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Emma: um filme quase perfeito para uma heroína imperfeita


Embora tenha nascido há pouco mais de dois séculos, Jane Austen continua influenciando a cultura pop e a forma como enxergamos o amor. Suas obras já foram adaptadas dezenas de vezes para o cinema e para a televisão e inspiraram tantos outros livros, séries e filmes. A cada par de anos, mais ou menos, uma nova versão de um dos livros da autora surge para nos encantar e fazer apaixonar novamente por seus personagens. Em 2020, foi a vez de Emma., seu último romance publicado em vida, ganhar espaço nas telonas. A adaptação, dirigida por Autumn de Wilde e roteirizada pela também escritora Eleanor Catton, nos traz uma versão leve, divertida e sensual (na medida do possível para a era regencial) do clássico.

O início do longa marca o tom que a diretora resolveu adotar para a história da heroína imperfeita de Jane Austen. Emma (Anya Taylor-Joy) está decidida a encontrar as flores perfeitas para presentear sua governanta, Srta. Taylor (Gemma Whelan), que logo casará. Ainda que seus sentimentos sejam nobres, eles são direcionados apenas a poucas pessoas, aquelas com quem Emma verdadeiramente se importa. Enquanto faz tudo o que pode para reunir flores perfeitas para expressar seu afeto e gratidão, Emma trata com distância e estupidez seus empregados, que ficam constrangidos em sua presença. 

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Ela não é má, mas seu privilégio a faz pensar que está acima das pessoas, o que é corroborado pelas normas de etiqueta da sociedade inglesa do século XIX, que fazem com que as pessoas lhe tratem de forma exageradamente solícita e gentil. Emma, única filha solteira do Sr. Woodhouse (Bill Naghy), o viúvo mais rico da região, tornou-se praticamente dona de si mesma - ao menos, dentro do possível para uma mulher daquela época. Ela possuía fortuna, beleza, influência e um pai permissivo, ou seja, tudo o que uma jovem poderia almejar de melhor em seu círculo social. Entretanto, lhe faltava uma ocupação, e ela tomou para si o hábito de meter-se nas vidas das pessoas ao seu redor. Já que acreditava ter arranjado a união entre a Srta. Taylor e o Sr. Weston (Rupert Graves), agora ela precisava pensar em quem mais poderia ajudar a fazer um bom casamento e, assim, ascender socialmente.


Suas intenções são boas, mas o método é falho. Isso torna-se ainda mais evidente quando a trama da história começa a se desenrolar. Procurando pela próxima boa ação, Emma decide que ajudará uma menina do internato local. Harriet Smith (Mia Goth) foi criada sem saber quem são seus pais, vivendo sob a caridade de outros. No entanto, sua amabilidade faz com que as pessoas não se importem em ajudá-la e não a enxerguem, necessariamente, como um caso de uma menina pobre a quem devem oferecer assistência por obrigação. Emma e Harriet logo tornam-se amigas inseparáveis. Ela ensina a jovem a como se vestir de maneira mais adequada, a interessar-se por coisas mais refinadas e a escolher melhor suas amizades. A influência de Emma é tão forte na vida de Harriet que, quando a última recebe uma proposta de casamento de Robert Martin (Connor Swindells), um fazendeiro, ela nega o pedido - não por sua falta de sentimentos pelo rapaz, mas porque Emma o considera muito inferior a sua posição.

A masculinidade em Emma.


Quem repreende Emma é o Sr. Knightley (Johnny Flynn), um amigo íntimo da família e irmão do cunhado da protagonista. Ele, que viu Emma crescer e a conhece desde sempre, possui total liberdade para falar com ela livremente, até mesmo para além das regras sociais tão rígidas da época, que não permitiam quase nenhum diálogo aberto entre um homem e uma mulher. Como Robert Martin é seu arrendatário, o Sr. Knightley possui relações de trabalho e de amizade com o rapaz, que lhe havia confidenciado o amor por Harriet. Portanto, ao saber que a moça o rejeitou, ele trava uma conversa franca com Emma, na qual lhe diz que ela não tem o direito de meter-se na vida de uma menina simplória como a amiga e, ainda por cima, de arruinar-lhe assim, pois, naquela sociedade, alguém como Harriet dificilmente conseguiria um bom casamento, no quesito financeiro, já que as pessoas não conhecem suas origens, ela é pobre e, embora seja encantadora e querida, não possui os atrativos pelos quais os homens mais se interessavam.

