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Niketche: uma história de emancipação

É inegável dizer que parte da consolidação do homem ocidental, ou mais precisamente europeu, deu-se através de suas diversas representações e exaltações na literatura, a literatura canônica e humanista, uma literatura lusíada que exaltou esse homem e suas aventuras colonizadoras pelo mundo. Dessa forma, podemos nos questionar: se nesse antigo mundo o homem que colonizava era o centro da literatura, quem protagoniza a literatura do novo mundo, quem conta a vida do colonizado?

É por esse caminho que podemos enveredar pela leitura de Niketche: uma história de poligamia (2001), da autora Paulina Chiziane, natural de Moçambique, país que assim como o Brasil foi colonizado por Portugal, unidos e excluídos pela mesma denominação: países Lusófonos. A imposição da língua portuguesa e o domínio cristão provocado pela colonização, que teve seu fim só em 1975, não foram o suficiente para apagar a diversidade linguística e cultural de um país, mas o domínio ocidental sobre um povo colonizado deixou marcas profundas na sua história, o que culminou nos traços de um povo contemporâneo. 

É interessante pensar que um país "Virgem", como relata Chiziane, em questão de produção de literatura, com apenas 40 anos de libertação, possa ter despontado para o mundo, apresentando a realidade dos colonizados, ou melhor, das colonizadas através de uma escrita de autoria feminina, da mostra dos costumes apagados pelos colonizadores e pelo cristianismo: a poligamia, a libertação sexual e o lugar da mulher em uma outra sociedade que não a ocidental . 

Após o domínio português no território moçambicano, o país ainda enfrentou anos de guerra civil e momentos definitivos de ruptura com as tradições deixadas por seus colonizadores. Foi uma busca pela construção de sua própria identidade e pela quebra com os modelos portugueses, principalmente no que diz respeito à representação da mulher negra, que dentro de um contexto colonial era vista como objeto de desejo/sexo do homem europeu, ou como serva/escrava. A nova tradição literária, criada por mulheres como Paulina Chiziane, vai de forma avassaladora quebrar com esse imaginário colonial. Essas mulheres vão de encontro aos estereótipos, não os aceitando mais em sua realidade histórica; elas revoltam-se e acusam esse sistema opressivo, que é o que pode ser visto em  Niketche: uma história de poligamia

Uma contadora de histórias 

Como primeira forma de rebelião à tradição europeia, a cultura africana valoriza a oralidade, o peso das histórias passadas por gerações através da fala, da contação de histórias, expressão que é rebaixada na sociedade ocidental que, como puramente academicista, valoriza as letras acima da fala. É essa tradição oral que Chiziane valoriza e insere no seu romance. A leitura torna-se tenra, é como sentar-se em uma roda e de cada mulher presente uma confissão é feita. É assim que a autora denomina-se: contadora de histórias. 

“Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance [Balada de amor ao vento, 1990], mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte.”

Dentro dessa roda formada por mulheres plurais de um continente plural, surge o Niketche, a dança do amor que está presente em toda a narrativa, tema principal do livro. A poligamia Niketche, a roda de mulheres que dançam para conquistar o amor de um homem, costume macua, do povo originário de Moçambique. 

“Niketche?

- Uma dança nossa, dança macua - explica Mauá - uma dança do amor, que as raparigas recém-iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida!

Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche.”

A narrativa é extremamente poética, declarativa. Paulina Chiziane tece palavras como se tece histórias na beira da fogueira, na roda de mulheres, no puro Niketche. O leitor que não consome dessa realidade, não deve chocar-se com o costume moçambicano apresentado, a realidade da poligamia, em que se é comum um homem ter duas, três esposas. O olhar ocidental deve ser fechado e o foco deve ser dado aos costumes de um povo. A constante tensão consiste no lugar que a poligamia ocupa dentro dessa sociedade, nos centros urbanos, ou melhor, nos centros mais ocidentalizados pela colonização. Nesses locais, o costume é visto como algo primitivo, errado e selvagem, em nada considerado civilizado diante da sociedade ocidental. Esta sociedade que é tipicamente conservadora, que condena o que pratica por trás dos holofotes, que pratica a poligamia de forma desconstitucional. Esse é o primeiro ato decolonial de Paulina Chiziane. 

Paulina Chiziane

O enredo de Niketche 

A história inicia-se com um conflito: Betinho, filho de Rami, é acusado injustamente de danificar um carro em sua rua. Tentando resolver esse conflito, Rami se dá conta de que está sozinha e de que seu marido, com quem é casada há 20 anos, praticamente a abandonou. De forma poética, segue-se a narrativa através das divagações de Rami, que não sabe do paradeiro de seu marido e pai de seus filhos, Tony, um funcionário da polícia, um cidadão exemplar dentro da sociedade do sul de Moçambique. 

Rami encontra-se só, ela é mãe e pai, e questiona-se sobre o que deu errado, o que fez seu Tony sumir por tantos dias, por onde anda? Grande parte de seu questionamento vem do fato de ser uma mulher correta, uma mulher decente que segue os princípios cristãos, que cozinha, lava, cuida de seus filhos, e principalmente de seu marido. Rami sente-se revoltada; o que fez de errado para que seu marido a deixasse por tanto tempo?

“Meu tony, onde andas tu? Por que me deixas só a resolver os problemas de cada dia como mulher e como homem, quando tu andas por aí? [...] onde andas meu Tony, que não te vejo nunca? Onde andas, meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher de bem, uma mulher casada.”

