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Theatro de Brinquedo: esboço do teatro moderno brasileiro

Diversos historiadores e críticos teatrais, de Décio de Almeida Prado a Sábato Magaldi, estabelecem o marco do teatro moderno brasileiro com a peça de teatro Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, encenada em 1943. No entanto, ao olharmos com cuidado para a história do teatro brasileiro, percebemos que diversas iniciativas modernas já estavam em curso há pelo menos 20 anos antes de Vestido de Noiva. O Theatro de Brinquedo foi uma delas.

Em 1927, um casal de intelectuais cariocas da elite, Álvaro e Eugênia Moreyra, criaram um teatro amador que flertava muito com a ideia de brincadeira, daí a denominação "Theatro de Brinquedo". Seria um teatro feito da elite para a elite, que tinha o intuito de questionar o tipo de encenação que se fazia no Brasil da década de 1920.

A Geração Trianon: o teatro não pode apenas divertir?

Antes de entrarmos no Theatro de Brinquedo por si só, é imprescindível falar sobre aquilo que a elite carioca considerava ruim, portanto passível de questionamento e destruição. Ao contrário do que se imagina, eles não frequentavam o teatro. Quem dominava esse espaço eram as classes populares.

Além do teatro de revista, a chamada Geração Trianon estava sempre com ingressos esgotados e plateias numerosas. Ela recebeu esse nome por causa do Trianon, famoso teatro carioca, inaugurado em 1915. Nele, apresentavam-se comédias de costumes protagonizadas por nomes como Procópio Ferreira e Jayme Costa. Eram espetáculos extremamente comerciais, e por isso mesmo vistos com desprezo pela elite que sonhava com um teatro de "maiores pretensões", como o que estava sendo feito na Europa por Bertold Brecht, dentre outros.

A falta de pretensões, digamos assim, era marcada pelo "ator-empresário". Afinal, o que é isso? Jayme Costa e Procópio Ferreira eram atores-empresários, ou seja, eles geriam as próprias companhias. As pessoas iam ao teatro para vê-los, mas não interpretando outros personagens. Queriam vê-los interpretando a si. E era isso que faziam. Muitas vezes, Procópio Ferreira mudava o final de peças, pois sabia que o público não ia gostar de ver aquilo. Atuação, nesse momento, é sinônimo de improviso, o laboratório estava longe de surgir. A Geração Trianon usava a personalidade para catapultar os espetáculos.

O casal Álvaro e Eugênia Moreyra, em caricatura feita pelo artista Alvarus, na década de 1920

A problemática surge a partir do momento em que o divertimento pelo divertimento é colocado como algo inferior, logo excluído da historiografia do teatro brasileiro. Gustavo Dória, no livro Moderno Teatro Brasileiro, define os espetáculos da Geração Trianon como "comediazinhas", o que já mostra o desprezo dos próprios estudiosos. No entanto, as comédias de costume, e mesmo o teatro de revista, questionaram, à sua maneira, valores vigentes da época. Além disso, mesmo se não os questionassem, isso não apaga a importância dessas pessoas na história do teatro brasileiro. Procópio Ferreira, por exemplo, foi um homem que lutou incansavelmente pela regularização da profissão de ator, uma vez que não estava conseguindo se aposentar, pois não tinha como provar o vínculo de anos com a profissão.

O Theatro de Brinquedo: o amadorismo dos endinheirados

Você deve estar se perguntando o seguinte: se a elite não frequentava o teatro, onde ela estava? Bem, apesar de não estarem na Praça Tiradentes ou na Avenida Rio Branco, onde se localizavam os teatros de revista e o Trianon, a elite estava fazendo, sim, arte. Os saraus de Laurita Santos Lobo, por exemplo, em Santa Teresa, reuniam a nata da elite da classe artística.

Nesses lugares, geralmente se fazia teatro amador. O teatro era visto como lazer, de brinquedo, algo para se fazer nas horas vagas. Inclusive, "amador" era um dos maiores elogios que você poderia fazer a uma pessoa naqueles tempos. Já a elite costumava assistir às temporadas internacionais de espetáculos franceses, italianos e portugueses que passavam pelo Brasil. 