O Sr. Knightley, apesar de estar certo e realmente se preocupar tanto com Emma quanto com os sentimentos de Robert Martin, possui um tom paternalista. Aos trinta e poucos anos e ainda solteiro, mantendo a posição mais elevada que um cavalheiro poderia ter em Highbury, ele encontra-se em todo o direito, dadas as regras locais, de falar assim com uma jovem, especialmente uma que lhe é tão próxima. Mas Emma não acha isso e responde-lhe à altura.

A dinâmica entre o Sr. Knightley e Emma é especial justamente porque ela não se curva a ele nem por gênero, nem por autoridade. Ainda que Elizabeth Bennet seja a heroína mais amada do universo Austeniano, atrevo-me a dizer que Emma é a mais interessante, pois, tanto no livro como no filme, conseguimos enxergar claramente uma subversão dos papéis de gênero. Autumn de Wilde, a diretora, faz questão de mostrar esse aspecto da trama, que pode ficar subentendido ao lermos a história original, já que as páginas de diálogos, monólogos e pensamentos acerca da escada social de Highbury tomam conta dos capítulos. Entretanto, nisso tudo, há um forte protagonismo de uma jovem que não apenas recusa a conformar-se com a posição que lhe fora destinada - a de uma mulher rica, sim, mas que deveria apresentar submissão, docilidade e um grau de erudição, esperado em alguém como ela -, como equipara-se ao homem mais poderoso das redondezas, desafiando-lhe de frente e não tendo escrúpulos na hora de mandar-lhe ficar quieto.


Algo que parece não ter sido compreendido por muitas pessoas, todavia, é o motivo para a cena de nudez do Sr. Knightley no início do filme, quando o vemos de costas, trocando os trajes. A cena não serve num sentido sexual, mas nos mostra algo que geralmente vemos em personagens femininas no cinema: ele trocando de roupa. Como a vestimenta da época exigia muitas e muitas camadas, era normal, para um cavalheiro como ele, ter a ajuda de criados na hora de trocar as vestes. Já aí podemos ver que Emma. é um filme escrito e dirigido por mulheres, pois subverte o uso da nudez para algo natural e focado em um personagem masculino. Além disso, não é de hoje que estamos familiarizadas com o male gaze, ou “olhar masculino”, que faz uso de personagens femininas, seja na literatura ou no audiovisual, como objetos sexuais cujos corpos servem para o deleite de homens. O contrário não me parece ser o objetivo da diretora, mas seria possível dizer que aqui temos um olhar que não necessariamente sexualiza seus personagens masculinos, mas que os mostra sob as lentes das mulheres à sua volta - e expõe tanto os corpos quanto as mentes desses personagens de forma mais vulnerável, aberta e gentil do que geralmente são retratados. Não há nada de viril nos homens de Emma.



O maior vilão, se é que pode-se chamá-lo assim, de Emma. é um jovem clérigo, o Sr. Elton (Josh O'Connor), que tenta seduzir a protagonista e acaba rechaçado por ela numa das cenas mais divertidas do filme. Ao invés de insistir, tentar forçá-la ou mesmo vingar-se, ele simplesmente vai embora, deixando-a sozinha na carruagem e reaparecendo após pouco mais de um mês - com uma esposa a tiracolo. Embora seja possível dizer que há aí um certo despeito, é tudo muito educado e nada violento. Os homens de Emma. podem sentir-se ultrajados, mas seu universo é repleto de conflitos que resolvem-se de maneira tranquila, e as vontades das mulheres são respeitadas. Especialmente porque Emma porta-se de forma tão inequivocadamente repleta de autoridade que ninguém ousa questioná-la.

Quem poderia dizer-lhe algo que, naquelas condições, não seria contestado, é seu pai, o Sr. Woodhouse, mas ele é um senhorzinho amável que preocupa-se apenas com o bem-estar da filha e das pessoas que o visitam. Seus cuidados excessivos, derivados da hipocondria, resultam em vários dos mais divertidos momentos do filme, que torna-se leve em grande parte pela presença afável e carinhosa dele. 


Se os homens em Emma. são dóceis e respeitosos (quem dera viver em tal história!), as mulheres são ativas e, até mesmo, agressivas. Ainda que Emma seja a referência mais óbvia para tal comportamento no filme, podemos notá-lo também na Sra. Weston e na Sra. Elton (Tanya Reynolds), que fazem o que bem entendem e ao redor de quem as pessoas reúnem-se para organizarem-se de acordo com suas vontades. De certa forma, Emma. é uma trama que funciona bem justamente por possuir uma dinâmica que subverte os papéis de gênero, dotando as personagens femininas de agência e apresentando os homens como adereços charmosos e vulneráveis.

