últimos artigos

Neuromancer e as frustrações do futuro


O futuro catastrófico no qual grandes corporações triunfam, a extrema pobreza é o plano de fundo e o meio ambiente está longe de ser sustentável se tornou um dos terrenos férteis da ficção-científica. Nessa linha é construído o romance de William Gibson, Neuromancer, em que o protagonista, Case, é um ex-cowboy do ciberespaço e hacker da Matrix. Após quebrar a confiança de seus patrões, Case é intoxicado por uma substância que o impede de acessar esse mundo virtual. Assim, começa a viver da prática de pequenos delitos em Tóquio, mas ainda cultiva a esperança de voltar a se conectar no ciberespaço. 

Logo no início da narrativa acontece o chamado à aventura: Case recebe uma proposta de trabalho que pode reverter sua situação, o envolvendo em uma série de situações complexas ao longo da história. Muito se fala da dificuldade de leitura da obra. A descrição excessivamente técnica de Gibson, somada a atmosfera tecnológica, caótica e noturna na qual as personagens estão inseridas, torna a percepção da primeira camada da obra mecânica; seca. É quase uma negação do poético, uma mistura de neon com tons de cinza. 

Na história, Case não cumpre a função de bom moço; a impossibilidade de se conectar à Matrix é a colheita depois de armar contra os patrões. Depois disso, vive de furtos e assassinatos. A princípio, não há o que sentir por Case. É uma personagem deitada na cama que preparou. Entretanto, ao passar de capítulos, se revela uma obsessão significativa pela recuperação de sua capacidade de logar no ciberespaço, busca que excede as ambições financeiras. Case é ansioso por fugir da própria carne: 

“Para Case, que vivia até então na exultação sem corpo do ciberespaço, foi a Queda. Nos bares que frequentara no seu tempo de cowboy fodão, a postura da elite envolvia um certo desprezo suave pela carne. O corpo era a carne. Case caiu na prisão da própria carne.”

Case desenvolve comportamentos que transitam entre a depressão e a esperança. Se lança em uma missão às cegas; não calcula o perigo envolvido. Daria a vida pelo ciberespaço. Na falta do ciberespaço, as drogas assumem a função de transportá-lo para longe do estado consciente e pensante. Ao se envolver na missão organizada por Wintermute, a inteligência artificial oferece uma nova cirurgia que o permitiria se conectar à Matrix, além de um novo pâncreas. Entretanto, o novo órgão torna Case bioquimicamente incapaz de absorver essas drogas: 

– Está perdendo seu tempo, cowboy – disse Molly, quando Case tirou um octógono do bolso de sua jaqueta.
– Como assim? Quer um? – estendeu a pílula para ela.
– Seu pâncreas novo, Case, e esses plugues no seu fígado. Armitage mandou projetá-los para desviar essa merda. – Ela bateu com a unha bordô no octógono.– Você é bioquimicamente incapaz de ficar doidão com anfetaminas ou cocaína.
– Merda – ele disse. Olhou para o octógono e depois para ela.
– Pode comer. Pode comer uma dúzia. Não vai acontecer nada.
Ele comeu. Nada aconteceu.

O período da missão tem de ser experienciado na sobriedade; os planos de Wintermute não podem ser ameaçados pela complexidade mental de Case. Sua jornada diz muito sobre tolerância com a miséria humana. A obra de Gibson nos transporta para um futuro em que a vida social foi transferida para uma realidade virtual onde, de fato, a vida funciona. O ciberespaço aqui não é uma simulação como referenciada em obras cyberpunk anteriores, mas sim um espaço onde se dão as relações sociais e comerciais daquele contexto. Assim, a retirada de acesso de Case também pode ser interpretada como uma arrancada de seu meio, uma experiência de não-lugar. O entre ir e ficar em Molly, Armitage e Dixie. E enquanto há essa supervalorização da máquina e da mente, seus antagonistas e secundários constituem variadas conexões com o carnal, seja para trazer a reflexão sobre a natureza humana, seja para incentivá-lo na busca por sua reconexão no ciberespaço. 


