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O Natal dos fantasmas: por que essa data combina tanto com o terror?


As festas de fim de ano possuem tradições muito próprias. A energia do Natal é única, tendo sido consolidada ao longo dos anos pelas interações entre culturas pagãs, crenças católicas, ritos sociais e passagens de estações do ano. Hoje, as açucaradas mensagens e peças publicitárias natalinas não abrem margem para que o Natal seja visto de outra maneira: é uma época em que o ar fica mais leve, o tempo corre graciosamente, os bons sentimentos fluem. A cosmologia da vida se altera, e os seres humanos dividem as refeições entre si, vivendo uma confraternização sem resistência.

Essa expressão feliz e perfeita do Natal, tão estimulada pela indústria cultural, contrasta diretamente com sua outra versão. Também existe, afinal, um Natal funesto, em que a atmosfera fica mais pesada, o tempo passa mais devagar, e o silêncio passeia pelas gargantas secas das pessoas amedrontadas.

A parte sinistra do Natal pode até passar desapercebida, mas nunca está ausente. A clássica canção It's the most wonderful time of the year ("É a época mais maravilhosa do ano"), eternizada na voz de Andy Williams, está sempre nas trilhas sonoras dos filmes natalinos ou nas caixas de som das lojas de departamento durante o mês de dezembro. Sua letra começa entoando os clichês alegres, mas toma uma curva quando os ouvintes não estão mais prestando atenção:

“É a época mais maravilhosa do ano / Com as crianças tocando sinos / E todos dizendo para você ter bom ânimo / É a época mais maravilhosa do ano / É a estação mais feliz de todas / Com aquelas saudações de fim de ano e confraternizações alegres / [...] Haverá histórias assustadoras de fantasmas / E contos das glórias de / Natais de muito, muito tempo atrás”

O Natal dos fantasmas, publicado originalmente em 2021 pela editora Wish, é um livro comprometido com a celebração do lado sinistro da data. Por meio de uma seleção de doze contos natalinos assombrados, e ostentando um projeto gráfico primoroso, a obra mostra como essa tradição já existia muito antes - e persiste muito depois - de 1843, quando Um conto de Natal, de Charles Dickens, começou a povoar as prateleiras das livrarias. Logo nas primeiras linhas do conto Ceias fantasmagóricas, publicado em 1891, por Jerome K. Jerome, isso é anunciado de maneira inequívoca:

“Sempre é véspera de Natal em uma história de fantasmas, a véspera de Natal é a noite do grande baile dos fantasmas.”
 Spiritde George Roux (1885)

Uma explicação plausível para isso é simples: o clima do período natalino no hemisfério norte, e especialmente na Inglaterra, é branco e gelado. O inverno é marcado por noites longas e escuras - uma ambientação que a Igreja julgou como adequada para abarcar o tempo de oração e renovação -, e seu solstício já era celebrado pelos pagãos - Saturnália, Sol Invictus, Yule: suas versões eram diversas, de modo que a Igreja apenas fagocitou uma festividade já existente, o que aparentemente é menos trabalhoso do que criar uma nova tradição.

Em Conto de inverno, datado de 1611, William Shakespeare anunciou, por meio do jovem príncipe Mamillius, que “um conto triste é melhor para o inverno”. Apesar do termo "conto triste", não se engane: a personagem buscava contar para sua mãe, Hermione, uma história sobre espíritos e goblins para fazê-la sentir medo, não tristeza. Tanto é assim que ela prontamente responde: “Faça seu melhor para me assustar com seus espíritos”. Mamillius começa a falar, bem baixinho, sobre um homem que morava no cemitério de uma igreja, mas logo a cena é interrompida pelo Rei Leontes, e a peça continua.

