ritmo do mesmo. O trabalhador é destituído do meio de produção e  substituído pelas tecnologias, que são capazes de produzir mais em menos tempo. Esse sistema de produção diminui custos, pois o número de trabalhadores é reduzido, aumentando o lucro dos detentores dos meios de produção. 

Já o outro modo de obtenção de lucro pela mais-valia é conhecido como absoluto. Esse tipo de exploração é mais antiga, e é evidenciada logo no início da peça.

Trabalhamos noite e dia, dia e noite sem parar. Então de nada precisamos se só precisamos trabalhar há mil anos sem parar.

Em outras palavras, a mais-valia absoluta é obtida a partir do aumento do tempo de trabalho, sem elevar proporcionalmente o salário do trabalhador.

Para tornar mais didática a explicação destes conceitos, Desgraçado 4 solicita ao seu parceiro, o Desgraçado 1, uma viagem juntos a um sonho, no qual todos os produtos ofertados para o consumidor sejam comprados em tempo de trabalho e não em dinheiro. Mas há uma importante condição: ambos só poderão comprar os produtos que compram no dia a dia.

No final da experiência fictícia, os colegas percebem que das oito horas de trabalho que tinham disponíveis para gastar no sonho, apenas duas horas foram usadas para consumo próprio. Logo, entenderam que essa diferença de seis horas era o lucro do trabalho, que era destinado ao patrão.

Então, se o proletariado tudo produz, a ele tudo pertence?


Isso é o que Vianinha e Chico de Assis nos apresentam, seguindo a teoria ideológica de Karl Marx. Mas, na sociedade capitalista, como também apresentado ao longo da peça, tal afirmação não se faz realidade, justamente porque o capitalismo exige o acúmulo de capital provindo do lucro, o qual não existiria se tudo o que é produzido pela classe operária a ela pertencesse.

Assim, dada a conjuntura capitalista, os trabalhadores só poderão usufruir do fruto de sua força de trabalho quando entrarem no papel de consumidor. Com as duas funções postas em debate, evidencia-se, então, que há dois processos de alienação das massas populares: no trabalho e no consumo. No primeiro modo, o operário é alienado por usar sua força de produção para o mercado e não para si próprio, tornando-se escravo do lucro alheio. E, ao consumir, ele comprará o produto fruto de seu tempo despendido e da mais-valia dos chefes burgueses, fortalecendo o ciclo vicioso capitalista a qual todos nós estamos expostos.

A UNE Volante



A fim de divulgar e popularizar essas questões, a União Nacional dos Estudantes criou uma espécie de caravana que percorreu muitas cidades do Brasil, levando importantes debates políticos aos estudantes universitários e a diversos trabalhadores, corroborando para a criação de pensamento crítico por meio da educação e da cultura. Foi através da UNE Volante que as peças teatrais – incluindo A mais-valia vai acabar, seu Edgar - e músicas produzidas no CPC foram apresentadas para diversos públicos no Brasil, nas ruas e em portas de indústrias.

Infelizmente o Centro Popular de Cultura foi fechado junto com a União Nacional dos Estudantes no período da Ditadura Militar. Além disso, as sedes de ambos foram queimadas, por isso há poucos documentos acerca dos manifestos, estatutos e feitos realizados dentro das instituições.

Referências

Laura Ferracini
Futura professora de línguas e apaixonada por Virginia Woolf, mas lê tudo o que lhe prende. Espalhando leituras no interior do interior de São Paulo, ou para os íntimos, Dolcinópolis.

Comentários

  1. Cada vez mais apaixonado pelos artigos que essa querida (vulgo Laura) escreve! Afirmo, com toda a certeza do mundo, que minha paixão por ler, escrever e estudar as diversas formas e maravilhas literárias foi influenciada, principalmente, por pessoas como você, Laura! Sucesso! ❤

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