O conto de detetive é a história do esclarecimento de um crime e deve, obrigatoriamente, possuir um criminoso, uma vítima e um detetive, constituindo, assim, a santíssima trindade das histórias do gênero. O que torna esse gênero tão popular é o fato de que somos todos fascinados por histórias de crimes misteriosos e pela forma com que elas atiçam a nossa curiosidade, pois o enigma de um crime sempre traz consigo os questionamentos: quem o praticou? Como praticou? E por qual motivo? Tudo isso constitui para nós, leitores, uma grande fonte de entretenimento. Mergulhamos na história e seguimos na cola do detetive até que ele nos explique o que aconteceu nos mínimos detalhes. Isso se antes não infartamos de ansiedade por conta do suspense que segue por toda a narrativa até o desfecho.
Preciso confessar que sou iniciante no gênero romance policial/história de detetive. Tive meu primeiro contato com ele no ano passado através dos livros da Agatha Christie. Fiquei tão encantada em ser feita de boba pela Agatha que nos meses seguintes li mais dois romances dela, com Hercule Poirot sendo o detetive protagonista.
Neste ano, quis averiguar se a boa fama em volta do infame ladrão de casaca Arsène Lupin, criado pelo autor francês Maurice Leblanc, era genuína. A editora Clássicos Zahar lançou em setembro deste ano As Confidências de Arsène Lupin, com tradução de Dorothée de Bruchard, uma coletânea com nove contos que retomam o universo clássico das primeiras histórias do detetive. Escolhi essa edição para conhecer o ladrão de casaca.
No primeiro conto, intitulado Reflexos do Sol, Lupin é atraído a desvendar um crime envolvendo um Barão e uma Baronesa. O título faz referência ao método utilizado por uma das vítimas do Barão para chamar a atenção de Lupin. Em uma espécie de código morse, a vítima encurralada entrega uma pista à Lupin através de reflexos de sol. O detetive se sente intrigado por aqueles reflexos em sua janela e, quando me dei conta, já estava vendo o desenrolar do crime dentro da mansão do Barão, seguido da descoberta do cadáver da Baronesa dentro de um cofre. A partir daqui, posso dizer que o ponto alto das narrativas dos contos são as descrições das artimanhas usadas pelos criminosos e pelo próprio Lupin. O destaque das histórias reside no fato de que o que nos prende não é saber a identidade do criminoso, mas como ele arquitetou o crime. Alguns dos crimes chegam até a beirar o fantástico.
O aspecto um tanto frenético em relação ao desenrolar da trama é presente em todos os outros contos da coletânea e é uma característica essencial das histórias de detetive, que são feitas para serem lidas “de uma só sentada”. Isto se dá por dois motivos, um por estrutura narrativa e o outro histórico. O primeiro diz respeito ao trabalho do escritor do conto para manter o leitor interessado na história; ele não deve ser nem muito curto e nem muito longo, deve conseguir, no espaço de tempo determinado, sustentar toda a tensão da trama até o desfecho. Se for longo ou curto demais pode não conseguir sustentar o efeito e a excitação pretendidos. Este recurso narrativo da ficção de detetive foi postulado por Edgar Allan Poe, precursor do gênero nos Estados Unidos com Os Assassinatos na Rua Morgue. Muitos escritores de romances policiais franceses se inspiraram nas obras de Poe, particularmente graças à tradução das mesmas feita por Charles Baudelaire.
O segundo motivo podemos remontar ao século XIX na França e ao advento das viagens de trem que acabou por coincidir com a popularização das histórias de detetive. Era uma literatura barata, popular, de consumo rápido, que poderia ser lida em uma noite ou em uma viagem de trem, e depois era descartada.
Essa forma de consumo rápido também está ligada aos folhetins da época, já que a grande parte das histórias de detetive eram publicadas nesse meio. Como é o caso das primeiras aventuras de Arsène Lupin, que foram publicadas na revista Je Sais Tout, e sabemos que em tais periódicos os autores tinham de manter um nível de produção frenético de um capítulo por dia para captar a atenção dos leitores de folhetins. As estruturas da ficção de detetive foram construídas para atender às necessidades da então recém-nascida sociedade de consumo.
Assim como o Barão do primeiro conto, todos os criminosos dos demais são sujeitos que gozam de certa importância social, como o duque de A Aliança de Casamento e o aristocrata Sr. Prévailles de A Echarpe de Seda Vermelha. Nada de “o culpado é sempre o mordomo”, nas histórias de detetives os culpados são os cidadãos de bem, sujeitos respeitáveis pela sociedade que fazem sempre o serviço sujo com as próprias mãos e em interesse próprio.
