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Os sonhos em A Bela da Tarde: entre a realidade e a fantasia

Em 1900, Sigmund Freud publicou seu livro A Interpretação dos Sonhos, no qual buscava explicar sua teoria sobre os sonhos e todos os significados por trás desse fenômeno. Segundo ele, enquanto estamos acordados nossa mente está em um estado de constante vigília perante informações do inconsciente, porém ao dormir essa vigília diminui, dando espaço para a elaboração e visualização de nossos medos e desejos reprimidos, gerando uma ponte entre o que é e o que não é consciente durante o dia.

Freud explora detalhadamente em seu livro todo o processo e mecanismo dos sonhos, mas sua ideia central é a de que ao sonhar estamos sempre realizando um desejo. Geralmente, essa realização é de alguma situação que o sonhador tende a reprimir e se envergonhar, buscando jogar essa ideia no fundo da mente – essas repreensões muitas vezes se iniciam ou são ligadas diretamente a situações da infância – então, durante o sonho, essa fantasia é amenizada através do simbolismos e vivenciada pelo eu. Nem sempre a situação é clara, pois no processo de modificação o sonho pode se tornar incerto e até mesmo controverso, e a pessoa ao acordar se lembra apenas da situação simbólica representada durante o sono, mas não necessariamente o que está por trás daquilo, de seu verdadeiro significado. Porém esse significado sempre está lá e se torna essencial para compreender o que vive na mente de uma pessoa, principalmente quando esta apresenta dificuldades ou relutância para expressar sentimentos e situações internas.

O psicanalista também aborda que pessoas que vivenciariam eventos traumáticos intensos tendem a rever em seus sonhos essas situações. As imagens podem aparecer como meio de trazer o conteúdo traumático para o consciente, buscando assim alertar quem sonha sobre os riscos da repetição.


A Bela da Tarde (Belle de Jour no original) foi lançado em 1967, com direção de Luis Buñuel, e contou com um grande sucesso pela chuva de críticas de uma sociedade ainda muito conservadora. O filme conta a história de Séverine (Catherine Deneuve), uma jovem muito elogiada durante toda a história por sua elegância e beleza. Ela é casada com o bem-sucedido médico Pierre (Jean Sorel) e leva a vida de uma típica esposa e dona de casa burguesa, gastando seu dia indo ao café, viajando ou jogando tênis, tudo feito na companhia de conhecidos.

O que pode causar uma diferença entre Séverine e Pierre em relação a outros casais é que os dois dormem em camas separadas, já que a esposa não consegue ir adiante quando se trata de alguma relação sexual com o marido. Como consequência, há sempre uma certa distância entre os dois, por mais compreensivo que Pierre pareça ser sobre isso. No entanto, no momento em que Séverine descobre que uma amiga próxima se tornou prostituta de luxo, sua vida começa a mudar e situações reprimidas em sua mente passam a se transformar em realidade, levando ela a também se interessar e começar a trabalhar no bordel secreto e de luxo da Madame Anaïs (Geneviève Page) durante as tarde – daí a origem de Bela da Tarde.

Ao assistir o filme, milhares de perguntas começam a surgir, mas a principal é: por que Séverine busca viver suas fantasias com estranhos enquanto não vivencia nenhuma experiência com seu marido, mesmo que ela sonhe com ele realizando esses desejos?

Responder a essas questões não é algo fácil. Desde o começo Séverine se mostra muito reservada, e seu marido comenta em alguns momentos que sente uma frieza vindo dela, e realmente, a jovem não se abre para as pessoas próximas sobre sua vida e seu passado. O que se vai descobrindo durante a narrativa é que nenhuma cena ou ação, por mais fantasiosa que seja, é em vão, pois mesmo que a protagonista não se dê conta, seus traumas e desejos estão todos vivos em sua mente, e sua história se torna uma sucessão de aceitação ou repressão desses pensamentos. Sendo assim, seguiremos a teoria freudiana sobre sonhos para entender melhor o que estava escondido por trás da mente de Séverine, já que Buñuel oferece essa oportunidade aos seus espectadores, dando aos sonhos e devaneios de sua personagem a chave para compreender melhor toda a história do filme.