É nessa ausência que Rami descobre o que mudaria toda a sua dinâmica de vida: o seu marido é um polígamo; suas ausências justificam-se nas casas das suas quatro outras mulheres. Rami decide, então, ir atrás de cada uma dessas mulheres, Julieta, Lu, Saly e Mauá. Ela sente raiva, ela culpa essas mulheres por roubar seu Tony, mas é nesse momento, nesse encontro entre mulheres, mesmo que violento no início, que a narrativa desenrola-se de forma revolucionária. O foco são as mulheres, suas relações em uma sociedade fundada pelo patriarcalismo e a sua busca por uma emancipação feminina, por um escape das tradições socialmente impostas. É um processo de desconstrução dos valores que estão intrínsecos nessas quatro mulheres, e principalmente em Rami. 

Chiziane narra a mulher verossímil, uma mulher real africana. Nos encontros de Rami com as outras, ela explora a ancestralidade cultural do continente e de seu país, Moçambique, pois cada mulher pertencia a uma região, algumas de áreas mais povoadas, atingidas fortemente pela colonização, o sul, e outras de regiões menos conhecidas e que mantiveram muitas tradições como a da poligamia, o norte. Nessa perspectiva, Chiziane demonstra a disputa entre as mulheres do norte e as do sul, que pela demarcação colonial foram obrigadas a coexistir em um mesmo território moçambicano.

Assim, o romance se constrói nessa roda de mulheres que contam histórias como se estivessem em torno de uma fogueira. É na poligamia que elas erguem-se e vislumbram uma perspectiva de futuro; uma dá suporte a outra até que enfim todas libertam-se. 

A construção da emancipação e identidade feminina

Rami procura Ju, que procura Saly, que procura Maua. Mulheres ligadas, inicialmente, por um homem, por Tony e os filhos que ele deixou, os nascidos e os ainda nos ventres. Mulheres de diversas partes de um mesmo território com suas diversidades étnicas, culturais e principalmente religiosas. Rami, ao descobrir as diversas traições de seu marido, decide entender o que deu errado, se falhou nas suas atividades domésticas, ou se foi na arte do amor que nunca aprendeu. Ela se depara com a própria castração sexual deixada pelo regime colonial, pelo ocidente e pelo cristianismo. A sexualidade, a valorização do corpo feminino que não era destinado à esposa “chefe”, mas apenas às outras esposas, às segundas e às terceiras.

“Aprendi todas aquelas coisas das damas europeias, como cozinhar bolinhos de anjos, bordar, boas maneiras, tudo coisas da sala. Do quarto, nada! A famosa educação sexual resumia-se ao estudo do aparelho reprodutor, ciclo disto e daquilo. Sobre a vida a dois, nada! Os livros escritos por padres invocavam Deus em todas as posições. Sobre a posição a dois, nada! E na rua havia as revistas de pornografia. Entre a pornografia e a santidade, não havia nada! Nunca ninguém me explicou por que é que um homem troca uma mulher por outra. Nunca ninguém me disse a origem da poligamia.”

Durante o desenrolar da narrativa, entre os conflitos e descobertas de Rami e das outras mulheres, percebe-se que Tony, o homem tão desejado, funciona como um seguro em uma terra patriarcal para que a mulher moçambicana não se torne perseguida e desamparada novamente. O amor de um polígamo é subsistência, não importa se esse marido não aquecerá a sua cama todas as noites, se estará presente na criação dos filhos, mas dentro desse círculo que ele mantém há casa e não falta comida. E qual seria o problema? Uma sociedade que aleija suas mulheres do mundo intelectual, político e econômico destina-a ao lugar social, o de esposa.

“O mundo acha que as mulheres são interesseiras. E os homens não são? Todo o homem exige da mulher um atributo fundamental: beleza. As mulheres exigem dos homens outro atributo: dinheiro. Qual é a diferença? Só os homens podem exigir e as mulheres não?”

No pentágono da monogamia que se forma, as esposas organizam-se, existe um cronograma, uma individualidade no compartilhar, e é dessa forma que inicia-se a construção da sua emancipação e da sua identidade. A estadia do marido torna-se um peso. Nos seus encontros em roda, à evocação da fogueira de contação de histórias, elas organizam-se, umas abrem o próprio negócio, outras arrumam empregos, algumas conhecem um outro amor. Tony é um fardo. 

“Já ninguém quer o Tony? - pergunta a Saly num grito? - O que se passa? Ele está há mais de quinze dias na minha casa e nunca mais sai e vocês nada reclamam. Não fizemos o pacto da partilha, semana aqui, semana ali? Eu também preciso de meu tempo. Quero cuidar dos meus negócios, ganhar dinheiro para criar este filho, e projetar o meu futuro.”

No fundo, se olhar com atenção, a narrativa de Chiziane não se trata de um homem e suas infinitas esposas, mas das esposas e suas infinitas possibilidades libertadas através da união entre mulheres, através das possibilidades de um novo mundo. No fim, cada mulher tem um novo destino traçado, e Rami permanece firme como a rocha que sustentou Tony desde o início, até que se deixa fluir e amolecer.

“Meu Tony, tudo o que começa acaba, como o vento que corre, como o sol que nasce e morre, como a primavera que vem e a primavera que vai.”


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