Emma., o filme mais sexual do universo Austeniano


Autumn de Wilde conseguiu captar tanto a leveza quanto a intensidade da relação entre Emma e o Sr. Knightley. A princípio, com uma dinâmica fraternal, até mesmo com tons paternalistas da parte dele, ela vai se transformando em um despertar de sentimentos românticos e sexuais. Não há sexo no mundo de Jane Austen, mas há fortes insinuações de desejo latente na Emma de Autumn.

À medida que o Sr. Knightley sente-se eclipsado na vida de Emma por Frank Churchill (Callum Turner), seus sentimentos por ela vêm à tona. Assim, ele passa de um irmão mais velho que faz brincadeiras com a vaidade da protagonista e lhe dá conselhos sobre moral para um homem com seus trinta e poucos anos que se percebe apaixonado pela irmã da cunhada, uma jovem que conhece desde que ela era pequena. Então, desespera-se ao pensar que não possui chances de concretizar seu amor - no âmbito romântico e sexual.

A cena do toque das mãos, quando o Sr. Knightley e Emma dançam no baile, é pura latência, assim como aquela que a precede, quando os passos da dança, já tão ensaiados e quase robóticos, transformam-se num aproximar e afastar dos lábios da pessoa amada, a quem ele encara com voracidade.


A sequência disso é simplesmente uma das melhores do cinema contemporâneo: o baile termina e o Sr. Knightley, completamente assoberbado por seus sentimentos por Emma, sai correndo até a casa dela, seguindo a carruagem da jovem, com o objetivo de falar com ela - provavelmente, de lhe revelar seus sentimentos. Ele chega completamente esbaforido, com a gola da camisa torta e o cabelo revolto. Mas, quando está prestes a declarar-se, o Sr. Churchill chega repentinamente, com Harriet Smith no colo, contando sobre como a encontrou após um ataque de ciganos, que roubaram a moça. O clímax parece ter sido cortado, mas Harriet, apaixonada pelo Sr. Knightley, em consequência de sua gentileza ao ter dançado com ela no baile, quase tem um orgasmo quando ele inclina-se sobre ela, no sofá, para verificar se está tudo bem. Ele percebe como aquela situação é incômoda, pois ali está uma jovem pela qual ele não tem interesse algum, mas de quem está desconfortavelmente próximo, exprimindo gemidos que podem ser de dor, porém parecem de excitação. Ao lado dela, com o rosto quase colado ao seu, está uma Emma preocupada, e tudo o que ele pode fazer é olhar para ela, naquele contexto, e se afastar rapidamente, antes que cometa algum ato impróprio. Mas a angústia e a luta contra os sentimentos amorosos e o despertar da latência sexual do nosso herói romântico não terminam ali: é decidido que ambos, ele e o Sr. Churchill, irão até a cidade chamar o Sr. Perry, o médico, para que ele atenda Harriet.

Entretanto, Emma, em um de seus tantos erros de julgamento, está convencida de que o objeto de afeição de Harriet é o Sr. Churchill, não o Sr. Knightley, e pede para o primeiro permanecer com elas. A expressão completamente perdida e desolada do Sr. Knightley é cômica e embaraçosa. O que se segue a isso é uma das melhores cenas do filme: ele, pulsando de ardor sexual, frustração e amor, chegando em sua casa, entrando na enorme sala e arrancando a roupa sem nenhuma delicadeza, apenas para deitar no chão, exausto, e sofrer por seus sentimentos. Um herói romântico vulnerável, que não tem medo de se expor - fisicamente e emocionalmente -, uma heroína atrevida e arrogante e os mal-entendidos, próprios àquele século, fazem dessa uma história única. Emma é, definitivamente, o filme mais sexual do universo Austeniano.


