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Chicago: mulheres, glamour e violência nos anos 1920

Há quase duas décadas, Chicago (2002) e suas canções fizeram história: o longa de Rob Marshall foi o primeiro musical a ganhar o Oscar de melhor filme em 35 anos. Na premiação de 2003, além de ter sido escolhido na categoria "melhor filme", o musical recebeu o troféu em outras cinco, incluindo "direção de arte". Chicago foi um sucesso e isso se deve não somente à forma inteligente como a história foi contada, mas também às referências estéticas da década de 1920 presentes no filme, que se passa em 1924.

O longa de 2002 gira em torno de Roxie Hart (Renée Zellweger) e Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones), duas mulheres que cometeram homicídios e se conhecem na prisão. Ao contar a história do julgamento de Roxie, o filme aborda diversas temáticas, como a cultura dos espetáculos de vaudeville nos Estados Unidos, a glamourização do crime na Chicago dos anos 1920 e o sensacionalismo, que era alimentado não somente pela imprensa da época, mas também pelas pessoas, em geral.

Apesar de pouco conhecidas, as histórias retratadas no filme são reais: a história de Roxie foi inspirada na de Beulah Annan, mulher que assassinou o amante em 1924, após uma discussão, e acabou sendo absolvida poucos meses depois, mesmo tendo confessado o crime na noite do ocorrido. Já a personagem de Velma Kelly foi inspirada em Belva Gaertner, dançarina de cabaré que também matou um homem com quem estava tendo um caso, no mesmo ano.

A história é verdadeira, mas as personagens foram criadas ainda na década de 1920, pela jornalista Maurine Watkins, que foi a principal responsável pela cobertura dos casos na mídia. Poucos anos após os acontecimentos, Watkins escreveu uma peça com base nas histórias de Annan e Gaertner, chamada Chicago (1926). Essa peça inspirou a produção de um filme mudo homônimo, de 1927, dirigido por Frank Urson.

Em 1942, surgiu mais uma produção sobre o caso, a comédia Roxie Hart, de William A. Wellman. Todavia, foi somente em 1975 que a história virou musical — a produção da Broadway, Chicago (1975), foi obra de John Kander, que compôs as músicas, e de Fred Ebb, responsável pelas letras. O filme de 2002 tem como inspiração esse musical e foi a narrativa de maior sucesso, até então, sobre as histórias de Annan e Gaertner.

Com caráter satírico, Chicago nos apresenta de forma muito divertida um quadro realista da Era do Jazz nos EUA. O musical de Rob Marshall mostra como o crime era algo banalizado e também romantizado pela mídia e pelo povo — especialmente quando se trata de mulheres assassinas. Para a corte, os fatos e a investigação importavam menos no julgamento do que a aparência das mulheres e seu sex appeal. Em grande parte, essa visão sexista do judiciário estadunidense e do público foram responsáveis pela absolvição de nossas anti-heroínas, Velma e Roxie.


O termo “público” faz muito sentido nesse contexto. Em um período em que a indústria do show business era algo muito bem visto e crescia cada vez mais, a investigação dos crimes, os julgamentos e os pronunciamentos das mulheres eram como se fossem atos de um espetáculo, de fato. E as pessoas, que acompanhavam atentamente os casos, eram como que espectadoras do show. Nos anos 1920, Chicago estava imersa no estilo de vida dos roaring 20s. O hedonismo era a única regra: para as pessoas, o prazer e o entretenimento eram mais importantes do que qualquer outra coisa.

Assim como o sexo, o álcool, o jazz, as roupas provocativas e a cultura vaudeville, no musical de 2002, o crime foi incorporado à estética do showbiz. Tudo que acontece — e tudo o que Roxie imagina — passa a ser um espetáculo. Alguns deles são humorísticos, outros melancólicos ou sensuais, como a clássica performance de Cell Block Tango, cena em que Roxie conhece o passado das demais criminosas com quem convive na prisão.

Embora você possa assistir a essa cena prestando mais atenção na performance impecável das atrizes e na música, que é muito envolvente, a narrativa dela também é deveras importante. Talvez seja o momento do filme que mais revela a natureza das relações nos anos 1920 e a superficialidade das mesmas. Na sequência, cada uma das personagens conta sua história, e todas elas envolvem violência, dinheiro e situações abusivas ou injustas pelas quais elas haviam passado — o que provoca a impressão de que todos os crimes foram justificados, grande sacada da cena.

Praticamente todas as mulheres do filme têm algo em comum: elas gostam de dinheiro, de álcool, possuem uma visão cínica do mundo, são sedutoras e usam a sexualidade como uma ferramenta para conseguirem sucesso em seus objetivos. Esse estereótipo está atrelado à figura da melindrosa, surgida nos anos 1920, e que muito tem a ver com a visão que os homens tinham sobre as mulheres que faziam parte do showbiz. Em Chicago, contudo, as mulheres são, de fato, perigosas, audaciosas e irreverentes — e criminosas. As personagens de Roxie e Velma podem ser consideradas, inclusive, representações da femme fatale.

A femme fatale começou a aparecer mais nos filmes a partir dos anos 1940, com a ascensão do cinema noir. Mas essa representação é muito comum até os dias de hoje, e tem muita relação com a figura da mulher dos anos 1920. Em Chicago, as mulheres se utilizam de sua sensualidade para manipular não somente os homens, mas também o público como um todo, os espectadores. Além disso, Roxie tem plena consciência do poder de uma boa narrativa: ela apela para a sensibilidade das pessoas, por exemplo, ao dizer que estava grávida, o que fez com que seu relato fosse mais emocionante (e, consequentemente, ajudou no seu julgamento).

Entretanto, em muitos dos filmes em que temos a imagem da femme fatale, essa personagem acaba por ser punida no final. Chicago rompe com essa tradição uma vez que, no musical, Roxie e Velma saem vitoriosas no final. As assassinas não somente são absolvidas como também alcançam o sucesso no showbiz, vivendo o auge do glamour da Era do Jazz, o grande objetivo das personagens desde o começo do filme. 





Texto e imagem de destaque: Sofia Lungui 
Sofia
Jornalista e instrumentista com as emoções à flor da pele. Tenta parecer menos pisciana neurótica do que realmente é. Santista perdida em Porto Alegre que sente falta da praia mas adora explorar os sebos. Sonha com uma vida em que não seja necessário dormir para que possa assistir e ler tudo o que gostaria.

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