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O duplo em William Wilson, de Edgar Allan Poe


O conto William Wilson é, no geral, uma experiência sensível e única, e, por isso, o estudo e exploração de um elemento em específico do enredo de Edgar Allan Poe não substitui sua leitura - apesar de que pode vir a interferir em uma surpresa ou outra que se tem ao longo das tão bem construídas linhas do conto. Ao lado de um narrador-personagem, que se nomeia como William Wilson - mas deixando claro que esse não é seu verdadeiro nome -, experimentamos um horror que deixaria qualquer um em estado catatônico. 

Mas, antes de chegar aos fatos centrais, conhecemos o mundo em que, por cinco anos, William Wilson ficara imerso em sua adolescência: um colégio elisabetano em um vilarejo na Inglaterra, onde, sobretudo por conta de seu entusiasmo, recebia grande destaque entre parte dos demais colegas. Era, além disso, o mais novo dos alunos - exceto por um outro único estudante. Para surpresa do protagonista, e começo de nosso assombro, o tal aluno trazia à tona uma coincidência bastante específica: seu nome era nada menos que, também, William Wilson. Passa-se um tempo e mais semelhanças aparecem entre ambos, incluindo suas datas de nascimento. Os demais estudantes do colégio, apesar das semelhanças nítidas que sobrecaem inclusive nos traços físicos, não se assustavam com o quase clone de William Wilson - o que já traz ao conto um ar misterioso, pois como tantas similaridades passavam despercebidas? 

O homônimo, com o tempo, começa a planejar formas de fazer com o que o protagonista se sinta inferiorizado, levando-o a pedir transferência de colégio, o que, até então, parece uma atitude que finaliza tais problemas. É, porém, durante uma noite regada à álcool que William passa por mais um inusitado encontro: “Assim que pisei na soleira, dei pela presença de um jovem mais ou menos da minha própria altura, trajado com uma sobrecasaca de casimira branca, talhada na última moda, a exemplo do que mesmo vestia naquele momento”. Era, novamente, o impostor William Wilson. 

Entre encontros e desencontros, que geram cada vez mais angústias à rotina do protagonista, William Wilson se muda diversas vezes com o intuito de fugir daquela sombra que cismava em persegui-lo. O último encontro dos dois se dá em uma baile de máscaras, ao final do conto, quando William decide acabar com tamanha ansiedade e matar seu homônimo. Arrastando-o para uma sala escura, ambos os personagens sacam suas armas e lutam pelo fim daquelas partes de si mesmos que teimavam, por algum motivo, a ficarem fora de seus íntimos. Com um golpe incisivo, William Wilson, o protagonista, desfere uma punhalada em seu inimigo. Com o homônimo quase morto, William corre para a porta da sala ao ouvir um barulho vindo dali, mas logo tem o silêncio necessário para finalizar de uma vez por todas com seu perseguidor. E é nesse momento que se dá conta que no canto da sala não mais tinha um corpo caído, mas sim um grande espelho: aproximando-se deste, dá-se conta que a ferida estava, na verdade, em seu próprio corpo. William Wilson, o outro, nunca teria existido? 

Quem seria o segundo William Wilson?

Como costumeiramente aparece na literatura (e na psicanálise), o segundo William Wilson seria o que chamamos de duplo. É o caso do que ocorre em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou O duplo, de Fiódor Dostoiévski, e até mesmo em O homem duplicado, de José Saramago. É, portanto, um elemento recorrente no mundo literário, e, para tanto, merece uma atenção especial, sobretudo por auxiliar na criação de narrativas interessantes e misteriosas. 

Edgar Allan Poe

Inicialmente, o conceito de duplo foi estudado em 1914 pela vertente da psicanálise por Otto Rank, que esclareceu a ideia em um excelente texto denominado The double: A Psychoanalytic Study. Tempos depois, Sigmund Freud também acabou por se aprofundar no assunto ao longo do conhecido The Uncanny (tradução do alemão Das Unheimliche, o que no português foi passado como O outro ou O infamiliar). Aquilo que é infamiliar, como utilizamos rotineiramente, geralmente expressa algo que cria algum desconforto em nós, ou porque nos suscita algum tipo de ansiedade, ou apenas por não pertencer ao âmbito de elementos que nos são, para utilizar o antônimo, familiares. Todavia, vale ressaltar um apontamento de Freud quanto ao que há de assustador nessa infamiliaridade: 

“A palavra alemã unheimlich [infamiliar] é, claramente, o oposto de heimlich [familiar], doméstico, íntimo, e nos aproximamos da conclusão de que algo seria assustador porque não seria conhecido e familiar. Mas, naturalmente, nem tudo que é novo e que não é familiar é assustador; a relação não é reversível. Pode-se apenas dizer que o que é inovador torna-se facilmente assustador e infamiliar; nem tudo o que é novidade é assustador. Ao novo e ao não familiar se deve, de início, acrescentar algo para torná-lo infamiliar.”

Pensando por esse lado, portanto, o homônimo de William Wilson é o tal do infamiliar na vida de nosso narrador. E, apesar das semelhanças em relação à aparência, data de nascimento e demais características, o protagonista passa todo o enredo fugindo de seu homônimo. Isso se deve pois o duplo, como apontado na psicanálise, pode ser, como foi dito em O duplo como fenômeno psíquico“uma visão angustiante de si próprio como um outro”, algo que parte “de uma crítica da relação entre o ser e a consciência”, ou, para uma definição mais complexa contida no Dicionário Gale de Psicanálise: “O duplo se refere a uma representação do ego que pode assumir várias formas (sombra, reflexo, retrato, duplo, gêmeo) e que é encontrado no animismo primitivo como uma extensão narcisística e garantia de imortalidade mas que, na ausência do narcisismo, pode prenunciar a morte ou se tornar fonte de perseguição”. Ou seja, o protagonista não encara o seu segundo eu com admiração pelas semelhanças, ou com qualquer positividade que seja: muito pelo contrário, trata-o com desdém e aversão, o que então o transforma na tal fonte de perseguição.

Tentando nos aprofundar nessa questão da perseguição, logo também temos a explicação de por que apenas William Wilson, o principal, consegue se dar conta de tantas semelhanças. Além disso, lembremo-nos que alguns dos encontros se dão em momentos que a aparição acontece de forma como uma “alucinação”: o segundo encontro ocorre durante uma festa, em uma ocasião em que certamente o protagonista está embriagado; já na última cena do conto, o homônimo aparece em um baile de máscaras, ou seja, estava fantasiado e encoberto de alguma maneira, de modo que mais uma vez William Wilson fosse o único capaz de reconhecer o outro.

Assim, facilmente se explica que o segundo William Wilson nada mais é do que uma visão angustiante refletida para fora do protagonista. A infamiliaridade está no fato de ser tão semelhante, mas ao mesmo tempo se tratar de uma semelhança que ataca e tenta se mostrar superior, o que fere diretamente a moral e o emocional do protagonista. O conto, portanto, deixa claro a existência de um eu que foge e luta contra si mesmo. 

Referências 



Arte em destaque: Caroline Cecin

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