"É por isso que eu amo a etiqueta - é tão sexy! O período vitoriano, o eduardiano, todos esses períodos quando você não era autorizada a tocar [no outro]... Fui muito clara com os atores quando eles entraram nessa jornada comigo: eu quero seguir as regras de etiqueta. O motivo pelo qual eles eram tão obcecados por danças era porque, é claro, [naquele momento] eles eram autorizados a se tocarem mais do que em qualquer outro momento em suas vidas! A coreografia era muito importante. Emma não está com suas luvas na primeira dança, e eu falei com a nossa especialista em etiqueta e disse: 'Gostaria que ela estivesse com as mãos nuas'. E ela disse: 'Okay, podemos fazer isso porque ela a recém teria acabado de comer. E se ela comeu há pouco, ela teria tirado as luvas. E talvez, nesse momento sobre o qual estamos discutindo, ela ainda não as tivesse colocado de volta, e então ela pode dançar sem as luvas'. Foi realmente uma experiência colaborativa muito divertida pensar, juntos, em grupo, 'O que tornará esta cena erótica?'."

(Autumn de Wilde, em entrevista)
Também existem cenas de puro desejo entre Emma e Harriet. Há momentos feitos essencialmente para que pensássemos "é agora que elas se beijam". Embora nenhum carinho não-hétero esteja explicitado no longa, a diretora decidiu deliberadamente levar a câmera a captar a intimidade das amigas com um ensejo de algo a mais.

Subtexto não-hétero 


Uma particularidade do filme, não tão presente em outras adaptações da obra (ou mesmo no próprio livro, ainda que haja uma insinuação disso ao final), é o relacionamento entre Emma e Harriet. Não há nada além de amor heterossexual no longa, mas existe um subtexto de amor romântico entre as duas - mais por parte de Harriet, é verdade. Wilde disse, em entrevista: "Eu queria que o relacionamento delas fosse uma história de amor também. Sinto que o poder apaixonado dessa primeira amizade de verdade é incrivelmente subestimado por homens". A diretora, com isso, decidiu dar tanto valor aos rompimentos e desavenças em laços de amizade quanto aos românticos. Uma amizade intensa entre duas jovens pode fazer sofrer tanto quanto o amor romântico e isso está presente em Emma. Harriet sofre ao perceber que a amiga contribuiu, ainda que não intencionalmente, para sua infelicidade já que, por Emma, ela rejeitou o Sr. Martin, um rapaz simples por quem estava apaixonada e que lhe propôs casamento, um pedido que ela estava ansiosa por aceitar - até que Emma colocou ideias de grandeza em sua mente. O relacionamento entre elas é complicado e profundo, conversando muito com a intensidade de uma amizade feminina, especialmente entre jovens que ainda não saíram do ninho, como é o caso de ambas. 


Ao longo das décadas desde a publicação do romance, não foram poucas as pessoas que questionaram a heterossexualidade de Jane Austen. A historiadora britânica Lucy Worsley, autora da biografia Jane Austen at Homeafirma que é muito possível que a escritora tenha feito sexo com mulheres já que, em suas cartas, ela afirma diversas vezes que dormia com amigas. A crítica literária Terry Castle também já falou sobre isso, ao analisar as mesmas cartas. No livro de Worsley, o argumento é trabalhado longamente e explora os limites do que se sabe sobre a sexualidade em famílias do status dos Austen, especialmente à luz de personagens como Emma, que podem ser lidas como queer. No entanto, tenha sido Jane Austen lésbica, bissexual ou hétero, o fato é que suas personagens são tão complexas que dão vazão a interpretações interessantes acerca de seus relacionamentos, o que cabe muito bem no filme.

O período regencial em tons pastel 


Uma das coisas que chama atenção é o figurino historicamente correto, criado por Alexandra Byrne. A cintura, que costuma ser muito difícil em filmes de época, está perfeitamente de acordo com o que era usado em 1820. Geralmente, em obras que se passam em séculos passados, a escolha das cores é sóbria, com tons escuros de preto, cinza, algum branco e off-white, nada muito colorido - tons comumente associados à seriedade, parecendo indicar que os séculos passados eram repletos de pessoas sem senso de humor. Mas não é o que acontece em Emma. Embora alguns pigmentos não fossem utilizados em grande escala na época (até porque as roupas eram feitas artesanalmente, não em largas produções), havia cores vivas no período regencial britânico. Algumas peças guardadas daqueles tempos nos mostram isso claramente, assim como ilustrações feitas na época.