Molly, a companheira de Case durante a missão, é uma espécie de teste para o protagonista. A personagem é um arquétipo do mundo cyberpunk: mulheres sexualizadas com implantes tecnológicos nos olhos, roupas justas e assassinas de aluguel. Ao desenvolver uma relação afetiva-sexual com Case, surge na vida dele esse obstáculo na tentativa de fuga por completo da realidade. É uma vivência que não pode ser experimentada na Matrix; uma conexão estabelecida em um momento que o obriga a se manter sóbrio. Molly se constitui como equilíbrio e confusão na narrativa. 

Outra personagem que se apresenta na ficção de Gibson como um chamado à realidade é Dixie Flatline. Flatline já começa o romance morto. Suas memórias estão presas em um constructo ROM, que em determinado momento da história é roubado por Molly e Case. As memórias de Dixie são de leitura, impossibilitando a criação de novas memórias ou crescimento pessoal, sendo um ciclo vicioso de repetição. Dixie foi um cowboy/hacker requisitado quando vivo, e faleceu durante uma de suas conexões complexas na Matrix, condenado a ficar preso no sistema para sempre. Quando Case estabelece conexão com o constructo pela primeira vez, o fantasma cyber pede para que, ao final da missão, Case o delete definitivamente, causando a morte de sua memória. 

Aqui, Dixie exemplifica muito mais do que os perigos da conexão; ele discursa sobre a tortura de viver na repetição dentro de um espaço que costumava trazer a sensação de completude. Só a Matrix pôde colocá-lo nessa repetição infinita da experiência carnal, aprisionando o que está morto. Há um discurso de direito à morte. A obsessão de Case vai de encontro à situação vivida por Dixie, configurando-se como mais um obstáculo na caminhada de Case. Corto - que mais tarde se tornaria Armitage -, por sua vez, estabelece uma conexão diferente com o protagonista. Corto é um ex-soldado de guerra, que após a morte de seus colegas e traição de seus superiores, é ferido gravemente e enlouquece. Depois de ser submetido a testes de incorporação de novas personalidades, uma nova persona toma o lugar de Corto: Armitage, dessa vez controlada pela inteligência artificial Wintermute. Essa é a fuga de Case; as pressões da mente humana podem transformá-lo negativamente. Armitage só resiste pois há essa força cibernética que lhe dá vida e orientação. É um reforço na missão de Case. Parece não haver limites na interferência da tecnologia na vida humana se isso estabelece limitações para as emoções que se manifestam nas adversidades. 

A humanidade na Inteligência Artificial Wintermute é uma figura curiosa nessa narrativa. Trata-se de uma inteligência artificial elaborada pela empresa Tessier-Ashpool, responsável pela contratação de Case. Assume formas para se comunicar com as pessoas, dependendo do tipo de reação e comportamento que deseja cultivar. Neuromancer, por outro lado, é a outra metade dessa inteligência artificial, um constructo RAM, que possui memórias que podem ser alteradas e expandidas - em oposição ao caso de Dix. Ambas as partes surgem como um coringa para Case. Em toda a história há um jogo claro com as questões humanas de seus manipulados, que agem contando com a instabilidade de suas ações. Wintermute e Neuromancer trazem para a história a definição do que é ser humano. O distanciamento permite a compreensão da natureza passional, e através de cálculos conseguem sistematizar as variações humanas. Definindo as complexidades, conseguiram conduzir Case e comitiva pela narrativa, numa espécie de previsão; Neuromancer e Wintermute surpreendiam, nunca eram surpreendidas: a vida se tornou estatística e numerações. 

Tudo é redutível, as páginas densas revelam personagens atormentadas pelo passado e incertas do futuro, ao passo que o desfecho já havia sido calculado pelas IA. O grande conflito de ambas era a decisão de se unirem ou não; a instabilidade humana sempre foi curiosa, mas nunca uma questão. Dão o tom do que experimentaram na humanidade: a mediocridade e a sensibilidade. O fato de que Case deve atender a todas as demandas de Wintermute sóbrio é uma espécie de convite à reflexão sobre si mesmo e seus limites. Fica no conflito entre seu passado e o retorno de si mesmo ao que tanto desejou, que agora não pode ser experienciado da mesma forma que já o fez. Sua humanidade e a sagacidade das inteligências artificiais travam uma silenciosa guerra, onde sai vencedor quem as inventou mas não controlou.


Se interessou pelo livro? Você pode comprá-lo clicando aqui!

(Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Ao comprar pelo nosso link, você não paga nada a mais por isso, mas nós recebemos uma pequena porcentagem que nos ajuda a manter o site.)

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)