
No dia 6 de agosto de 1945, a cidade de Hiroshima viu a manhã ensolarada se transformar em uma noite eterna. Em apenas 43 segundos, Hiroshima deixou de ser uma terra habitável, e passou a ser o mais próximo do inferno que a humanidade havia conhecido e criado. A bomba lançada sobre a cidade era denominada "Little Boy", mas ao contrário do que seu adjetivo apontava, era grande o suficiente para causar um desastre irreversível e prolongado. Na peça teatral Eu, Ota, rio de Hiroshima, Jean-Paul Alègre prende seu leitor pelo coração ao discutir os acontecimentos anteriores e posteriores ao dano inestimável causado pela arma nuclear. Diferente do que se imaginaria em um livro sobre fatos históricos, o dramaturgo traz um lado lírico ao construir suas personagens: trata-se de Ota (ou Otagawa), o rio de Hiroshima, personificado em uma atriz. É Ota quem contará, detalhada e sensivelmente, sobre sua tranquila vida até o momento desastroso da manhã de 6 de agosto. Ota é conhecedor da construção da bomba, bem como dos envolvidos nesse processo, e seu papel é mostrar ao leitor o que homens maus, com grande poder em mãos, são capazes de fazer.
“Seja como for, sou Ota, o belo, o doce, e, como todos os rios o fazem, mesmo que não seja comum ouvi-los, venho contar uma história a vocês.”
A cronologia contada se inicia no dia 11 de outubro de 1939, no Salão Oval dos presidentes dos Estados Unidos da América, e uma conversa acontece entre o presidente Roosevelt e Vannevar Bush, seu conselheiro científico. Ao longo dessa cena, os dois dialogam acerca dos estudos sobre reação nuclear, que se iniciaram com as pesquisas de Joliot-Curie, na França, e de Fermi e Szilárd, nos Estados Unidos. Desde esse início, Bush explica ao presidente sobre o potencial destrutivo das bombas nucleares, o que não os impediu de prosseguir com as discussões acerca da construção de tais armas. Enquanto o cientista enumera as consequências da radiação, que certamente afetariam não apenas os seres humanos, mas tudo o que o cercava, a real preocupação gira em torno de uma situação:
“Roosevelt: Falemos com clareza, senhor conselheiro. O senhor pensa que devo dar ordens para construírem tal bomba?Bush: Se não o fizermos, senhor presidente, outros o farão.Roosevelt: O senhor se refere a Hitler?Bush: Mais, aos soviéticos. […]”
Entre as discussões políticas e as breves narrativas de Ota, conhecemos outros dois personagens essenciais para a construção dramática da peça: os irmãos Yoshi, que morava em Tóquio, e Akimitsu, em Hiroshima. Nos momentos em que tratamos de ambos, contamos apenas com atores que leem as cartas que os irmãos trocavam entre si. Nelas, Akimitsu falava sobre as maravilhas de Hiroshima, o barco de pesca do tio, a tranquilidade por haver menos bombardeios ali na cidade, mesmo que estivessem em meio à guerra; Yoshi, por outro lado, conta sobre as dificuldades financeiras que assolavam Tóquio, bem como tinha de dormir no ateliê em que trabalhava, já que não tinha dinheiro suficiente para se mudar para um quarto decente. Ao longo das cartas trocadas, Akimitsu convence o irmão a se mudar para Hiroshima. O irmão chegaria àquele paraíso na fatídica manhã de 6 de agosto de 1945.
Com a morte de Roosevelt em abril de 1945, Harry S. Truman assume o poder e dá continuidade à fabricação da bomba nuclear. Em momento algum, apesar dos avanços no estudo da radioatividade e do conhecimento de seus efeitos catastróficos, foi pensado em acabar com tal construção. Alguns alvos foram selecionados por Bush: Hiroshima, Kokura, Nigata ou Nagasaki - a escolha certeira dependeria das condições meteorológicas do dia. O Japão, em tal período, não havia “se rendido” nos episódios finais da Segunda Guerra Mundial, e a resposta do governo japonês sobre essa rendição seria essencial para a cartada final dos Estados Unidos.
“Truman: Bom (pausa) Encaminharei um ultimato ao governo japonês. Em função da resposta do primeiro-ministro Suzuki, tomarei minha decisão.”
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Natacha Astuto como Ota (Reprodução: Editora Temporal) |
Como já é sabido, o primeiro-ministro não aceitou o ultimato imposto pelo governo estadunidense. Assim sendo, a bomba foi programada para dizimar Hiroshima. Com essa confirmação, um novo personagem é inserido na peça: Paul Tibbets, o comandante do avião Enola Gay e responsável por atirar a bomba. Entre ordens e planos de ataque, notamos uma frieza desconcertante: como é possível que homens, mesmo após terem convivido tantos anos com a sanguinolência da guerra, ainda fossem coniventes com massacres como aquele que estavam prestes a executar?
A cena em que a bomba é lançada é angustiante. Sabemos o que acontece depois daqueles 43 segundos em que Little Boy é desacoplado de Enola Gay. Sabemos, mas Ota nos contará mesmo assim:
“Ota: […] Mas eu vi.Eu vi o clarão.Vi o momento em que uma calma manhã de verão virou noite.Vi as pacientes construções dos homens desaparecerem em uma fração de segundo. Vi os corpos delicados das crianças se transformarem em largas gotas de chuva negra.Eu vi o impossível.Eu vi o indizível. […]Eu, Ota, aquele que passou por Hiroshima no dia que virou noite… Eu sei!”
As cenas seguintes são deprimentes. Os detalhes oferecidos pelo cientista são dos mais assustadores: o clarão ofuscante da bomba havia liberado um calor que variava de 1.300 a 6 mil graus Celsius; o ataque havia provocado a combustão e a desintegração imediata de todos os prédios e de toda a vegetação da região. E o rio Ota? Entrou em ebulição.
Ao final da peça, atores passam a representar o depoimento dado por sobreviventes de Hiroshima. Conhecemos o relato do senhor Tanimoto, da senhora Nakamura, do doutor Fujii - pessoas que, para nós, leitores, não possuem rosto, mas que possuíam história e vidas interrompidas drasticamente. Mas e Akimitsu e Yoshi? Yoshi havia chegado naquela manhã de 6 de agosto em Hiroshima. Os irmãos morreram, Ota nos conta, sem conseguirem sentir por última vez o carinho familiar um do outro. Não havia relato dos dois, pois morreram. Próximos demais do epicentro da explosão, Ota conta que Akimitsu estava indo buscar seu irmão, mas teve de se jogar nas águas do rio pois seus braços queimavam; Yoshi se transformou na chuva fina e escura que caía sobre a cidade.
“Personagem 1: Tudo isso se transformou em chuva fina. Depois, enquanto a noite caía lentamente sobre a cidade atordoada, as finais gotículas de Yoshi se juntaram às outras…Personagem 2: Gotículas provenientes dos corpos de milhares de outros habitantes…Personagem 3: E tais gotículas se transformaram em uma chuva pesada e escura, que caía sobre as ruínas…(Pausa. Ota retoma seu caminho)Ota: E eu, o rio, é preciso que eu chore…”

Referência
- Eu, Ota, rio de Hiroshima (Jean Paul-Alègre)
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