Catherine Belsey, pesquisadora da obra de Shakespeare, em um artigo que explora o caráter fantasmagórico de Hamlet, observa o seguinte:

“Nas noites longas e frias, quando o solo era cultivado na medida em que as condições climáticas permitiam, a comunidade ainda predominantemente agrícola do início da Inglaterra moderna sentava-se e passava as horas de escuridão com passatempos ao lado da lareira, entre eles contos da carochinha pensados para encantar jovens e velhos.”
Home Again, publicada na Harper's Weekly (1865)

Com a consolidação do Natal no inverno, metade do caminho para a criação de um Natal sinistro já estava trilhado. Nos países que estão no auge do verão em dezembro, como é o caso do Brasil, a ambientação não é nada fantasmagórica. Contudo, como pontua a apresentação de O Natal dos fantasmas, vários elementos da festa norte-hemisférica foram incorporados à celebração brasileira. E basta olhar ao redor para ver que aqui, apesar de a neve ser artificial, os fantasmas e os pesares são muito reais.

As histórias de fantasmas nas noites de inverno eram uma realidade muito antes do período vitoriano, marcado pelo grande interesse social por fantasmas. Uma figura antiga e terrível é o Krampus, um bode demoníaco com corpo humanoide que, apesar das origens incertas, tem sido entendido como vindo de tradições alpinas pré-cristãs. Segundo a lenda, ele rapta e castiga crianças malcomportadas na noite de Natal - enquanto aquelas bem-comportadas são presenteadas por São Nicolau, ou Papai Noel, para os mais modernos. Neto de Loki e filho de Hela, deusa nórdica do submundo, Krampus resistiu aos esforços da Igreja em bani-lo dos costumes de fim de ano. É uma reminiscência dos rituais pagãos para o solstício de inverno, revelando que as figuras do terror natalino são tão - ou mais - antigas do que o próprio Natal.

Em 1734, o editor londrino George Fenwick publicou uma obra atribuída a Dick Merryman que possuía um longo título (prepare-se): Round about our coal fire, or, Christmas entertainments... Together with some curious memoirs of old Father Christmas; shewing what hospitality was in former times (em tradução livre: "Ao redor de nosso fogo de carvão, ou, Entretenimentos de Natal... Juntamente com algumas memórias curiosas do velho Papai Noel; mostrando o que era a hospitalidade nos tempos antigos"). A primeira página interna da publicação já prometia, como parte de seu entretenimento natalino, “cabeças cruas, ossos sangrentos, sobrancelhas erráticas e corpos horríveis”.

Certamente, essa descrição é bem mais gráfica do que geralmente os contos assombrados de Natal o são. O costume não é que estes sejam violentos, mas sugestivos. Não há derramamento de sangue, mas sim andança de vultos; não há monstros gosmentos, mas aparições flutuantes. Talvez embalados pela leveza da neve, os antigos mantiveram a tendência de elaborar histórias tão arrepiantes quanto suaves.

Essa diferença evoca a distinção traçada entre terror e horror, que não se confundem, embora andem de mãos dadas. Para a pioneira da literatura gótica Ann Radcliffe, o horror é o medo de algo concreto, quando algo assustador é realmente vivenciado; o terror, por sua vez, é o medo da incerteza, alimentado pela expectativa de que algo pavoroso vai acontecer. Os contos de O Natal dos fantasmas, assim como as histórias repassadas oralmente à luz da lareira, revezam esses dois elementos em um equilíbrio que brinca com o coração de quem lê: ora acelera seus batimentos, ora os congela de tanto susto.

Representação da fantasmagoria de Robertson (1867)

No final do século XVIII, o macabro passou a contar com a ajuda das novas tecnologias da época para ganhar espaço na cultura popular. As sessões de necromancia e os espetáculos de fantasmagoria, marcados pelas aparições de fantasmas feitas por luzes, espelhos e ilusões de ótica, conquistavam os europeus. No século seguinte, teve início o período vitoriano na Inglaterra, em que o entretenimento voltou-se de vez para a exploração de novas sensações. A revolução industrial permitiu que isso ocorresse, tanto pelos recursos que surgiam do crescente desenvolvimento tecnológico quanto por implicar maior acesso da população aos livros, pois imprimi-los ficou mais fácil e barato.