Os sonhos de Séverine: a estranheza no que já se conhece

O termo "masoquismo" apareceu pela primeira vez em 1886, quando as atividades sexuais relatadas em uma obra de Leopold Sacher-Masoch prenderam a atenção do psiquiatra Krafft-Ebing, que viu naquele enredo uma anormalidade, pois o prazer em sentir dor, ser humilhado e gostar disso era completamente inapropriado para a moral dos homens. Freud também se interessou por esse comportamento e fez dele seu estudo anos depois. Segundo o psicanalista, o masoquismo ocorria em diferentes esferas da vida social, não tendo apenas um viés sexual. Por essa razão era importante dividi-lo em diferentes categorias e, acima de tudo, entender a situação que causou o início desse comportamento.

A primeira cena do filme é um sonho de Séverine, no qual ela e Pierre estão passeando de carroça no campo. Enquanto conversam, o marido diz amá-la cada vez mais, até o momento em que ele não gosta da resposta oferecida por sua esposa, tirando-a do veículo e permitindo que os cocheiros a amarrem e disparem golpes com um chicote. No final do sonho, é possível ver que Séverine apreciava aquela situação de submissão. Ao acordar de seu devaneio, ela diz ao marido que estava pensando nos dois, e sorri.

Entre esse mundo onírico e seu trabalho no bordel, a jovem passa diferentes momentos do filme parecendo estar dentro de seu próprio mundo, sempre distraída e com o olhar distante, e são nesses momentos que podemos presenciar dois flashbacks da infância de Séverine. O primeiro revela um abuso por parte de um padre, e o segundo com ela negando a hóstia que ofereciam às crianças em comunhão, simbolizando o corpo de Cristo. Esses flashbacks aparecem em dois momentos cruciais para Séverine, pois ambos antecedem suas decisões em continuar no bordel de Madame Anaïs, assim como também colocam um ponto de partida para entendermos melhor o motivo de algumas de suas atitudes.

Não dá para saber ao certo quando esses sonhos começaram, mas com certeza aqueles não foram os únicos com aspectos masoquistas que Séverine teve. Em momentos completamente aleatórios, a cena de mais um sonho aparece na tela seguindo o mesmo padrão: barulhos de sinos, a aparição de uma carroça e Séverine sendo humilhada, e apenas em um deles Pierre não aparecia para cumprir o papel de sadista. Como dito anteriormente, na análise dos sonhos a repetição de eventos traumáticos não é algo incomum, sendo assim, podemos ter os barulhos de sinos de igreja como um simbolismo ao seu abuso na infância, oferecendo uma correlação entre as atitudes masoquistas em sua mente e seu profundo trauma. Por mais que Séverine não fale sobre ou se lembre detalhadamente desses acontecimentos em sua infância, de alguma forma isso ainda está presente em sua mente e se mostra na constante resguarda aos elogios de outros homens e na decisão de dormir em uma cama separada do marido.

Outro ponto importante, se não o principal, dos sonhos de Séverine é o conteúdo masoquista. Por mais tranquila que ela aparente estar ao acordar, não é possível ter uma compreensão clara dos seus sentimentos sobre essa submissão e atitudes violentas que sofre. Séverine não consegue falar sobre sexo com o marido, mas podemos pensar por algum momento que seu trabalho estava ajudando a jovem a fim de se sentir mais segura sobre si e Pierre, já que ela se mostra menos apreensiva do seu lado. Porém ao assistir outra pessoa em seu trabalho ser humilhada como ela é em seus sonhos, a protagonista vira para Madame Anaïs e diz horrorizada:

“— Como alguém se rebaixa tanto? [Você] deve estar acostumada, mas isso me enoja.”

Para compreender melhor essa dualidade de opiniões dela, pode-se utilizá-la como um exemplo do fenômeno intitulado o infamiliar (Das Unheimliche), que ocorre quando algo familiar ao nosso inconsciente aparece enquanto estamos conscientes e nos causa estranheza. Seguindo nessa teoria psicanalítica, por mais familiar e acostumada a seu trabalho que tenha se tornado, tanto seus sonhos masoquistas quanto o próprio bordel de Madame Anaïs ainda trazem aquela sensação de humilhação desconfortável que ela conhece desde pequena, demonstrando que seus sonhos iam muito além de mostrar um fetiche, podiam também ser um alerta sobre o erro da repetição e a contradição do mundo onírico em mostrar Pierre como um sádico, quando na verdade Séverine desejava ter com ele uma relação que não remetesse ao seu passado.

No final, Séverine se vira e diz a Pierre não ter mais sonhos como antes – ficando subentendido que ela se sente bem em ter deixado seu trabalho e essas fantasias para trás. Em seu último devaneio os sinos ainda tocam e a carroça vaga pelo campo, mas agora o casal está espiando o cenário de uma varanda. Séverine não é mais submissa diante de seu passado.


Referências 

Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

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