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Anne with an E: o começo de uma aventura fantástica


O frescor de um lago prata. Uma estrada feita de flores brancas como pequeninas noivas. A beleza das palavras pomposas que dão seriedade à fala. Todos esses elementos nos levam a Anne Shirley, uma garota imaginativa que extrai a quintessência (ela adoraria a sonoridade desta palavra) do mundo à sua volta.

Anne with an E é uma produção da Netflix, cancelada, com sua conclusão em 2019, e é uma das séries mais delicadas e sensíveis, com uma qualidade enorme em seu texto e imagem. Destinada a todos os públicos, não deixa de apontar temas sombrios, dolorosos ou considerados tabu para o final do século XIX e início do XX. Baseada no livro Anne de Green Gables (1908), de L. M. Montgomery, a história retrata a jornada dessa heroína órfã a qual passou anos de sua vida servindo famílias, cuidando de crianças em casas pobres, e vivendo em um orfanato onde era detestada pelas outras crianças. Quando os irmãos solteiros Marilla e Matthew Cuthbert decidem adotar um menino para ajudar nos serviços da fazenda em Green Gables, Anne é enviada por engano no lugar dele, e os dois irmãos acabam por adotá-la. É a chance de finalmente ter uma família e a oportunidade de ser uma criança. 

A protagonista, Anne, é uma heroína voraz, de espírito livre, que sonha em absorver tudo o que o mundo expõe. A fala verborrágica da menina é uma sede por ser ouvida, quando passou anos e anos calada, apontada como estranha e condenada por ser ruiva e órfã. O mundo, para ela, acabou por ser seu refúgio, mesmo que seja enorme para abraçá-la. Essa imensidão dele não assusta Anne. Pois é justamente na descoberta do novo que ela encontra espaço para expandir-se, ao contrário do interior das famílias com as quais viveu, as que deveriam zelar por sua infância. No fim, a linguagem de Anne é seu ato de resistência, vê um mundo sombrio pelos seus olhos de criança e se refugia na ficção para conseguir suportar a existência nele. 


Com efeito, as histórias sustentam Anne. Princesa Cordélia, histórias de espionagem, poemas e Jane Eyre. Todos ganham novas atribuições pela garota. Não soam como nomes ou elementos literários escolhidos a esmo, mas sim como pequenas flores colhidas no campo, tesouros guardados pela garota a fim de fortificá-la em seu universo particular. Ou seja, as histórias são Anne: cada frase que lê, cada palavra pronunciada, é como cura das memórias de seu passado. E ela as passa adiante, instigando a imaginação daqueles a sua volta e tirando-os do conforto das normas sociais. 

É com sutileza que a trama evidencia essas alterações no microcosmo de Green Gables. Anne torna algumas pessoas mais doces e nada disso soa falsificado nem forçado no enredo. Os primeiros episódios possuem 89 minutos e conseguem contar a história inicial da protagonista. Os demais episódios contam com 44 minutos. Para alguns espectadores, o fato de o começo ser mais longo os fizeram desistir, mas não faça isso: a série inteira é uma jornada crescente e muito bonita. A escolha pela duração dos episódios se mostra certeira diante da proposta de cada pequena história que o episódio narra. Implicitamente cada um contém um tema e, aos poucos, concede mais informações sobre seus personagens. Eles nunca são apenas a primeira impressão que fornecem aos outros. Sempre há outra camada. E é o embate inicial ou a amizade com Anne que as revela. 

A própria série, à primeira vista, pode se assemelhar aos enredos de órfãs como a de Pollyanna e A Princesinha. Mas Anne with an E, ao menos a adaptação da Netflix, pende para os temas sombrios e a melancolia sem perder o tom de comédia e leveza. Todo o cenário, com a fotografia encantadora que o celebra, concede esta imagem de território bucólico. Porém, é o texto poderoso da pequena Anne e dos personagens que promove a profundidade escondida entre as relações. 


Além disso, é preciso dizer que Anne With an E foi supervisionada, escrita e co-produzida por Moira Walley-Beckett, roteirista de um dos episódios de Breaking Bad, que também criou Flesh and Bone, uma série de 2015 sobre o espaço brutal do ballet. O trabalho da autora fornece grande harmonia à trama dos sete episódios. O fato de que há pouquíssimas mulheres roteiristas e diretoras na indústria também destaca esta série por conter diretoras e ser liderada por uma mulher. É um detalhe a se comemorar, quando nos lembramos das várias séries que não concedem a abordagem merecida e realista às personagens femininas, muito menos a valorização da mulher enquanto autora. 