Embora possa ser dito que o visual de Emma. é semelhante ao que Wes Anderson fez em seus filmes, com cores harmônicas e tomadas abertas, valorizando o ambiente, vejo a escolha do figurino como algo que, de fato, respeita a moda do período regencial e corrige equívocos comuns em period dramas, que salientam uma sobriedade que não existia, ao menos não daquela maneira. Claro, o figurino dá, de certa forma, o tom do filme, que é divertido e leve, mas poderia tratar-se de um drama e ele ainda estaria adequado, já que o uso tanto das cores quanto dos cortes e da variedade de tecidos e acessórios está correto. Com exceção das calças masculinas, que eram mais apertadas, e da estranha gola usada por Emma e pela Sra. Elton, que estava deslocada da época e da situação (estivesse presa a uma blusa, seria mais adequada, no entanto, não se usavam golas soltas no período regencial), tudo está em perfeita harmonia com a historicidade da moda entre as classes altas britânicas no início do século XIX. 

Sobre as cores no geral, o filme parece ter sido inspirado numa paleta de macarons, contudo, ele é fiel ao que existia na época. Autumn de Wilde é obcecada por cores e por pesquisa e, justamente por isso, ela dedicou-se a transmitir a atmosfera mais perto do real que encontraríamos no período regencial britânico. "Existe uma noção estranha de que as coisas naquele período eram marrons e amarelas, só porque elas ficaram assim com o tempo. Mas usar cores era como as pessoas mostravam suas riquezas", ela disse. 


O que incomoda no filme é como, da segunda metade até o final, ele é apressado. Há diversos eventos que acontecem sem grandes explicações. Não nos é mostrado, por exemplo, que o Sr. Churchill havia retornado à sua tia quando, de repente, muda a cena e ficamos sabendo que ele voltou, após um bom tempo afastado. Também não sabemos nada sobre a gravidez da Sra. Weston, exceto por uma breve cena na qual ela repousa a mão numa barriga quase lisa, até que ela aparece, no casamento de Emma, segurando uma menina no colo. São pequenas coisas, mas que fazem a diferença e deixam uma impressão estranha no público, como se tivessem perdido algo. Emma. é um desses filmes que só teriam a ganhar caso tivessem meia hora a mais. 

Porém, apesar de seus pesares, ele é quase perfeito. Tudo é leve e despretensioso, embora haja muita pompa nas locações, no vestuário e nos gestos. A etiqueta da época é respeitada, o visual é maravilhoso e as atuações são excelentes. Johnny Flynn é o Sr. Knightley encarnado e Anya Taylor-Joy como Emma mostra um lado de sua habilidade como atriz que não vemos muito: o talento para a comédia. Seu ciúme e inveja de Jane Fairfax (Amber Anderson) são constrangedores e tangíveis, algo com que podemos facilmente nos relacionarmos; afinal, o clímax emocional do filme é Emma, completamente envergonhada e arrasada após dizer algo impróprio, tendo sido má por absolutamente nada, fazendo com que sua antipatia por Jane e a falta de paciência com a simplicidade de sua tia, a Srta. Bates (Miranda Hart), a tornem frívola e mesquinha. Tal ocorrência leva Emma a cair em si e perceber que, ainda que possua uma posição social acima da de praticamente todos à sua volta, ela precisa respeitar as pessoas e ser gentil, especialmente com quem a trata com tanto carinho.

Emma. pode facilmente ser considerada uma história em que nada acontece - mas tal pensamento reflete apenas o exterior superficial. O que encontramos, de fato, é um ano na vida de uma jovem que passa por transformações profundas e percebe-se muito mais complexa do que imaginara. Ela aprende que suas ações possuem consequências, mas que existe uma diferença entre ter poder e ser arrogante. Emma não precisa descer de seu posto para ser amada - precisa, no entanto, ser vulnerável. Porém, nem por isso menos dona de si. Permitir-se ser tocada é abrir-se à vulnerabilidade, mas não abrindo mão de si mesma. Ela e o Sr. Knightley estão na mesma posição e, portanto, são iguais. Ao abandonar sua mansão e aceitar morar com Emma e seu pai, ele declara a vitória da protagonista, que não altera sua vida para ajustar-se a dele, apenas o deixa entrar.

Talvez Emma não seja tão imperfeita, afinal de contas. 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. que resenha mais completa e perfeita, eu amei????? o filme emma é realmente tudooooo, incrível ❤️❤️

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  2. Muito boa a resenha! Li o livro mês passado e acabei de assistir o filme. A experiência seria ainda mais incrível se tivesse um episódio sobre esse livro ou outros da Jane Austen no podcast.

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  3. Que resenha completa, muito boa de ler! Amei

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