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Sua alteza real: o artista e o príncipe como pontos fora da curva em Thomas Mann


Antes mesmo de publicar seus renomados romances, Thomas Mann já se mostrava pronto para se inserir no universo das sátiras e críticas já que, em 1898, com apenas 23 anos, tornou-se redator da revista satírica Simplicissimus. Semanalmente publicada na Alemanha, os escritos traziam à tona um conteúdo com viés político ousado, apesar de não ser sua única característica. É interessante ressaltar a participação do autor na Simplicissimus por dois motivos: o primeiro deles diz respeito ao fato de aquele ser um projeto que antecede seus escritos, muitas vezes também enraizados em sátiras e paródias; e o segundo, pela curiosidade em descobrir que outros renomados autores colaboraram com essas publicações, como Hermann Hesse e Gustav Meyrink, além de Rainer Maria Rilke, também publicado na revista.

Pouco tempo depois, em 1901, Mann publica Os Buddenbrook: decadência de uma família, obra de imenso sucesso que traça uma tonalidade passível de ser observada frequentemente em seus demais escritos: a temática da decadência. Apesar da grandeza dessa publicação, que começou a ser escrita aos 22 anos e foi finalizada aos 26, Mann demonstra sua esperta e observadora literatura em outras obras que, por mais que não sejam tão conhecidas, ainda merecem local de destaque. Para além de A morte em Veneza e A montanha mágica, o autor publicou, em 1909, uma narrativa com pano de fundo bastante preciso: Sua alteza real.

Apesar de não ser um livro em posição de destaque atualmente, é fato que foi um grande lançamento na época, sobretudo porque os leitores ainda estavam extasiados com Os Buddenbrook. Um dos motivos de fascínio provavelmente se dá para além da consciência de que Mann possui uma técnica que trama sabiamente a narrativa, pairando principalmente sobre a temática da obra. Como aponta o estudioso Luis S. Krausz, que traduziu e escreveu o posfácio da edição aqui utilizada, Sua alteza real diz muito mais do que apenas acerca de núcleos familiares: “Mann retoma aqui uma discussão que o ocupava desde a novela Tonio Kröger (1903) e que aparecerá igualmente, de maneira recorrente, em toda a sua obra posterior - de A morte em Veneza a Doutor Fausto: o tema da existência do homem extraordinário, do homem superior que vive no âmbito estético, isto é, o tema da alteza”.

1ª edição da revista Simplicissimus (1896)

Para Mann, a questão social da aristocracia se desenrolava no mesmo sentido que outra condição, esta que o autor conhecia intimamente: a aristocracia possuía peculiaridades semelhantes às de um artista. À primeira vista, essa analogia parece bastante distante e complexa, mas o modo como Mann traduz sua ideia - que, por sinal, é até bastante didático - por meio da narrativa de Sua alteza real faz com que o leitor a compreenda plenamente. É preciso, claro, comprar essa ideia para conseguir se aprofundar nesses paralelos que, além de metafóricos, também carregam um quê de paródia.

"A situação existencial do verdadeiro artista presta-se, no entendimento de Mann, e de acordo com uma concepção típica do romantismo tardio, a analogias e à identificação com aquela do príncipe. Ambos são seres próximos e em muitos sentidos semelhantes, em função de seus poderes extraordinários, e predestinados a existências apartadas da multidão."

(Luis S. Krausz)

Para mergulhar em tal comparação delineada por Thomas Mann, talvez antes se faça necessário compreender algumas das características básicas para que a metáfora funcione. Podemos falar, para começar, sobre como príncipes (em especial Klaus Heinrich, personagem de Sua alteza real) e artistas são pontos fora da curva, quando comparados às demais pessoas de uma sociedade, já que ambos pertencem a uma "classe" com certo grau de poder em suas mãos: enquanto os príncipes lidam com as virtudes voltadas à governança, por assim dizer, os artistas têm em mãos as rédeas de uma sabedoria única e própria de seu ofício. Além desse aspecto, Mann também pontua a aura de admiração que os envolve - o que pode ser difícil de acreditarmos, visto que atualmente os artistas são, em sua maioria, desprezados -, somada ao isolamento a que estão destinados. 

Ainda que cada um à sua maneira, esse isolamento que Mann pontua se relaciona com a forma tão singular com que os príncipes e os artistas moldam suas vidas. Enquanto esses homens da aristocracia estão fadados a lidar com tradições e hierarquias que os segregam de uma vivência "comum", os artistas estão inseridos na solitária realidade que dificilmente é compatível com a arte. Pode-se, quem sabe, interpretar esses isolamentos como resultados de consequentes desilusões, mesmo que com seus notáveis graus de diferença. 

Estendendo um pouco mais a discussão a respeito de como o autor compreendia os artistas como desviantes, a propósito do termo posto por Ricardo Miskolci em seu artigo Figuras do desvio: o artista na obra de Thomas Mann, vale lembrar de um trecho de seu romance Tonio Kröger, publicado em 1903, em que, como pontuado anteriormente, também discute o parecer de Mann sobre tal concepção: 

"Um artista, um verdadeiro artista, não um para quem a arte é sua profissão civil, mas um predestinado e amaldiçoado, este você nota com pouca perspicácia entre a multidão. O sentimento de separação e estranheza, de saber-se reconhecido e observado, algo ao mesmo tempo régio e embaraçado, é notado em seu rosto."

Assim sendo, é possível pensar que Mann acreditava que a criatividade artística era uma espécie de anormalidade, uma do tipo que talvez fosse equiparável ao do mundo ultrarrígido da corte em que Klaus Heinrich está inserido. Não apenas isso, mas há sobre as costas de ambos fardos difíceis de carregar: enquanto aquele carrega o peso da arte, que nunca é absorvida pela vida, Heinrich "anda no meio da multidão e, mesmo assim, parece cercado pelo vazio. Afasta-se, solitário, e carrega, sobre os ombros estreitos, o fardo da sua alteza".



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