O conto A Cilada Infernal é bastante notável, pois nele Lupin se torna o criminoso e mostra que o apelido de “ladrão de casaca” não é por acaso. Disfarçado como inspetor da polícia, Lupin rouba 150 mil francos da carteira de um homem em um hipódromo. O homem se suicida ali mesmo quando percebe que todas as suas economias haviam sido roubadas. Depois da morte, a víuva e o sobrinho declaram vingança ao ladrão desconhecido. Eles, então, planejam uma armadilha e conseguem capturar Lupin. Sim, isso mesmo: o infame ladrão de casaca cai como um patinho na armadilha de uma viúva e seu sobrinho adolescente, chega até a ser cômico, e realmente, os contos têm uma veia cômica devido à petulância de Lupin.
Quando Leblanc faz com que seu detetive seja capturado na história, quebra de certa forma o paradigma de deus ex machina que faz parte da característica da maioria dos detetives consagrados no gênero. Afinal, ninguém conseguiria imaginar o mesmo tipo de coisa acontecendo com o famoso Sherlock Holmes, um homem de ciência, puro raciocínio, sério e sóbrio. E por ser um detetive que muitas vezes banca o ladrão, Lupin desfaz a imagem de corporificação da justiça que a maioria deles possui. Ao contrário de Lupin, eles defendem que o crime sempre acaba sendo punido.
Por ser um ladrão, Lupin obviamente atrai a inimizade da polícia, mais especificamente do detetive Ganimard. Mas, mais do que isso, quando banca o detetive ele escancara a incompetência da polícia na resolução dos crimes. Como, por exemplo, no conto A Echarpe de Seda Vermelha, no qual podemos ver Lupin zombando o tempo todo da inteligência da polícia. Neste conto, temos a maior presença de Ganimard, inspetor e inimigo de Lupin. Ganimard sonha em capturar Lupin, mas tudo o que ganha é ser feito de bobo publicamente pelo infame ladrão. Lupin mostra toda a sua petulância ao atrair Ganimard até seu encontro para lhe falar de um crime de que o próprio inspetor ainda nem tem conhecimento.
O conto inteiro é como uma forma de mostrar a inferioridade da polícia perante as astúcias de Lupin, tanto é que entre o sentimento de raiva e desafio reina em Ganimard um medo e inferioridade em relação a Lupin:
“Lupin lhe inspirava um sentimento bizarro e complexo em que se mesclavam medo, rancor, uma admiração involuntária e também a vaga intuição de que, por mais que se esforçasse, por mais persistente que fosse, jamais venceria tal adversário. Perseguia-o por obrigação e por amor-próprio, mas com um incessante receio de ser ludibriado por esse terrível mistificador e ridicularizado perante um público sempre disposto a rir dos seus reveses.”
Assim como Holmes, Poirot e Miss Marple, Lupin é um detetive que geralmente entra em ação quando a polícia não consegue resolver um caso. Algumas vezes as duas forças cooperam entre si, mas em geral o policial faz o papel de bobo e prepotente, ficando o papel de decifrador resguardado ao detetive independente.
A Sureté, força policial francesa citada na maioria dos contos de Arsène Lupin, existia na vida real e foi criada na época para investigar crimes cometidos e também na prevenção dos mesmos. O problema era que, entre a sociedade, as forças policiais permaneciam desacreditadas devido ao fato de que muitos policiais em serviço eram criminosos reformados e condenados. Só em meados do século XIX, e com o surgimento da profissão de detetive, é que as pessoas começaram a ter uma melhor percepção do trabalho policial. A ficção de detetive teve um papel especial em melhorar a imagem da polícia na época, pois muitos autores utilizavam detetives da Sureté como personagens de suas histórias, como fez Maurice Leblanc com o detive Ganimard.
Para finalizar, gostaria de pontuar que o surgimento da ficção policial ocorreu em um mundo em mudança, que se tornou industrializado, mais urbano e fascinado por anedotas mórbidas. Na França, os donos de revistas e jornais utilizaram as histórias de detetive e as notícias de crimes reais como forma de preencher a lacuna editorial causada pela repressão do governo de Napoleão III, que censurava artigos e colunas que tratavam de questões políticas.
Coincidentemente, vivemos em um século igualmente conturbado em que filmes, podcasts, séries e blogs sobre crimes e psicopatas estão em grande evidência, provando que a atração por esse tipo de conteúdo é também uma forma de desvirtuar nossa atenção de questões políticas mais urgentes e que são igualmente sangrentas.
Referências
- A Narrativa Trivial (Flávio Kothe)
- The Emergence of French Crime Fiction during the Nineteenth Century (Guillaume Foussard)
Arte em destaque: Mia Sodré (baseada na capa de Rafael Nobre para a coleção da Clássicos Zahar)
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