Na sociedade efervescente do Rio de Janeiro dos anos 1920, Álvaro e Eugênia Moreyra eram a própria pulsão do desejo de modernidade da época. Álvaro era colaborador da revista Fon-Fon!, muito importante para a difusão dos costumes daquela década.  Eugênia era repórter. Ela trabalhou para o jornal A Rua e ficou bastante famosa ao escrever 48 Horas no Asilo Bom Pastor, matéria que contava sua incursão no internato de moças Bom Pastor para investigar a passagem de uma mulher envolvida em um caso de assassinato.

Além disso, é importante ressaltar o envolvimento do casal com o Partido Comunista. Em 1935, com a criação da ALN (Aliança Nacional Libertadora), eles apoiaram e encabeçaram o movimento dos intelectuais cariocas. Transformaram a casa em que moravam no ponto de encontro do Clube da Cultura Moderna, uma das seções da ALN.

Por isso mesmo, para eles, o teatro poderia ser algo além de entretenimento. Seria uma forma de conscientização em um país com desigualdades abissais. Álvaro, em diversas entrevistas, sempre deixou bastante claro que não criou o Theatro de Brinquedo para destruir o que estava vigente naquele período. Sua ideia era fundir o popular e a vanguarda europeia. No entanto, na prática, vemos que o Theatro de Brinquedo acabou reforçando o abismo entre essas duas formas de fazer teatro.

Em setembro de 1927, temos as primeiras palavras de Álvaro sobre o Theatro de Brinquedo, publicadas na revista Para Todos:

"Eu sempre cismei num teatro que fizesse sorrir mas fizesse pensar. Um teatro com reticências... Um teatro que se chamasse – um teatro de brinquedo (...) Um teatro de ambiente simples, até ingênuo, bem moderno, para poucas pessoas,  cada noite... Tal qual foi o Vieux-Colombier, tal qual foi o Atelier, em Paris… Sempre cismei numa companhia de artistas tão amorosos da profissão, que não a tornassem profissão. Representaremos nossos autores novos e os que nascessem por influência nossa. Daríamos a conhecer o repertório de vanguarda do mundo todo. Os espetáculos de uma peça seriam um gênero. Seria outro gênero a apresentação de programas com pantomimas musicadas de lendas brasileiras, canções estilizadas, comédias rápidas, motivos humorísticos. Nesses programas, tomariam parte poetas dizendo seus poemas, músicos tocando suas músicas." 

No subsolo do Cassino Beira-Mar, em novembro de 1927, estreava Adão, Eva e Outros Membros da Família, primeiro espetáculo do Theatro de Brinquedo, escrito por Álvaro Moreyra. Essa peça é bastante interessante, pois ela já é um esboço de um espetáculo moderno. Para começar, os personagens não têm nome. Eles se chamam Um, Outro e Mulher. A ideia é despersonalizar, indo contra ao que a Geração Trianon costumava fazer.

Além disso, um detalhe bastante interessante dessa peça são os diálogos. Eles são extremamente coloquiais e nada verborrágicos. É como se não houvesse tempo para longas explanações, as coisas simplesmente vão acontecendo, sem sentido algum. Durante toda a encenação, temos a sensação de que os atos não têm ligação entre si. É um espetáculo moderno em diversos sentidos da palavra.

O segundo espetáculo do Theatro de Brinquedo foi uma série de pantomimas, inspiradas pelos modernos franceses Jacques Copeau e Étienne Decroux. Infelizmente, não deu tão certo quanto o primeiro. Inclusive, havia todo um discurso defendido por Álvaro sobre o amadorismo, como se ele quisesse justificar a falta de profissionalismo de seus atores:

"São, não quero dizer amadores, mas amorosos do teatro. A mise-en-scène é de brinquedo, como tudo lá."

É importante salientar que era mais fácil para os amadores partirem para iniciativas como as do Theatro de Brinquedo. Isso porque tinham mais dinheiro e podiam se arriscar. Essa não era a realidade de Procópio Ferreira e tantos outros atores que se sustentavam com a bilheteria. 

O Theatro de Brinquedo foi muito importante enquanto movimento, pois impulsionou o surgimento do Teatro do Estudante do Brasil (TEB), encabeçado por Paschoal Carlos Magno, e que contou com universitários de diversos lugares do Brasil. Ainda que seja uma iniciativa encabeçada pela elite, ela ainda é apagada por conta de um endeusamento da montagem de Vestido de Noiva. E é justamente esse o motivo por que precisamos falar sobre isso.

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