O gosto pelo sobrenatural foi se espalhando, envolvendo cada vez mais a curiosidade mórbida no divertimento social. Pode ser que isso também tenha colaborado para a consagração do Natal como uma data em que os fantasmas estão presentes. Martha, a protagonista do conto O prato Crown Derby (1933), de Marjorie Bowen, sabe disso muito bem: “podem rir o quanto quiserem, [o Natal] é a época correta para se ver um fantasma”.

O historiador e folclorista britânico Francis Young tem uma teoria para isso. Ele entende que, por ser uma celebração familiar, o Natal faz com que as pessoas pensem no sobrenatural porque revivem as lembranças daqueles que já partiram. Essa é uma explicação universal, pois o luto permeia todas as culturas humanas.

"Todos sabemos que a dor por nossos entes queridos aumenta na época do Natal simplesmente porque é aquela época do ano em que as famílias se reúnem. Os mortos estão especialmente presentes porque sentimos falta de sua participação em nosso convívio."

O Natal é agridoce. Ele faz com que as pessoas festejem a vida dos que estão e a memória dos que já se foram. É uma festa sobre nascimento, mas faz contemplar a mortalidade. É isso, afinal, que faz com que Ebenezer Scrooge, protagonista de Um conto de Natal de Dickens, deixe de ser tão rabugento. Ele é obrigado, pelos fantasmas que o visitam, a visitar passado, presente e futuro, fazendo um balanço de sua vida e de suas ações, e se deparando com a própria morte. Muitos personagens de O Natal dos fantasmas são levados à constatação de sua natureza humana, terrivelmente falha. É o que todos fazem no Natal, ainda que não seja pela coação de espectros - por vezes, é pela coação do verso cantado por Simone que não sai da cabeça: “Então é Natal, e o que você fez?”

First Christmas eve, de Charles Jay Taylor (1896)

A passagem do tempo é um indício da mortalidade e também colabora para a reflexividade do Natal. É fim de dezembro, mais um ano se passou; todos estão um ano mais velhos, e quem sabe um ano mais frustrados, ou um ano mais assustados. É como Rosa, a narradora do conto Horror: uma história real (1861), de John Berwick Harwoon, se sente:

“Quantos e quantos anos cansados se arrastaram desde então! Jovem, feliz e amada eu era naqueles dias há muito abandonados. Dizem que eu era bonita. O espelho agora reflete uma velha abatida com lábios cinzentos e o rosto de uma palidez mortal.”

Pela idade ou pelo assombro, as pessoas envelhecem, e os Natais, que estabelecem o dever da autocrítica, deixam isso ainda mais evidente do que os aniversários. Porém no fim das contas, lamentar as chances perdidas do ano que se passou é um incentivo para ter mais esperança ao construir o ano que está prestes a começar. O lado sinistro do Natal é um reflexo do seu lado próspero: só há tanto medo, morte e frio na barriga porque também há amor, vida e borboletas no estômago. Um não existe sem o outro, e por isso ambos devem ser exaltados.

Ao redor da lareira, como faziam os ingleses, ou do ventilador, como é mais provável que façam os brasileiros, o Natal é a ocasião perfeita para reconhecer as muitas formas de existir dos seres humanos. O tempo de abraçar os vivos também é o tempo de acolher os mortos, e os contos presentes em O Natal dos fantasmas guiam o leitor nessa importante jornada. Cada história promove sensações diferentes, muito pouco exploradas pelas representações atuais do Natal. Algumas delas nunca haviam sido traduzidas para o português antes, abrindo a oportunidade de conhecer visões dos espectros natalinos inéditas para o público nacional. Cada arrepio provocado pelas páginas do livro é uma ode às incertezas do futuro e do além-vida que dão sentido ao agora. 


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