Outra qualidade da série é o elenco, todos servindo a seus personagens com perfeição, com destaque para Amybeth McNulty, que faz de Anne uma força da natureza capaz de lançar luz à beleza da palavra proferida no teatro. Em uma das cenas, Anne pede que falem com cerimônia para não perder o pathos do momento. E ela, com a interpretação de McNulty, encarna a palavra, incorpora todo o pathos de terras mágicas mescladas às fazendas de Green Gables, a esperança por uma família e amor pelas histórias. Junto a ela, temos Geraldine James, a Marilla Cuthbert, que consegue transmitir inúmeras emoções apenas pelo olhar e o carinho contido por Anne. E fechando esse trio que sustenta a série, R.H.Thomson faz Matthew, a imagem de dignidade e doçura que lança o primeiro gesto de carinho a Anne, sabendo ouvi-la. 

Vale ressaltar também o mérito dos grandes temas que a série incita. O primeiro dele é o heroísmo feminino, esse protagonismo negado às mulheres no contexto em que Anne se insere, sendo ela a porta-voz dos problemas em resumir mulheres a esposas. O grande mérito da série é conseguir manter-se fiel a este contexto, mas falar com o público atual, trazendo à tona situações bem específicas. Por exemplo, o episódio 5 é excepcional ao compor uma das raras referências à menstruação numa trama de época, em que as meninas contam sobre os incômodos do ciclo, mas principalmente como ele é visto em sociedade. 


Ainda neste tema, é preciso elogiar a representação das figuras femininas na vida de Anne. A sua amizade com a jovem Diana é um exemplo de como apresentar a amizade entre meninas, quando uma ajuda a outra a se superar emocional e intelectualmente. Há também as reuniões das mulheres progressistas e até mesmo o inteligente espaço que a série abre ao questionar como estas mulheres, apesar de estarem atentas às questões do feminismo, ainda possuem espaço privilegiado ao não ver os problemas de meninas de classe considerada inferior. 


O ponto, porém, em que o tema sobre o feminino cresce é nos dois modelos que Anne tem: Marilla, que a adotou, e a tia Josephine. A primeira se revela, no início, uma fortaleza, que logo cede à presença de Anne e passa a expor toda a ternura que escondia. A preocupação dela em educar uma menina de modo que não a obrigasse a ser esposa, mas sim estudasse para fazer suas próprias escolhas, o espaço que dá para a menina expor seus talentos e aprender com ela, tudo isso faz de Marilla uma pessoa fascinante. E ela cresce com Anne, passando a refletir sobre os caminhos que tomou na vida enquanto mulher. 

Já a tia Josephine é o modelo de Anne para que essa veja que, apesar das oposições alheias, ela deve seguir suas ambições de ver o mundo e ser quem deseja ser. Além disso, tia Josephine relata sobre a relação homoafetiva de toda a sua vida e como amava a companheira, e a série sustenta isso muito bem pelo olhar de Anne, isento de preconceito e apenas cheio de admiração por todas essas mulheres que ela passa a conhecer. 


A série acerta ainda ao apresentar as dificuldades em ser criança e o bullying sofrido no convívio social. O conceito de infância já se encontra mais presente no século em que se passa a série. Meninas e meninos vão para a escola e estudam na mesma sala. Agora garotas podem ser encaminhadas para os estudos, algo negado às suas mães. Porém, era obviamente mais fácil para crianças que possuíam pais com boa colocação social. Já famílias de muitos filhos precisavam que trabalhassem para obter renda. E são justamente a posição social e a família – ou o fato de ser órfão – os quesitos para a discriminação de diversas crianças, reproduzindo o pensamento de seus pais, em relação aos colegas. O bullying, assim, também é exposto com a seriedade merecida no enredo. 

Anne with an E perpassa por vários temas e essa é só uma introdução sobre a primeira das três temporadas. O enredo insufla um novo ânimo no espectador ao mostrar o heroísmo de garotas e mulheres. É uma série sobre o poder da amizade e de uma família que incentiva um ao outro, em vez de se tornar uma prisão. Trata-se de uma jornada que precisa do poder da imaginação, a qual se exercita nas histórias dos livros e na apropriação verdadeira delas, para descortinar todo o espetáculo complexo do mundo. E, além de tudo, uma de suas mensagens, dita de forma sutil, é que há segunda chance e possibilidade de recomeços entre pessoas que nos amam. O quão grandioso uma pessoa pode ser, se ela perceber, primeiro, como se restringe pelas normas sociais dadas e combatê-las. E, que nesse espaço particular que tenta ocultar do outro, existe uma flor selvagem esperando para ser recebida pelo mundo. 




Imagem de destaque: Mia Sodré 

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